sábado, 23 de novembro de 2013

Pierre Bourdieu: algumas divagações sobre os espíritos de Estado






Por Danilo José Viana da Silva


Na medida em que aqueles que pretendem pensar o Estado empregam os esquemas jurídico-estatais de pensamento, os resultados de tal pensamento cumprem os mais importantes requisitos para a ratificação da doxa, ou seja, dos pressupostos incorporados e compartilhados por todos aqueles que não conseguem pensar o Estado a não ser por ele mesmo e que se sentem autorizados para emitir os mais diversos julgamentos sobre as pesquisas que não estão em conformidade com as categorias jurídico-estatais de pensamento.
É assim que os que não conseguem pensar o Estado a não ser mediante os esquemas jurídico-estatais de pensamento consideravelmente compartilhados (correspondendo, assim, a um típico exemplo de senso comum) podem se sentir

com a autoridade de dar crédito às análises propostas, com a condição de que estas despertem os pressupostos de sua sociologia espontânea, mas que são levados, por essa mesma razão, a contestar a validade de uma ciência que eles só aprovam na medida em que ela coincide com o bom senso.1

            O habitus, enquanto um conjunto incorporado (aquém de um plano ou intenção plenamente consciente para tal) de categorias de percepção e apreciação do mundo social, corresponde a uma noção que (no que diz respeito ao necessário trabalho de vigilância epistemológica que o cientista social deve realizar sobre si mesmo) exige que as categorias a partir das quais o Estado é frequentemente pensado sejam postas em questão.
            É neste sentido que, como Bourdieu adverte,

Tentar pensar o Estado é expor-se a assumir um pensamento de Estado, a aplicar ao Estado categorias de pensamento produzidas e garantidas pelo Estado e, portanto, a não compreender a verdade mais fundamental do Estado.2    

            Na medida em que a pesquisa que se pretende científica sobre o Estado pensa este mediante os esquemas estatais e jurídicos de percepção, tal pesquisa nada mais realiza que a reprodução de um pensamento de Estado, ou seja, o Estado pensa a si próprio mediante os pesquisadores que, neste caso, podem ser concebidos como a incorporação do Estado justamente por não conseguirem pensá-lo sem as categorias estatais e jurídicas de pensamento.
            Para o desenvolvimento de uma pesquisa científica sobre o Estado tais categorias estatais representam um verdadeiro obstáculo epistemológico na medida em que ao empregá-las corremos o sério risco “de ser pensados por um Estado que acreditamos pensar.”3  
            Em outras palavras, o Estado não existe apenas como exterioridade, mas também como interioridade. Como lembra Wacquant a propósito da sociologia de Bourdieu,

O Estado não existe apenas “lá fora”, mascarado em burocracias, autoridades e cerimônias: ele também vive “aqui dentro”, indelevelmente gravado em todos nós sob a forma das categorias mentais sancionadas pelo Estado e adquiridas pela escolarização. 4  

            As escolas e as universidades enquanto instâncias incumbidas, em grande parte, pelo Estado do trabalho de inculcar as categorias de percepção reconhecidas como legítimas mediante as quais o mundo social é inconscientemente construído pelos agentes não podem ser ignoradas na medida em que se pretende investigar o processo sóciosimbólico  mediante o qual os esquemas jurídico-estatais foram adquiridos ( aquém de uma intenção plenamente consciente para tal) pelos agentes sociais, seja na mais tenra idade, como na escola, seja a partir do ingresso no universo universitário, responsável por produzir o corpo especializado de profissionais autorizados pelo Estado, o qual garante determinado capital cultural para o exercício de determinada função mediante a emissão de diplomas oficiais com eficácia simbólica suficiente para fazer valer a posse de uma cultura que independe da contingência existencial, que independe da constante prova.
            A importância do trabalho de questionamento dos esquemas de percepção incorporados durante uma longa trajetória vem encontrar um reforço justamente no fato de que tais esquemas estatais são inculcados desde o período mais precoce de nossa educação, seja em uma família burguesa, seja na escola, onde as posturas corretas são impostas, as regras legitimas da gramática oficial são inculcadas, etc.
            É só com a ilusão da existência de um pesquisador plenamente consciente de “seus” atos que o necessário trabalho de vigilância epistemológica ( a qual vem encontrar uma de suas formas de realização no constante questionamento das categorias mediante as quais pensamos o mundo social) pode ser ignorado.
            O trabalho de inculcação das categorias estatais de pensamento e de ação pelas instâncias autorizadas pelo Estado corresponde, neste caso, a um dos princípios de explicação do efeito de homogeneização relativa necessária para o funcionamento das instituições burocráticas e jurídicas.
            É a aquisição de princípios produtores de práticas e de esquemas de percepção consideravelmente homogeneizados que permite que as práticas relativas a determinada instituição estatal sejam orientadas, aquém de um plano plenamente consciente, para determinados fins. É “a harmonização objetiva dos habitus (...) o que faz com que práticas possam ser objetivamente afinadas na ausência de qualquer interação direta e, a fortiori, de qualquer concertação explicita.”5   
            É justamente o trabalho de imposição, o qual não é reconhecido como tal, dos esquemas jurídicos-estatais que permitem que os mais acirrados confrontos doutrinários entre, por exemplo, os juristas, sejam realizados: na verdade, trata-se de um dos efeitos de uma formação relativamente homogeneizada que possibilita o acordo entre os juristas discordantes, acordo que é necessário para que eles possam se confrontar sobre as questões juridicas.
            Tratam-se de pares-concorrentes na medida em que todos eles disputam e jogam um jogo que, para eles (consideravelmente envolvidos), vale a pena ser jogado. Trata-se de uma concordância tácita sem a qual a própria discussão não existiria. Em outras palavras, tal concordância tácita, enquanto condição do jogo ou luta onde os esquemas jurídicos e estatais são empregados, pode ser definido como um senso comum, no sentido de um senso consideravelmente compartilhado pelos envolvidos.
            Como lembra Bourdieu

O senso comum é um fundo de evidências partilhadas por todos que garante, nos limites de um universo social, um consenso primordial sobre o sentido do mundo, um conjunto de lugares comuns (em sentido amplo), tacitamente aceitos, que tornam possíveis o confronto, o diálogo,  a concorrência, até mesmo o conflito, e entre os quais cumpre dar um lugar à parte aos princípios de classificação, tais como as grandes oposições que estruturam a percepção do mundo.6      

            Tais como os esquemas mediante os quais determinadas práticas podem ser reconhecidas e classificadas como legais ou ilegais, legitimas ou ilegítimas, oficiais ou oficiosas, etc. Estes esquemas classificatórios empregados nas mais diversas lutas entre agentes cujas competências são garantidas pelo Estado são produtos “da incorporação de estruturas das distribuições fundamentais que organizam a ordem social (estruturas estruturadas). Sendo por conseguinte comuns ao conjunto dos agentes inseridos nessa ordem, eles viabilizam o acordo em meio ao desacordo de agentes situados em posições opostas.”7
            Tratam-se de evidências compartilhadas pelos envolvidos na luta pelo reconhecimento, evidências que não podem ser recusadas sem que a própria luta seja comprometida. Um dos indícios mais presentes do senso comum compartilhado pelos concorrentes cúmplices pode ser expresso a partir do “escândalo suscitado por qualquer questionamento das evidências fundantes, essa crença primordial encontra-se bem mais profundamente arraigada, mais “visceral” e, por conta disso, muito mais difícil de desentranhar do que as crenças explícitas e explicitamente profanadas no campo.”8  
            E por corresponder a um conjunto de esquemas, de princípios de visão que encontram-se em estado incorporado e subtraídos do espaço do que pode ser pensado e questionado, que o trabalho de vigilância epistemológica sobre si deve ser constantemente posto em prática por todos os que pretendem pensar rigorosamente o Estado.
            Caso contrário, a pesquisa nada mais faz do que ratificar o senso comum, ou seja, o pensamento de Estado, as crenças compartilhadas pelos envolvidos em determinado universo social. É neste sentido que o cientista deve realizar uma verdadeira auto-subversão sobre o seu próprio pensamento, tal como constantemente fazia Albert Hirschman sobre o sistema conceitual que ele mesmo desenvolveu. 9
            É neste sentido, ou seja, submetendo os próprios esquemas de percepção mediante os quais a construção (realizada muitas vezes inconscientemente) do mundo e da ordem social é realizada, que uma pesquisa sobre o Estado pode encontrar-se mais próxima da orientação pelo que Gaston Bachelard conceitualiza de vigilância epistemológica sobre si, a qual corresponde a uma característica indispensável de um espírito verdadeiramente científico, o qual exerce constantemente “uma atividade de autocrítica, ou melhor, de autocriticismo.”10   
            E a necessidade de relembrar a importância da vigilância epistemológica sobre si está ligada ao fato de o obstáculo epistemológico representado pelo pensamento de Estado, ou seja, o ato de pensar o Estado a partir de categorias produzidas e garantidas pelo Estado, ser um dos instrumentos mais importantes para a reprodução da ordem social e estatal. O pensamento de Estado corresponde a um exemplo de como o Estado pode se pensar e se reproduzir mediante os próprios agentes produzidos, em grande parte, por ele. É assim que a sociologia de Bourdieu permite se pensar não apenas uma dominação física, mas também mental.
            E os juristas tiveram, como agentes estatais, um considerável papel no que tange a construção do Estado mediante as categorias de percepção por eles produzidas. Como lembra Bourdieu,

Fictio júris, o Estado é uma ficção de juristas que contribuem para produzir o Estado ao produzir uma teoria do Estado, um discurso performativo sobre a coisa pública. A filosofia política que produzem não é descritiva, mas produtiva e preditiva de seu objeto (...) O jurista, senhor de um recurso comum, as palavras, os conceitos, oferece os meios de pensar realidades ainda impensáveis (como, por exemplo, a noção de corporatio), propõe todo um arsenal de técnicas organizacionais, de modelos de funcionamento (...) 11
                    
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1.      BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 36
2.      BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996.p. 91
3.      Ibid
4.      WACQUANT, Loïc. Indicadores sobre Pierre Bourdieu. In.: O mistério do ministério. Org.: Loïc Wacquant. Trad. Paulo Cezar Castanheira – Rio de Janeiro: Revan, 2005. P. 31
5.      BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In.: Pierre Bourdieu: sociologia. Org.: Renato Ortiz. Trad. Paula Montero e Alícia Auzmendi. – São Paulo: Ática, 1983. P. 68
6.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 118-119
7.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 119
8.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 123
9.      Um considerável questionamento a que Hirschman submeteu os seus próprios conceitos e as relações entre eles, tal como a relação entre os conceitos de Saída e Voz , para citar apenas um exemplo, pode se encontrada em HIRSCHMAN, Albert O. Auto-subversão: teorias consagradas em xeque. Trad. Laura Teixeira Motta. – São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
10.  BACHELARD, Gaston. O racionalismo aplicado. Trad. Nathanael C. Caixeiro. – Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1977. P. 39
11.   BOURDIEU, Pierre. Da casa do rei à razão de Estado: um modelo da gênese do campo burocrático. In.:WACQUANT, Loïc. O mistério do ministério. P. 63