Danilo José Viana da Silva
“Uma vez despertada do atordoamento, [a substância simples] apercebe-se das suas percepções. É necessário havê-lo tido imediatamente antes, embora sem percebê-las na ocasião; pois uma percepção não pode naturalmente provir senão de uma outra percepção, assim como um movimento não pode provir senão de um movimento.” 1
Leibniz chamou de apercepções as percepções conscientes. É quando se consegue tomar consciência de algo. Mas, uma apercepção não pode surgir subitamente da esfera do finito, assim como as mônadas (substâncias simples) não podem ficar aprisionadas no estado de atordoamento.
Justamente pelo fato de uma apercepção (percepção consciente) não surgir misteriosamente do finito, devemos antes pensar sobre a sua produção, a sua fabricação.
Em Leibniz, uma percepção consciente é resultante das relações entre micropercepções ou percepções inconscientes. Uma percepção consciente (apercepção) jamais pode ocorrer sem as ações de milhares micropercepções que a fabricam.
Assim, uma percepção consciente de algo pode ser substituída, desorganizada pelas ações de várias percepções inconscientes e infinitamente pequenas que produzem a percepção consciente seguinte. Por exemplo, a percepção que tenho de um desenho grafitado em um muro na cidade do Recife pode suceder a percepção de uma criança que dorme na calçada de uma loja. Neste caso, foi preciso que mil micropercepções ou pequenas percepções inconscientes da criança dormindo na calçada me afetasse até que a macropercepção ou percepção consciente fosse atingida. (apercepção)
Em Leibniz, compreende-se que uma macropercepção (apercepção) jamais pode surgir prontamente do finito; antes, ela corresponde bem mais a uma produção, a uma resultante da ação de uma infinidade de micropercepções que me atingem, que formigam os estados conscientes e que fabricam o estado consciente seguinte. Um árduo trabalho.
Uma percepção consciente é resultante das relações diferenciais, muitas das quais não podemos nos aperceber, mas são indispensáveis para a produção de uma nova percepção consciente, de um novo notável. Como lembra Deleuze
“A “boa forma” macroscópica depende sempre de processos microscópicos. Toda consciência é liminar. Sem dúvida, em cada caso será preciso dizer por que o limiar é este ou aquele. Mas, tomando-se os limiares como outros tantos minima de consciência, as pequenas percepções são cada vez menores que o mínimo possível: infinitamente pequenas nesse sentido. São selecionadas em cada ordem aquelas que entram em relações diferenciais e que produzem, assim, a quantidade que surge no limiar de consciência considerado (o verde, por exemplo). As pequenas percepções são, portanto, não partes da percepção consciente, mas requisitos ou elementos genéticos, “diferenciais da consciência”. 2
A seleção das relações diferenciais entre as micropercepções, entre as percepções infinitamente pequenas são de suma importância, pois, como lembra o próprio Leibniz, “quando há uma grande quantidade de pequenas percepções em que nada há de distinto, fica-se atordoado, do mesmo modo quando damos, continuamente, muitas voltas em um mesmo sentido, (...)” 3 E é justamente a produção de uma percepção consciente, um limiar de consciência da cor verde, por exemplo, que atesta a possibilidade de saída do atordoamento, no qual de nada se apercebe.
Sem esse limiar de consciência, ficaríamos andando em círculos, nem mesmo se poderia falar em seleção. Mas, como assim?
“Seja a cor verde: certamente, o amarelo e o azul podem ser percebidos, mas, se sua percepção dissipa-se por ter-se tornado pequena, eles entram numa relação diferencial (d azul/ d amarelo) que determina o verde.” 4
O azul e o amarelo não são partes do verde, mas seus elementos genéticos que não são apercebidos no verde. Mas o azul, assim como o amarelo, tem como elementos genéticos outras relações entre cores diferentes, as quais têm, cada uma, outras relações entre cores diferentes como elementos genéticos, os quais, por sua vez...
Enfim, o verde, assim como as outras cores, jamais surge subitamente da esfera do finito, este é explicado pelo infinito, por uma infinidade de relações das quais não nos apercebemos, mas são indispensáveis para a produção de uma percepção que podemos ter do verde, e não ficarmos aprisionados no atordoamento.
Não há como se pensar, em Leibniz, percepções conscientes independentes das relações diferenciais, relações que não param de diferir, entre as percepções infinitamente pequenas; são estas relações que fabricam uma nova percepção consciente. Eis um possível desdobramento da obra de Leibniz.
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- LEIBNIZ, G. W. A monadologia e outros textos. Organização e Tradução: Fernando Luiz Barreto Gallas e Souza. – São Paulo: Hedra: 2009. P. 29. § 23ª
- DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Trad. Luiz B. L. Orlandi. – Campinas, SP: Papirus. 1991. P. 150
- LEIBNIZ, G. W. Op. cit. P. 28-29. § 21ª
- DELEUZE, Gilles. Ibid