quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Gaston Bachelard: Algumas divagações sobre o Primado Teórico do Erro.




Por Danilo José Viana da Silva

“(...) Não há verdades primeiras, só erros primeiros. A primeira e mais rica função do sujeito é a de se enganar. Quanto mais completo for seu erro, mais rica será sua experiência. A experiência é a lembrança dos erros retificados”,
(Georges Canguilhem)


            Diferentemente de todo um legado da filosofia racionalista, Bachelard não pensa o erro como uma catástrofe, para ele o erro pode ser definido como um elemento constitutivo do conhecimento científico.
            Esse trecho escrito por Georges Canguilhem, (um conhecido discípulo de Bachelard) que usamos como epígrafe, denota que a epistemologia bachelardiana constrói uma nova maneira de pensar e de lidar com os erros. Bachelard se define como um racionalista, mas trata-se de um precursor de um novo tipo de racionalismo: trata-se (já que estamos tratando neste texto superficial do primado teórico o do erro) de um racionalismo que afirma não verdades primeiras, mas que no desenvolvimento, ou melhor, na história do desenvolvimento de qualquer noção científica podemos encontrar um constante processo de retificação, uma verdadeira história de erros e devaneios que perpassaram e que perpassam o conhecimento científico. Tal como ele mesmo lembra: “Pensamos que existe sempre um erro a corrigir a propósito de qualquer noção científica.” 1 
            E para exemplificar e dar consistência à esta tese, para mostrar o quanto o erro faz parte do conhecimento científico, Bachelard irá contar a história epistemológica do eletrismo 2 , da noção de massa, de eletricidade, da noção de átomo...
            É preciso lembrar que a noção de primado teórico do erro é altamente relacional (o fato de estarmos tratando do primado teórico do erro não deve ser interpretado como se tal primado fosse uma entidade irrelacional, ao revés, ele é altamente relacional) na epistemologia de Bachelard. Tal primado se relaciona de maneira muito destacada com a noção de Razão polêmica, a qual é tão importante para se compreender que a crítica é a própria essência do conhecimento científico, segundo Bachelard.
            Assim, o primado teórico do erro afirma que a verdade científica jamais adquire o seu pleno sentido sem ao termo de uma polêmica. “Não poderia haver uma verdade primeira. Apenas erros primeiros.” 3   Os erros (plural) constituem o fundo da própria verdade científica. Neste caso, a crítica, a polêmica no interior da cidade científica á algo crucial: Trata-se da razão polêmica. E sobre ela, na epistemologia de Bachelard, Canguilhem lembra que:

A malevolência crítica não é uma penosa necessidade da qual o cientista pudesse desejar ver-se dispensado porque ela não é uma consequência da ciência, mas sua essência. A ruptura com o passado dos conceitos, a polêmica, a dialética, é tudo o que encontramos no termo da análise dos meios do saber. 4     

            E para mostrar, ou melhor, multiplicar os exemplos de como a razão polêmica é um elemento essencial do conhecimento científico, Bachelard irá lançar mão, por exemplo, da história do átomo: “O esquema do átomo proposto por Bohr, um quarto de séculos atrás, agiu nesse sentido como uma imagem correta, mas não resta mais nada.” 5   Ou seja, era tido como verdade, hoje é visto como um devaneio. No caso da história epistemológica do eletrismo, Bachelard mostra o quanto o conhecimento dos fenômenos elétricos estava altamente pautado no espírito pré-científico:
                       
Durante o desenvolvimento científico ver-se-á, sem dúvida, uma utilização comercial de algumas descobertas. Mas essa utilização agora é insignificante. Os demonstradores dos raios-X que há trinta anos se apresentaram aos diretores da escola para oferecer um pouco de novidade no ensino já não faziam fortunas imperiais. Parece terem desaparecido inteiramente hoje. Pelo menos nas ciências físicas, um abismo separa o charlatão do cientista. 6     

            Os erros primeiros, altamente baseados no emprego do realismo ingênuo que chega até mesmo (como lembra Bachelard mostrado um exemplo da preguiça intelectual impulsionada pelo emprego do realismo e do empirismo) a “chamar um fato de fato (...)” 7  Sem necessidade de construção. Tais erros primeiros também são exemplificados quando Bachelard descreve a história da noção de massa, por exemplo: os progressos impulsionados por Newton (progressos estes que foram, em alguns aspectos importantes, retificados   pela teoria da relatividade de Einstein, para quem a massa não pode mais ser considerada como absoluta, mas como uma noção relativa a velocidade de um objeto) hoje são vistos – estamos nos referindo as descobertas de Newton -  como devaneios, mas que tiveram seu período de reinado e de glória no trono da veracidade científica, ou seja, eram consideradas apodíticas. 
            O racionalismo newtoniano dominou a Física matemática do século XIX. Porém, com o desenvolvimento da teoria da relatividade por Einstein, se

descobre que a massa, outrora definida como independente da velocidade, como absoluta no tempo e no espaço, como base de um sistema de unidades absolutas, é uma função complicada da velocidade. A massa de um objeto é pois relativa ao deslocamento desse objeto. 8 

            Mas isso não quer dizer que “chegamos” no supra-sumo da verdade científica... Enfim, há uma multiplicidade de exemplos que dão consistência ao primado teórico do erro e a razão polêmica  como elementos constitutivos do conhecimento científico. E tais exemplos são magistralmente dados por Bachelard. Afirmar que a razão polêmica é altamente relacionada com o primado  teórico do erro é dizer que o conhecimento científico progride por retificações, pela integração das críticas que destroem as imagens existentes e algumas vezes reinantes no momento em que a ciência ainda engatinha, é também lembrar que o trabalho da crítica é indispensável para não se cair nas armadilhas da razão arquitetônica, a qual estabelece conciliações falsas entre sínteses tradicionais possibilitando a construção (algo bastante equivocado) da história do conhecimento científico como “a” história de aglomeração. Algo bastante parecido com o primado escolástico da conciliação dos contrários.                                  
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1.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não: o novo espírito científico. Trad. Joaquim José Moura Ramos. – São Paulo: Abril Cultural, 1978. P. 14
2.      Tal história pode ser encontrada em: BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 37
3.      BACHELARD, Gaston.  Idéalisme discursif, in.: Richerches philosophiques. 1934-1935. P. 22
4.      CANGUILHEM, Georges. Sur une épistémologie concordataire. In.:   BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 104.
5.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não. P. 139
6.      BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. P. 39
7.      BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. P. 37
8.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não. P. 18

domingo, 30 de setembro de 2012

Sobre a doxa

 
 
 
 
 
“A doxa é um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes, que se apresenta e se impõe como ponto de vista universal; o ponto de vista daqueles que dominam dominando o Estado e que constituíram seu ponto de vista em ponto de vista universal ao criarem o Estado.” (BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. In.: Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad.: Mariza Corrêa.  -  Campinas, SP: Papirus, 1996. P. 120)   
Arte: Alegoria do Bom Governo (1319) de Ambrogio Lorenzetti

sábado, 29 de setembro de 2012

Sobre o "verdadeiro começo..."

 

“Pode-se tirar disto a conclusão de que não há verdadeiro começo em Filosofia ou, antes, de que o verdadeiro começo filosófico, isto é, a Diferença, já é em sim mesmo Repetição.” (DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. – Rio de Janeiro: Graal, 2006. P. 190)

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Gilles Deleuze: algumas divagações sobre a doxa e a representação.





Por Danilo José Viana da Silva





“(...) é normal que a filosofia moderna, que levou muito longe a crítica da representação, recuse qualquer tentativa de falar no lugar dos outros. Cada vez que se ouve: ninguém pode negar... , todo mundo há de reconhecer que... , sabemos que vem uma mentira ou um slogan. Mesmo depois de Maio de 68 era comum, por exemplo, num programa de televisão sobre as prisões, que se fizesse falar todo mundo, o juiz, o guarda, o visitante, o homem da rua, todo mundo menos um preso ou um ex-preso.”1    



            Deleuze define a doxa, o senso comum, como a imagem de pensamento que se pressupõe a si mesma. Trata-se de um trabalho muito importante pensar sobre tal imagem, pois ela, o senso comum, identifica-se enquanto a gênese do próprio ato de pensar. Para Deleuze, o pensamento é uma questão fundamental. E, neste caso, ele irá se preocupar justamente com o problema dos pressupostos em Filosofia: não apenas dos pressupostos explícitos ou objetivos, mas também (eis os mais perigosos) com os pressupostos implícitos ou subjetivos.

            José Gil lembra que



O projeto crítico de Deleuze pretende ser mais radical do que todos os que o precederam, pretende subtrair todos os pressupostos, explícitos ou objetivos e implícitos ou subjetivos, no intuito de alcançar um verdadeiro começo. 2  



            Se Descartes tenta começar do zero, ou seja, se ele tenta começar a pensar sem pressupostos ou se, como nas palavras de Lyotard, “projeta a urbanização radical do pensamento: como no caso da grande cidade, devem-se derrubar os restos “mal traçados” legados pelo destino da história ao pensamento, para construir seu plano de uma vez, “desde o começo.”3  Isso mostra que Descartes se preocupou bastante com a questão do começo, pois, como lembra Deleuze, “começar significa eliminar todos os pressupostos.” 4

            Mas o problema que Deleuze constata nesta proposta de Descartes (começar do zero, começar sem pressupostos) é que ela não é assim tão radical quanto se pode imaginar. Livrar-se dos pressupostos objetivos será uma grande meta para ele. Descartes, nas palavras de Deleuze, irá “conjurar todos os pressupostos objetivos que sobrecarregam os procedimentos que operam por gênero e diferença.” 5 Não é por acaso que ele irá se recusar a definir o homem como um “Animal” “Racional”, pois se pressupõe que já se saiba o que tais conceitos querem dizer. Assim, tratam-se de pressupostos explícitos ou objetivos.

            Entretanto, Descartes não conseguirá se livrar dos pressupostos subjetivos ou implícitos. Deleuze lembra que no conceito de Cogito criado por Descartes há três pressupostos (os quais irão ser identificados por Deleuze e Guattari em O que é a filosofia? como componentes do conceito de Cogito cartesiano) que permanecem sem conceito:



(...) ele não escapa de pressupostos de outra espécie, subjetivos ou implícitos, isto é, envolvidos num sentimento, em vez de o serem num conceito: supõe-se que cada um saiba, sem conceito, o que significa eu, pensar, ser. 6  



            Eu, Pensar e Ser correspondem aos pressupostos implícitos do conceito de Cogito cartesiano: são tomados como se todo mundo já soubesse o que significa cada um deles. É justamente este tipo de pressuposto uma das maiores preocupações de Deleuze, pois eles atestam um tipo de consenso universal do pensamento ao nível de um “todo mundo sabe, ninguém pode negar, é a forma da representação e o discurso do representante.” 7  

            Simplesmente, tudo se desenrola como se todo mundo já soubesse o que significa pensar, por exemplo. Este senso comum é a forma por excelência da representação; não podemos também nos esquecer, neste aspecto, da crítica que Michel Foucault também realiza sobre a representação e seus efeitos mais capilares. O “ninguém pode negar que... todo mundo sabe que...” ou seja, o senso comum é indispensável para a lógica da representação e de seu discurso.

            Simplesmente, diz-se: Ele é o especialista em direitos humanos e, como tal, ninguém pode negar que ele pode falar sobre os mais variados efeitos de poder que os pobres e miseráveis sentem; ele, o especialista, é a pessoa mais competente para falar dos presos, dos drogados, dos doentes; ele, o médico, é o competente e pode falar do louco; ele, o médico, representa o louco por completo na lógica da representação; ele, o filósofo, é o que fala a verdade e tem afinidade com o verdadeiro... 

            Foucault vai se interessar mais pelos efeitos de poder que o discurso da representação engendra no corpo, por exemplo. Ele jamais desdenhou dos pressupostos implícitos, do senso comum e de sua relevância para a representação. Foucault também soube combater os seus efeitos, não é por acaso que ele soube como ninguém “a nos ensinar (como disse Deleuze ao próprio Foucault em Maio de 1972) algo fundamental: a indignidade de falar pelos outros.”

            E ele, Foucault, irá combater a representação, na medida em que em suas pesquisas, por exemplo, jamais um criminalista irá representar os detentos, jamais um médico irá falar pelos loucos, antes são os próprios loucos, os mendigos, os presos que irão falar e contar as suas experiências, eles não são mais representados ou levados a reboque por um especialista. O combate e a crítica à representação são problemas dos mais relevantes tanto em Deleuze quanto em Foucault. A noção de “saberes sujeitados” que encontramos em Foucault, por exemplo, corresponde a uma estratégia importante no combate à representação e seus efeitos:



Por “saberes sujeitados”, eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos. E foi pelo reaparecimento desses saberes de baixo, desses saberes não qualificados mesmo, foi pelo reaparecimento desses saberes: o do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do médico, mas paralelo e marginal em comparação com o saber médico, o saber do delinqüente, etc. – esse saber que denominarei, se quiserem, “o saber das pessoas” (e que não é de modo algum um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam) - , foi pelo reaparecimento desses saberes locais das pessoas, desses saberes desqualificados, que foi feita a crítica. 8



            Neste caso, podemos observar que a doxa pode engendrar os mais variados efeitos, os mais perversos efeitos, tal como, por exemplo, a denegação dos saberes diferenciais.  Tanto no pensamento quanto, por exemplo, solapando as vozes de todos aqueles que foram e são pisoteados e apagados mediante a representação. Eis algo que Foucault tanto combateu.

            No caso da filosofia de Deleuze, um dos grandes problemas por ele constatado é justamente a imagem de pensamento universal que perpassa toda a Filosofia moderna: “ele tem a forma de “todo mundo sabe... Todo mundo sabe, antes do conceito e de um modo pré-filosófico...” 9 Como se, por exemplo, ser e pensar fossem sentimentos, noções que todos nós sabemos e que já se incorporou em nós, constituindo, assim, um consenso universal. Trata-se, o senso comum, de uma “visão moral do mundo(...)” 10 E a consequência mais perversa desta imagem moral do mundo é o “aniquilamento” da diferença de pensar com o pensamento.

Não é por acaso que Deleuze define, em Diferença e Repetição, que um de seus principais objetivos é o de destruir esta imagem universal que, por exemplo, no caso do Cogito cartesiano (Eu penso, logo sou) “pode supor que esteja implicitamente compreendido o universal de suas premissas, o que ser e pensar querem dizer... e ninguém pode negar que duvidar seja pensar e, pensar, ser...” 11 Mas, vale lembrar, Descartes não é o único, pois o senso comum filosófico perpassa, para Deleuze, toda a filosofia enquanto o pensamento da representação.

Este tipo de pressuposto implícito perpassa toda a Filosofia: sobre a forma de um “é evidente que...” “todo mundo sabe que...”  “ninguém negará que...” etc. O que os pressupostos implícitos em Filosofia pressupõem é uma boa vontade do pensador, ele pressupõem uma boa vontade que ignora o fato de que eles (os pressupostos implícitos)  se insinuam “sub-repticiamente no discurso que é suposto criticá-lo.” 12  O pressuposto implícito corresponde a uma imagem de pensamento pré-filosófica, trata-se do senso comum em Filosofia. E, como lembra Deleuze,

Quando a Filosofia assegura seu começo com pressupostos implícitos ou subjetivos, ela pode, portanto, bancar a inocente, pois nada guardou, salvo, é verdade, o essencial, isto é, a forma deste discurso. 13     



            A filosofia que parte por pressupostos implícitos pressupõe uma comunhão de pensamento, mas o problema se dá quando aparece alguém que não se submete ao discurso da representação;

alguém que não se deixa representar e que também não quer representar coisa alguma. Não um particular dotado de boa vontade e de pensamento natural, mas um singular cheio de má vontade, que não chega a pensar nem na natureza e nem no conceito. 14 



            A natureza reta e a boa vontade legitimam os discursos absolutos da filosofia e da representação, é a cogitatio natura universalis. Mas o singular dotado de má vontade não se deixa representar e se recusa a aceitar o que todos aceitam e concordam como evidente. Ele (o singular dotado de má vontade) nega o que ninguém pode negar! Ele levanta questões concernentes “ao mais radical começo (...)”.15  Afirma a Diferença!  

                               

                                          
    
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1.      DELEUZE, Gilles. Rachar as coisas, Rachar as palavras. In. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. – Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. P. 114

2.      GIL, José. O Imperceptível Devir da Imanência: Sobre a Filosofia de Deleuze. Relógio D`água Editores, Maio de 2008. P. 25

3.      LYOTARD. Jean-François. Periferia In.: Moralidades pós-modernas. Trad.: Marina Appenzeller; revisão tec.: Roberto Leal Ferreira – Campinas, SP: Papirus, 1996. – (Coleção Travessia do Século) p. 25

4.       DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 189

5.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid

6.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid

7.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. P. 190

8.      FOUCAULT. Michel. Aula de 7 de janeiro de 1976. in. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão – São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 12

9.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid

10.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. P. 370

11.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. P. 190

12.  GIL, José. Ibid

13.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid

14.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. P. 191

15.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid






sexta-feira, 27 de julho de 2012

A Casa dos Mortos

Íntegra: Tempo sem experiência – Olgária Matos





ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA (POR PIERRE BOURDIEU)




Nosferatu: algumas divagações sobre a doxa e seus efeitos.








Danilo José Viana da Silva

                        



O filme Nosferatu: o vampiro da noite, dirigido em 1979 por Werner Herzog, (trata-se de uma versão diferente da de 1922) nos lembrou uma questão fundamental para a sociologia: o problema da relação entre a doxa e a ciência. Em uma das partes do filme a atriz principal, (Isabelle Adjani) Lucy, tenta explicar ao médico Dr. Van Helsing que a causa da peste que teria tomado conta da cidade era justamente o vampiro, o Conde Drácula. Mas o médico lhe diz que este tipo de coisas são superstições, e que hoje vivemos em um tempo de conhecimentos, de ciência, a qual havia refutado todas estas superstições.

A velha oposição entre ciência e senso comum, entre verdade e mito, e a “vitória” do primeiro sobre o segundo, é clara. Uma das características do objetivismo científico, por exemplo, é justamente a sua oposição ao senso comum, aliás, ele mesmo, em certo sentido, foi construído contra o senso comum. Uma das funções da ciência seria a de romper efetivamente com a doxa e com todos os “delírios”, e a linguagem objetivista iria ser posicionada contra as chamadas “linguagens delirantes” da poesia, por exemplo.

No caso do filme que pegamos para ilustrar estas divagações (a história toda se desenrola, pelo que parece, no final do século XIX ou na virada deste para o XX) podemos observar uma forte influência da ciência, das “descobertas” científicas e no seu poder para a recusa de qualquer tipo de superstições típicas do homem do campo: O homem da cidade é visto como um homem mais racional e os do campo como um  povoado ainda dominado pelas superstições, tais como a crença na existência de vampiros. O médico, Dr. Van Helsing, recusa-se a ajudar Lucy a combater o vampiro  ( o Conde Drácula) a grande causa da Peste Negra que já tinha tomado toda a cidade de Wismar.

Enfim, no final do filme, quando Lucy já havia sido vítima do vampiro e já estava morta, ( valendo lembrar que tal fato foi justamente a consequência do plano contido em um livro para eliminar o vampiro) foi que o médico, após ver Lucy morta na cama e o vampiro desacordado no chão pelo efeito dos raios do sol, acabou acreditando no que Lucy tanto lhe dizia: ou seja, a própria causa das mortes na cidade, o Conde Drácula. No final, é o próprio médico quem termina de eliminar o vampiro com uma estaca. Mas, já era tarde demais, muitas pessoas já tinham morrido.

O interessante desta parte do filme é justamente a exclusão, propiciada pela ciência, do senso comum. Como se a própria ciência, que no nosso caso seria a sociologia, fosse constituída contra a própria doxa. Uma das consequências dessa exclusão da doxa como forma de conhecimento e de construção do mundo social é justamente a construção de uma, por exemplo, sociologia do conhecimento que toma por conhecimento apenas o conhecimento teórico, o saber erudito. Eis um dos pontos fortes que sociólogos como Peter Berger tanto criticaram na sociologia do conhecimento levada a cabo por várias correntes do pensamento.

Para ele, seria necessária uma nova sociologia do conhecimento. Eis como ele a define:

A sociologia do conhecimento deve ocupar-se com tudo aquilo que é considerado “conhecimento” na sociedade. Basta este enunciado para se compreender que a focalização sobre a história intelectual é mal escolhida, ou melhor é mal escolhida quando se torna o foco central da sociologia do conhecimento. O pensamento teórico, as “idéias”, weltanschauungen não são tão importantes assim na sociedade. Embora todas as sociedades contenham estes fenômenos, são apenas parte da soma total daquilo que é considerado “conhecimento”. 1 



            Trata-se de uma redefinição da sociologia do conhecimento, esta agora não deve apenas se ocupar com o conhecimento erudito, mas também com o senso comum, com a doxa na vida cotidiana, pois ela tem uma importantíssima função na produção e reprodução do próprio mundo social.

            Muito embora não haja muita preocupação em se investigar as condições sociais de possibilidade da experiência dóxica do mundo social em Berger e Luckmann, devemos reconhecer a importância que a própria sociologia do conhecimento deve dar a experiência dóxica, ou seja, a experiência do mundo social como evidente, pois ela tem um papel muito forte na construção da realidade social.

Trata-se de um dos pontos importantes que podemos encontrar, em um ângulo bem diferente do de Peter Berger, em Bourdieu. Este não deixou de lado a importância da experiência primeira para a sociologia; algumas de suas preocupações (principalmente no que se refere a sua teoria da prática e, portanto, de um conhecimento praxiológico) são justamente as condições sociais de possibilidade da própria experiência primeira.



O conhecimento objetivista coloca a questão das condições de possibilidade da experiência primeira, revelando, assim, que essa experiência se define, fundamentalmente, pela não-colocação dessa questão, o conhecimento praxiológico inverte o conhecimento objetivista, colocando a questão das condições de possibilidade dessa questão (condições teóricas e, também, sociais) e mostra, ao mesmo tempo, que o conhecimento objetivista se define fundamentalmente, pela exclusão dessa questão: na medida em que ele se constitui contra a experiência primeira – apreensão prática do mundo social – o conhecimento objetivista se afasta da construção da teoria do conhecimento prático do mundo social e dela produz, ao menos, a falta, ao produzir conhecimento teórico do mundo social contra os pressupostos implícitos do conhecimento prático do mundo social. O conhecimento praxiológico não anula as aquisições do conhecimento objetivista, mas conserva-as e as ultrapassa, integrando o que esse conhecimento teve que excluir para obtê-las. 2



            Ou seja, a experiência prática é tomada por Bourdieu como um elemento muito importante para a sociologia. Este sociólogo chega a definir a importância da prática em sociologia como um habitus científico, ou seja, uma disposição para agir (independentemente de teoria) de determinada maneira, dada certas circunstâncias, tratando-se, então, de um tipo de

modus operandi  científico que funciona em estado prático segundo normas da ciência sem ter estas normas na sua origem: é esta espécie de sentido do jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no momento próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menos ainda a regra que permite gerar a conduta adequada. 3  



            Ao elaborar a sua teoria da prática e, portanto, de um conhecimento praxiológico do mundo social, Bourdieu irá retomar o objetivismo, mas não irá reproduzir uma de suas ingenuidades, qual seja, a consequência do não questionamento de seus próprios pressupostos: O objetivismo ao questionar as condições de possibilidade da experiência primeira não questiona os próprios pressupostos desse questionamento. O objetivismo subestimou demasiadamente a experiência prática do mundo social, afinal, ele foi constituído contra tal experiência. Neste caso, esta foi excluída, sem mais nem menos, da própria prática científica.

Se por um lado o objetivismo questiona as condições de possibilidade da experiência primeira, por outro lado ele ignora o próprio questionamento desse questionamento, ou seja, ele ignora o questionamento dos pressupostos do questionamento das condições de possibilidade da experiência primeira do mundo social. Eis uma consequência que leva a uma postura nada rigorosa de alguém que se entende por cientista social. O grande problema é que o próprio objetivismo foi produzido contra a própria experiência primeira, e, mediante tal relação, o objetivismo irá excluir a própria experiência primeira e irá combatê-la, sem ao menos refletir sobre a sua importância para as ciências sociais e para outras ciências também.

Várias são as consequências desastrosas desta exclusão: uma destas consequências é justamente o apego exagerado as regras dos protocolos burocráticos da ciência; Bourdieu, Chamboredon e Passeron lançam um exemplo muito claro de um efeito deste exagerado apego as regras científicas e à teorias sem ao menos se realizar um questionamento sobre as suas condições de utilização:



Se Uvarov tivesse dado plena liberdade ao assistente que, preocupado com a arrumação do laboratório, voltava a colocar, todas as manhãs, no seu lugar as locusta migratória de cor cinza que se misturavam com as locusta danica de cor verde, não teria percebido o fato que essas duas espécies constituíam, afinal, uma só – a locusta danica se tornava cinza quando deixava de ser solitária: não será verossímil que um grande número de técnicas tradicionais, quando são utilizadas sem controle epistemológico, destroem o fato científico à maneira do princípio da arrumação do assistente de Uvarov? O fascínio exercido pelo aparelho tecnológico, assim como o prestígio do aparato teórico, pode impedir uma justa relação aos fatos e à prova dos fatos. 4  



            Em outro aspecto de sua sociologia, Bourdieu não irá desdenhar dos efeitos e do poder da doxa na vida cotidiana. Ele irá dar bastante atenção aos mecanismos de violência simbólica; tratam-se de mecanismos muito sutis e que produzem e reproduzem relações muito difíceis de modificar:

Bourdieu: (...) em termos de dominação simbólica, a resistência é muito mais difícil, pois é algo que se absorve como o ar, algo pelo qual o sujeito não se sente pressionado; está em toda parte e em lugar nenhum, e é muito difícil escapar dela. Os trabalhadores vivem sob esse tipo de pressão invisível e, assim, adaptam-se muito mais à sua situação do que podemos supor. Modificar isso e muito difícil, especialmente hoje em dia. Com o mecanismo da violência simbólica, a dominação tende a assumir a forma de um meio de opressão mais eficaz e, nesse sentido, mais brutal. 5   



            O mecanismo de violência simbólica molda as pessoas de forma que elas não chegam nem a perceber. Aliás, como lembra Bourdieu, o próprio exercício do poder simbólico pode se dar sem que aqueles que o exerçam se dêem conta; “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” 6    Aí esta um dos pontos mais importantes da doxa: a disposição para se sujeitar e/ou exercer tal poder. Tratam-se de “atitudes para com coisas que estão abaixo do nível de consciência.” 7  

            O efeito de concertação sem maestro, ou melhor, o próprio consenso entre os agentes que ocupam posições em um determinado campo, define-se em torno da doxa. O próprio consenso, ou seja, a disposição para aceitar de pronto as regras do jogo e jogá-lo com gosto, como se o agente fosse feito para isso: Eis a doxa que pode ser encontrada em diversos campos que Bourdieu estudou: o campo jurídico, o artístico, o religioso, o pedagógico... A doxa e seus efeitos são de grande importância para a sociologia de Bourdieu, principalmente para se compreender os efeitos de dominação simbólica, a Illusion... Sem esquecer que as lutas no campo não são apenas em prol de sua conservação, mas também de sua transformação, muito embora esta (a transformação) seja menos frequente. 

            A doxa penal, por exemplo, corresponde a uma relação importantíssima para se compreender os estudos que o sociólogo Loïc Wacquant faz sobre a administração da miséria pelo cárcere implementada pela penalidade neoliberal. Para este sociólogo, os efeitos da doxa penal devem ser devidamente compreendidos, pois ela é propagada por toda uma rede midiática, acadêmica, política... em prol da maximização do Estado penal e policial e da implementação de uma verdadeira ditadura sobre os pobres e miseráveis.

            Por doxa penal podemos entender um certo paradoxo das políticas de “combate” ao crime implementadas pelo neoliberalismo:



A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. 8



            Ou seja, são justamente os efeitos da nova onda punitiva, do novo senso comum penal, ( qual seja, o próprio aumento da criminalidade mediante a intensificação de sua própria causa e a superlotação carcerária, fazendo com que os presos convivam em condições subumanas) que podemos observar. Por doxa penal, então, podemos entender uma opinião que é constantemente enunciada em forma de discurso “científico” e pomposo do mundo acadêmico que afirma que a única e eficaz maneira de se combater a criminalidade é com leis penais mais rígidas, com a maximização dos aparatos estatais de repressão, tais como o pesado investimento em policiamento, e na maior exigência de rigidez na forma de punir. E toda essa realidade está muito relacionada com a política de imposição de um mercado de trabalho desqualificado e despotencializador.

            Um dos efeitos mais perversos desta política neoliberal de “combate” ao crime é justamente a segregação dos pobres e miseráveis, enfim, a administração da miséria pelo cárcere e o aumento da criminalidade, pois a criminalidade não é combatida em suas causas.

Assim, podemos concluir que a doxa e os seus efeitos jamais podem ser desdenhados por um cientista social, ela é fundamental para se compreender a imagem de mundo que é inculcada, interiorizada e expressa pelos agentes que constituem a sociedade. Pelo menos, o erro cometido pelo médico do filme Nosferatu: o vampiro da noite não pode mais ser aceito, a doxa e seus efeitos sociais jamais podem ser ignorados. É ela que define, muitas vezes, o próprio rumo das políticas Estatais, por exemplo.

E isto não é apenas algo que deve ser levado em conta pelo sociólogo, mas também pelo filósofo: não é por acaso que Deleuze, em Diferença e Repetição, preocupou-se em pensar sobre os efeitos mais perversos que a doxa, que é por ele definida “como cogitatio natura universalis (...)” 9 engendra. Este senso comum que afirma uma natureza reta do pensamento, que presume uma boa vontade do pensador e uma disposição para o verdadeiro, é uma imagem do pensamento que Deleuze irá criticar e analisar com bastante precaução: a questão do pensamento é um problema fundamental na filosofia de Deleuze.  Sobre isto ainda iremos escrever, talvez seja um ponto para pensarmos no próximo texto.

Enfim, o que queremos dizer é que não temos mais o luxo de desdenhar do senso comum, seja em ciências sociais, seja em filosofia. Também devemos lembrar da importância que a experiência primeira tem para a sociologia, tal como vimos em Bourdieu. Não podemos, e aqui ilustro com o filme, cometer o erro do Dr. Van Helsing, o médico do filme.



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1.      BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: Tratado de Sociologia do Conhecimento. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis, Vozes, 17ª Ed. Vozes, 1985. P. 29.

2.      BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In.: Pierre Bourdieu: Sociologia. Organizador da coletânea: Renato Ortiz. Trad. Paula Montero e Alícia Auzmendi. – São Paulo: Ática, 1983. P. 47-48.

3.      BOURDIEU, Pierre. INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA. In,: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P.23

4.      BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 79-80.

5.       BOURDIEU, Pierre e EAGLETON, Terry. A doxa e a vida cotidiana: uma entrevista. In.: Um mapa da ideologia. Organização: Slavoj Zizek. Trad. Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. P. 270.

6.      BOURDIEU, Pierre. Sobre o Poder Simbólico. In,: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P.7-8.

7.      BOURDIEU, Pierre e EAGLETON, Terry. A doxa e a vida cotidiana: : uma entrevista. Ibid.

8.      WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Trad.: André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001. P. 7.

9.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. P. 192.