Por Danilo José Viana da Silva
A piedosa hipocrisia como “uma homenagem que o vício tributa a virtude”
(BOURDIEU, Pierre. Os juristas: os guardiões da hipocrisia coletiva.) denota a
crença, consideravelmente compartilhada pelos envolvidos nas lutas jurídicas,
na eficácia simbólica do direito como um produto absolutamente autônomo as
pressões políticas, econômicas...ou seja, na crença no campo jurídico e nos
seus produtos como entidades transhistóricas.
Neste sentido, a eufemização dos interesses particulares de seus
envolvidos – o que inclui também todo um conjunto de entidades, instituições e
órgãos, tais como a OAB, o MP, Poder Judiciário
- pode ser tanto mais eficaz simbolicamente
quanto mais capital simbólico eles possuírem (uma das possibilidades – não a
única – de medição do nível de capital simbólico de um agente integrante do
campo é a consideração do capital simbólico atrelado a posição que ele ocupa em
seu interior).
Levando isso em conta, um agente do campo jurídico que goza de um
considerável volume de capital de reconhecimento entre seus pares pode jogar
com as regras do jogo de uma maneira equivalente ao modo como, na sociedade Cabila,
como lembra Mouloud Mammeri fazendo referência a crença compartilhada por essa
sociedade, o amusnaw pode transgredir
a regra “visto que podia observá-la com perfeição, (e) porque vê mais
longe.”(Diálogo sobre a poesia cabília: entrevista de Mouloud Mammeri a Pierre
Bourdieu. In.: Revista de sociologia e política. n. 26: 61-81. JN. 2006. P. 67).
Os interesses políticos e econômicos dos juristas que, sem o trabalho de
transfiguração jurídica, seriam reconhecidos como “mesquinhos”, “oportunistas”,
é realizado em nome da crença nos produtos jurídicos tomados como universais
transhistóricos, como entidades puras.
É assim que os agentes do campo jurídico podem jogar com as regras do
jogo para a realização de seus interesses particulares e ao mesmo tempo prestar
homenagens ao universal. É assim que eles podem jogar com as regras do jogo com
a aparência de jogar segundo as regras, ou, como lembra Bourdieu, “a piedosa
hipocrisia jurídica é uma homenagem que os interesses específicos dos juristas
tributam à virtude jurídica.” (BOURDIEU, Pierre. Op. Cit.)