“Ah, o que vai ser
de mim, qual será a minha sina! É duro viver nessa incerteza, sem ter um
futuro” (DOSTOIÉVSKI,
Fiódor. Gente pobre. Editora 34,
2009. P. 18)
Por Danilo José
Viana da Silva
A
instituição escolar, na medida em que impõe as categorias de percepção e
apreciação do mundo enquanto universais, quer dizer, enquanto entidades
trans-históricas, contribuindo, assim, para a universalização de uma cultura de
classe (a cultura da classe dominante) que não se afirma enquanto tal, tende a
se constituir como uma das mais eficientes instâncias de reprodução da ordem
sociossimbólica e do sistema de distribuição desigual de capital cultural.
Uma
das contribuições da sociologia de Pierre Bourdieu consiste em identificar o
quanto o sistema escolar tende a contribuir para a reprodução da dominação
sociossimbólica na medida em que, com a emissão de diplomas, por exemplo,
contribui para ratificar a cultura dominante , ou seja, contribui para institucionalizar, mediante a
oficialização por diploma, a cultura adquirida, em grande parte, ainda em uma
idade bem precoce no seio da família, onde as disposições associadas a
postura e as predisposições legítimas são adquiridas via socialização familiar.
Os
conhecimentos associados aos ambientes mais escolásticos e que requerem uma
disposição “desinteressada” (tal como a disposição para apreciar os bens de
consumo artísticos reconhecidos como legítimos e distintos) podem ser tomados
como exemplo dos efeitos da educação propiciada pela família:
Conhecendo a relação que, pelo
fato da lógica da transmissão do capital cultural e do funcionamento o sistema
escolar, estabelece-se entre o capital cultural herdado da família e o capital
escolar, seria impossível imputar unicamente à ação do sistema escolar (nem,
por mais força de razão, à educação propriamente artística – quase inexistente,
como pode ser constatado com toda a evidência – que, porventura, tivesse sido
proporcionada por esse sistema) a forte correlação observada entre a
competência em matéria de música ou pintura (e a prática que ela pressupõe e
torna possível) e o capital escolar: de fato, este capital é o produto
garantido dos efeitos acumulados da transmissão cultural assegurada pela
família e da transmissão cultural assegurada pela escola (cuja eficácia depende
da importância do capital cultural diretamente herdado da família). Pelas ações
de inculcação e imposição de valor exercidas pela instituição escolar, esta
contribui também (por uma parte mais ou menos importante, segundo a disposição
inicial, ou seja, segundo a classe de origem) para constituir a disposição
geral e transponível em relação à cultura legitima que, adquirida a propósito
dos saberes e das práticas escolarmente reconhecidos, tende a aplicar-se para
além dos limites do “escolar”, assumindo a forma de uma propensão
“desinteressada” para acumular experiências e conhecimentos que nem sempre são
rentáveis diretamente no mercado escolar. 1
A
disposição inicial para a apreciação dos bens da cultura legítima não
corresponde a uma disposição inata, mas a um produto de uma longa trajetória
(que se dá desde a socialização familiar) onde as categorias legítimas de
apreciação e de percepção do mundo social foram inculcadas, depositadas no mais
profundo âmago dos agentes.
Neste
caso, o habitus enquanto um conjunto
incorporado de esquemas produtores de percepção e de práticas corresponde a um
produto da interiorização de determinada estrutura social e de determinada
condição de classe. Ou seja, o habitus corresponde
a uma “forma incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela
impõe.”2
O
que quer dizer que não se pode pensar a noção de habitus independentemente da noção de Campo como uma determinada estrutura de relações de força, enquanto
determinado espaço onde determinada espécie de capital é distribuída
desigualmente (lembrando que a distribuição desigual é justamente um dos
efeitos das lutas no interior do campo). É neste sentido que, para Bourdieu, a
oposição entre agente e estrutura social, a oposição entre indivíduo e
sociedade, não passa de uma falsa oposição que, ao invés de contribuir para as
ciências sociais, corresponde a um verdadeiro obstáculo que foi também
questionado por Norbert Elias em A sociedade
dos indivíduos.
Alguns
dos efeitos mais perniciosos dessa falsa oposição podem ser exemplificados na
oposição entre a noção de individuo racional e livre das determinações sociais,
de um lado, e, de outro, o estabelecimento de uma estrutura que toma as ações
dos agentes enquanto seus meros reflexos.
Neste
caso, segundo o espaço social constituído por uma distribuição desigual de
propriedades pertinentes, não se pode ignorar as ações dos agentes (reduzidos a
meros epifenômenos das estruturas pela tradição estruturalista) nas lutas para
modificar ou conservar tal sistema de distribuição, e o quanto estas ações são
engendradas pelo habitus como um
produto das próprias condições de existência explicáveis, em grande parte,
pelos efeitos das distribuições desiguais de determinadas espécies de capitais.
Assim,
não se pode ignorar o próprio sistema de distribuição desigual de propriedades
associadas a cultura reconhecida como legítima, e o quanto essa desigual
distribuição também está estruturada geograficamente em um espaço social
hierarquizado:
Ou dito em outras palavras, a
distância social real de um grupo a determinados bens deve integrar a distância
geográfica que, por sua vez, depende da distribuição do grupo no espaço e, mais
precisamente, de sua distribuição em relação aos “núcleos dos valores”
econômicos e culturais (...) 3
A
distância dos dominados aos bens da cultura dominante e reconhecidos ( pelos
que estão munidos dos esquemas adequados para tal, pois foram produzidos pelo
próprio universo no qual eles atuam) como
bens dotados de um alto grau de raridade se define tanto pelo fato deles (os dominados) não terem passado ( e de não terem ao menos a oportunidade
para tal) por uma educação caracterizada pela sua raridade, quanto pelo sistema
de distribuição das propriedades de acesso aos bens legítimos expresso por um
espaço geograficamente hierarquizado segundo a própria relação de proximidade
com os bens reconhecidos como raros e distintos.
É assim que, por exemplo, a
distância dos agricultores aos bens de cultura legítima não seria tão imensa
se, à distância propriamente cultural que é correlata de seu baixo capital
cultural, não viesse juntar-se o afastamento geográfico resultante da dispersão
no espaço que caracteriza esta classe. 4
Estando
distantes culturalmente e geograficamente da cultura reconhecida como legítima,
e merecedora dos mais nobres trunfos pelo sistema escolar e universitário, os
filhos de boias frias no interior de Pernambuco, por exemplo, podem se encontrar
duplamente excluídos do acesso a cultura reconhecida como legítima e universal
por aqueles que incorporaram os princípios de visão relativos a tal cultura, e
que, por isso, são produtos e depositários dessa cultura.
E
tais efeitos de exclusão são fortalecidos pelo próprio sistema escolar,
mediante, por exemplo, os mais diversos vereditos professorais que se expressam
nas formas de conselhos, por exemplo, “isso não é para você”. Estando distantes
tanto culturalmente quanto geograficamente do acesso às grandes bibliotecas,
aos cinemas, aos teatros, aos centros culturais, etc. os dominados estão
duplamente excluídos do acesso a cultura reconhecida pelo sistema escolar e
pelas instâncias universitárias.
Sendo
o habitus um produto das condições de
classe que se expressa por determinadas disposições (a disposição para ir ao
teatro, para ir a biblioteca, para ir ao cinema cult, etc.) pode-se compreender
que a indisposição para a apreciação dos bens raros da cultura dominante que se
apresentam como universais (o que explica, em grande parte, os mais variados fetichismos relativos a posse de uma cultura reconhecida como elevada) não corresponde a uma característica inata, mas a
efeitos de dominação decorrentes, em grande parte, da distribuição desigual de
capital econômico e cultural que é um produto das relações de força que
constituem as bases da sociedade.
Quando os poderes estão
desigualmente distribuídos, em vez de se mostrar como universo de possíveis
igualmente acessíveis a todo sujeito possível – postos a ocupar, estudos a
fazer, mercados a conquistar, bens a consumir, propriedades a trocar etc. - , o
mundo econômico e social se apresenta como um universo banalizado, semeado por
injunções e proibições, por signos de apropriação e exclusão, por sentidos
obrigatórios ou barreiras instransponíveis, numa palavra, profundamente
diferenciado, sobretudo conforme o grau em que propõe oportunidades estáveis e
de modo a favorecer e a preencher expectativas estáveis. 5
Essa
distribuição desigual de propriedades pertinentes que constitui o espaço social
enquanto um espaço hierarquizado (o que pode ser observado, por exemplo, em
virtude dos preços dos imóveis localizados próximos dos ambientes mais
distintos) corresponde a um dos princípios de explicação dos efeitos da
violência simbólica, dessa violência silenciosa que os dominados sofrem quando,
por exemplo, entram em contato com os universos reconhecidos pela cultura
dominante, ou, até mesmo, quando são obrigados a entrar em contato com os
escalões burocráticos e jurídicos juntamente com a linguagem protocolar
característica desses escalões.
Tal
desigualdade de distribuição também pode ser tomada como um princípio de
explicação das tomadas de posição referente ao investimento no futuro, a
disposição para se investir no futuro (efeito da disposição para se investir em
determinado jogo), ou das disposições para não se investir em nada que possa
modificar uma vida de exclusão e de proibições (tal como acontece, por exemplo,
com alguns filhos de boias frias – vítimas das políticas neoliberais da
imposição do trabalho da miséria e da flexibilização dos direitos trabalhistas
– herdam a profissão do pai, tratando-se
de um caso onde o herdeiro é possuído pela herança que ele herda).
Sob suas diferentes espécies, o
capital é um conjunto de direitos de preempção sobre o futuro, garante a alguns
o monopólio de certos possíveis que, no entanto, encontram-se oficialmente
garantidos a todos (como o direito a educação). Os direitos exclusivos
consagrados pelo direito constituem apenas a forma visível e explicitamente
garantida desse conjunto de oportunidades apropriadas e de possíveis antecipados,
logo convertidos, para os demais, em proibições de direito ou em
impossibilidades efeitos, pelos quais as relações de força atuais se projetam
sobre o futuro, orientando, por sua vez, as disposições presentes. 6
O
investimento no futuro está relacionado a disposição para tal, que, por sua
vez, é um produto da incorporação de determinada estrutura de oportunidades que
tende a constituir as grandes expectativas. E aqueles que estão objetivamente
excluídos das condições de acesso a cultura sofrem os mais perversos efeitos da
dominação econômica e simbólica (juntamente com os efeitos do racismo da
inteligência que tal dominação engendra); tal como a perpetuação das
desigualdades sociais. Os dominados, por não possuírem um considerável poder
sobre as oportunidades, por não possuírem uma considerável margem de manobra
sobre futuro, sobre as oportunidades que
comandam as suas expectativas, as aspirações, o futuro, tendem a constituir
expectativas de acordo com os limites e
condições de existência caracterizadas pela exclusão tanto subjetiva
quanto objetiva das condições de acesso aos espaços mais reconhecidos da
cultura e que tendem a se expressar pelos efeitos das proibições silenciosas
“isso não é para você”, “isso não é para mim”.
O
habitus, por ser a interiorização
inconsciente de uma determinada condição de existência, tende a se adequar as
próprias condições das quais ele é um produto. É neste sentido que os dominados
tendem a reproduzir inconscientemente a sua própria dominação. E a instituição escolar, longe de
ser uma instância “neutra”, contribui para a imposição da cultura dominante e
para a resignação dos dominados (“não tenho capacidade, paciência”),
contribuindo para reproduzir, assim, a própria dominação; assim como a religião
tende a produzir, como afirma Max Weber, “às pessoas felizes, a teodiceia de
sua sorte”7 , a instituição escolar tende a produzir a teodiceia da
sorte dos dominantes.
É
neste caso que a sociologia de Bourdieu (na medida em que possibilita se
compreender as relações mais intricadas de dominação que encontram o seu
reforço no trabalho de inculcação das categorias de percepção, de apreciação,
de ação e de construção do mundo social) corresponde a uma potente arma contra
a dominação que também se da dentro do mais profundo âmago dos agentes sociais.
É
assim que tal sociologia permite se pensar, como lembra Wacquant a respeito,
que “los sistemas sociales son productos sociales que contribuyen a hacer el
mundo, que no sólo reflejan las relaciones sociales sino que ayudan a constituirlas, entonces, dentro de
ciertos límites, es posible transformar al mundo transformando su
representación.” 8
É
assim que cabe apelar a uma Realpolitik que
afirma ( mediante uma investigação
científica da distribuição desigual das propriedades pertinentes no espaço
social e seus efeitos)
como seu objetivo trabalhar para
favorecer em todo lugar e por todos os meios o acesso de todos os instrumentos
de produção e de consumo dos acervos históricos instituídos como universais
pela lógica das lutas internas dos campos escolásticos (evitando constituí-los
em fetiches e buscando desentranhá-los, por uma crítica impiedosa, de tudo o
que devem à exclusiva função social de legitimação). 9
Contra
a vulgata neoliberal de precarização das
escolas públicas em favor do fortalecimento das grandes e reconhecidas escolas
privadas (monopólio dos que possuem as condições para nelas ingressar) a
sociologia de Bourdieu possibilita diversos instrumentos de combate, onde a
transformação social não deve apenas se dá nas estruturas objetivas, mas nas
estruturas mentais incorporadas e depositadas no mais profundo âmago dos
agentes sociais. A sociologia de Bourdieu corresponde a uma das armas mais
potentes contra a naturalização da desigualdade social.
______________
1. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do
julgamento. Trad. Daniela Kern;
Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 27
2. BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. P. 97
3. BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. P. 114
4. BOURDIEU, Pierre. Ibid
5.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio
Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 275
6.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 276
7. WEBER, Max. Sociologia das religiões. Trad. Cláudio J. A. Rodrigues. – 1.ed. –
São Paulo: Ícone, 2010. P. 14
8. WACQUANT. Loïc. Hacia uma
praxeología social: La estrutura y la lógica de la sociologia de Bourdieu. In.:
BOURDIEU, Pierre e WACQUANT. Loïc. Una invitación a la sociologia reflexiva. –
2ª ed. 1ª reimp. – Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. P 39
9.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 98