segunda-feira, 18 de abril de 2016

Sobre a piedosa hipocrisia jurídica





Por Danilo José Viana da Silva




A piedosa hipocrisia como “uma homenagem que o vício tributa a virtude” (BOURDIEU, Pierre. Os juristas: os guardiões da hipocrisia coletiva.) denota a crença, consideravelmente compartilhada pelos envolvidos nas lutas jurídicas, na eficácia simbólica do direito como um produto absolutamente autônomo as pressões políticas, econômicas...ou seja, na crença no campo jurídico e nos seus produtos como entidades transhistóricas.


Neste sentido, a eufemização dos interesses particulares de seus envolvidos – o que inclui também todo um conjunto de entidades, instituições e órgãos, tais como a OAB, o MP, Poder Judiciário  -   pode ser tanto mais eficaz simbolicamente quanto mais capital simbólico eles possuírem (uma das possibilidades – não a única – de medição do nível de capital simbólico de um agente integrante do campo é a consideração do capital simbólico atrelado a posição que ele ocupa em seu interior).


Levando isso em conta, um agente do campo jurídico que goza de um considerável volume de capital de reconhecimento entre seus pares pode jogar com as regras do jogo de uma maneira equivalente ao modo como, na sociedade Cabila, como lembra Mouloud Mammeri fazendo referência a crença compartilhada por essa sociedade, o amusnaw pode transgredir a regra “visto que podia observá-la com perfeição, (e) porque vê mais longe.”(Diálogo sobre a poesia cabília: entrevista de Mouloud Mammeri a Pierre Bourdieu. In.: Revista de sociologia e política. n. 26: 61-81. JN. 2006. P. 67).

Os interesses políticos e econômicos dos juristas que, sem o trabalho de transfiguração jurídica, seriam reconhecidos como “mesquinhos”, “oportunistas”, é realizado em nome da crença nos produtos jurídicos tomados como universais transhistóricos, como entidades puras.


É assim que os agentes do campo jurídico podem jogar com as regras do jogo para a realização de seus interesses particulares e ao mesmo tempo prestar homenagens ao universal. É assim que eles podem jogar com as regras do jogo com a aparência de jogar segundo as regras, ou, como lembra Bourdieu, “a piedosa hipocrisia jurídica é uma homenagem que os interesses específicos dos juristas tributam à virtude jurídica.” (BOURDIEU, Pierre. Op. Cit.)