Por Danilo José Viana da Silva
Na medida em que
aqueles que pretendem pensar o Estado empregam os esquemas jurídico-estatais de
pensamento, os resultados de tal pensamento cumprem os mais importantes
requisitos para a ratificação da doxa,
ou seja, dos pressupostos incorporados e compartilhados por todos aqueles que
não conseguem pensar o Estado a não ser por ele mesmo e que se sentem
autorizados para emitir os mais diversos julgamentos sobre as pesquisas que não
estão em conformidade com as categorias jurídico-estatais de pensamento.
É assim que os que
não conseguem pensar o Estado a não ser mediante os esquemas jurídico-estatais
de pensamento consideravelmente compartilhados (correspondendo, assim, a um típico
exemplo de senso comum) podem se sentir
com a autoridade
de dar crédito às análises propostas, com a condição de que estas despertem os
pressupostos de sua sociologia espontânea, mas que são levados, por essa mesma
razão, a contestar a validade de uma ciência que eles só aprovam na medida em
que ela coincide com o bom senso.1
O habitus, enquanto um conjunto incorporado (aquém de um plano ou
intenção plenamente consciente para tal) de categorias de percepção e
apreciação do mundo social, corresponde a uma noção que (no que diz respeito ao
necessário trabalho de vigilância epistemológica que o cientista social deve
realizar sobre si mesmo) exige que as categorias a partir das quais o Estado é
frequentemente pensado sejam postas em questão.
É neste sentido que, como Bourdieu
adverte,
Tentar pensar o
Estado é expor-se a assumir um pensamento de Estado, a aplicar ao Estado
categorias de pensamento produzidas e garantidas pelo Estado e, portanto, a não
compreender a verdade mais fundamental do Estado.2
Na medida em que a pesquisa que se
pretende científica sobre o Estado pensa este mediante os esquemas estatais e jurídicos
de percepção, tal pesquisa nada mais realiza que a reprodução de um pensamento
de Estado, ou seja, o Estado pensa a si próprio mediante os pesquisadores que,
neste caso, podem ser concebidos como a incorporação do Estado justamente por
não conseguirem pensá-lo sem as categorias estatais e jurídicas de pensamento.
Para o desenvolvimento de uma
pesquisa científica sobre o Estado tais categorias estatais representam um
verdadeiro obstáculo epistemológico na
medida em que ao empregá-las corremos o sério risco “de ser pensados por um
Estado que acreditamos pensar.”3
Em outras palavras, o Estado não
existe apenas como exterioridade, mas também como interioridade. Como lembra
Wacquant a propósito da sociologia de Bourdieu,
O Estado não
existe apenas “lá fora”, mascarado em burocracias, autoridades e cerimônias:
ele também vive “aqui dentro”, indelevelmente gravado em todos nós sob a forma
das categorias mentais sancionadas pelo Estado e adquiridas pela escolarização.
4
As escolas e as universidades
enquanto instâncias incumbidas, em grande parte, pelo Estado do trabalho de
inculcar as categorias de percepção reconhecidas como legítimas mediante as
quais o mundo social é inconscientemente construído pelos agentes não podem ser
ignoradas na medida em que se pretende investigar o processo sóciosimbólico mediante o qual os esquemas jurídico-estatais
foram adquiridos ( aquém de uma intenção plenamente consciente para tal) pelos
agentes sociais, seja na mais tenra idade, como na escola, seja a partir do
ingresso no universo universitário, responsável por produzir o corpo
especializado de profissionais autorizados pelo Estado, o qual garante
determinado capital cultural para o exercício de determinada função mediante a
emissão de diplomas oficiais com eficácia simbólica suficiente para fazer valer
a posse de uma cultura que independe da contingência existencial, que independe
da constante prova.
A importância do trabalho de
questionamento dos esquemas de percepção incorporados durante uma longa trajetória
vem encontrar um reforço justamente no fato de que tais esquemas estatais são
inculcados desde o período mais precoce de nossa educação, seja em uma família burguesa,
seja na escola, onde as posturas corretas são impostas, as regras legitimas da gramática
oficial são inculcadas, etc.
É só com a ilusão da existência de
um pesquisador plenamente consciente de “seus” atos que o necessário trabalho
de vigilância epistemológica ( a
qual vem encontrar uma de suas formas de realização no constante questionamento
das categorias mediante as quais pensamos o mundo social) pode ser ignorado.
O trabalho de inculcação das categorias
estatais de pensamento e de ação pelas instâncias autorizadas pelo Estado
corresponde, neste caso, a um dos princípios de explicação do efeito de
homogeneização relativa necessária para o funcionamento das instituições burocráticas
e jurídicas.
É a aquisição de princípios
produtores de práticas e de esquemas de percepção consideravelmente
homogeneizados que permite que as práticas relativas a determinada instituição
estatal sejam orientadas, aquém de um plano plenamente consciente, para
determinados fins. É “a harmonização objetiva dos habitus (...) o que faz com que práticas possam ser objetivamente
afinadas na ausência de qualquer
interação direta e, a fortiori, de qualquer concertação explicita.”5
É justamente o trabalho de imposição,
o qual não é reconhecido como tal, dos esquemas jurídicos-estatais que permitem
que os mais acirrados confrontos doutrinários entre, por exemplo, os juristas,
sejam realizados: na verdade, trata-se de um dos efeitos de uma formação
relativamente homogeneizada que possibilita o acordo entre os juristas
discordantes, acordo que é necessário para que eles possam se confrontar sobre
as questões juridicas.
Tratam-se de pares-concorrentes na
medida em que todos eles disputam e jogam um jogo que, para eles
(consideravelmente envolvidos), vale a pena ser jogado. Trata-se de uma concordância
tácita sem a qual a própria discussão não existiria. Em outras palavras, tal concordância
tácita, enquanto condição do jogo ou luta onde os esquemas jurídicos e estatais
são empregados, pode ser definido como um senso comum, no sentido de um senso
consideravelmente compartilhado pelos envolvidos.
Como lembra Bourdieu
O senso comum é um
fundo de evidências partilhadas por todos que garante, nos limites de um
universo social, um consenso primordial sobre o sentido do mundo, um conjunto
de lugares comuns (em sentido amplo), tacitamente aceitos, que tornam possíveis
o confronto, o diálogo, a concorrência,
até mesmo o conflito, e entre os quais cumpre dar um lugar à parte aos
princípios de classificação, tais como as grandes oposições que estruturam a
percepção do mundo.6
Tais como os esquemas mediante os
quais determinadas práticas podem ser reconhecidas e classificadas como legais
ou ilegais, legitimas ou ilegítimas, oficiais ou oficiosas, etc. Estes esquemas
classificatórios empregados nas mais diversas lutas entre agentes cujas competências
são garantidas pelo Estado são produtos “da incorporação de estruturas das
distribuições fundamentais que organizam a ordem social (estruturas
estruturadas). Sendo por conseguinte comuns ao conjunto dos agentes inseridos
nessa ordem, eles viabilizam o acordo em meio ao desacordo de agentes situados
em posições opostas.”7
Tratam-se de evidências
compartilhadas pelos envolvidos na luta pelo reconhecimento, evidências que não
podem ser recusadas sem que a própria luta seja comprometida. Um dos indícios mais
presentes do senso comum compartilhado pelos concorrentes cúmplices pode ser
expresso a partir do “escândalo suscitado por qualquer questionamento das evidências
fundantes, essa crença primordial encontra-se bem mais profundamente arraigada,
mais “visceral” e, por conta disso, muito mais difícil de desentranhar do que
as crenças explícitas e explicitamente profanadas no campo.”8
E por corresponder a um conjunto de
esquemas, de princípios de visão que encontram-se em estado incorporado e subtraídos
do espaço do que pode ser pensado e questionado, que o trabalho de vigilância epistemológica
sobre si deve ser constantemente posto em prática por todos os que pretendem
pensar rigorosamente o Estado.
Caso contrário, a pesquisa nada mais
faz do que ratificar o senso comum, ou seja, o pensamento de Estado, as crenças
compartilhadas pelos envolvidos em determinado universo social. É neste sentido
que o cientista deve realizar uma verdadeira auto-subversão sobre o seu próprio pensamento, tal como constantemente
fazia Albert Hirschman sobre o sistema conceitual que ele mesmo desenvolveu. 9
É neste sentido, ou seja, submetendo
os próprios esquemas de percepção mediante os quais a construção (realizada
muitas vezes inconscientemente) do mundo e da ordem social é realizada, que uma
pesquisa sobre o Estado pode encontrar-se mais próxima da orientação pelo que
Gaston Bachelard conceitualiza de vigilância epistemológica sobre si, a qual
corresponde a uma característica indispensável de um espírito verdadeiramente
científico, o qual exerce constantemente “uma atividade de autocrítica, ou
melhor, de autocriticismo.”10
E a necessidade de relembrar a importância
da vigilância epistemológica sobre si está ligada ao fato de o obstáculo epistemológico
representado pelo pensamento de Estado, ou seja, o ato de pensar o Estado a
partir de categorias produzidas e garantidas pelo Estado, ser um dos
instrumentos mais importantes para a reprodução da ordem social e estatal. O
pensamento de Estado corresponde a um exemplo de como o Estado pode se pensar e
se reproduzir mediante os próprios agentes produzidos, em grande parte, por ele.
É assim que a sociologia de Bourdieu permite se pensar não apenas uma dominação
física, mas também mental.
E os juristas tiveram, como agentes estatais, um considerável papel no que tange a construção do Estado mediante as
categorias de percepção por eles produzidas. Como lembra Bourdieu,
Fictio júris, o Estado é uma ficção de juristas que
contribuem para produzir o Estado ao produzir uma teoria do Estado, um discurso
performativo sobre a coisa pública. A filosofia política que produzem não é
descritiva, mas produtiva e preditiva de seu objeto (...) O jurista, senhor de
um recurso comum, as palavras, os conceitos, oferece os meios de pensar
realidades ainda impensáveis (como, por exemplo, a noção de corporatio), propõe todo um arsenal de
técnicas organizacionais, de modelos de funcionamento (...) 11
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1. BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude;
PASSERON, Jean-Claude. Ofício de
Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas
Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 36
2. BOURDIEU,
Pierre. Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. Razões Práticas: Sobre
a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996.p. 91
3. Ibid
4. WACQUANT, Loïc. Indicadores
sobre Pierre Bourdieu. In.: O mistério
do ministério. Org.: Loïc Wacquant. Trad. Paulo Cezar Castanheira – Rio de
Janeiro: Revan, 2005. P. 31
5. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma
teoria da prática. In.: Pierre Bourdieu:
sociologia. Org.: Renato Ortiz. Trad. Paula Montero e Alícia Auzmendi. –
São Paulo: Ática, 1983. P. 68
6. BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio
Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 118-119
7. BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 119
8. BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 123
9. Um considerável questionamento a
que Hirschman submeteu os seus próprios conceitos e as relações entre eles, tal
como a relação entre os conceitos de Saída
e Voz , para citar apenas um
exemplo, pode se encontrada em HIRSCHMAN, Albert O. Auto-subversão: teorias consagradas em xeque. Trad. Laura Teixeira
Motta. – São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
10. BACHELARD, Gaston. O racionalismo aplicado. Trad.
Nathanael C. Caixeiro. – Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1977. P. 39
11. BOURDIEU, Pierre. Da casa do rei à razão de
Estado: um modelo da gênese do campo burocrático. In.:WACQUANT, Loïc. O mistério do ministério. P. 63