terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Espinosa: uma filosofia da imanência


Danilo José Viana da Silva

             Na modernidade, Espinosa, ao lado de Maquiavel e Marx, faz parte de uma tradição de pensamento que se recusa a afirmar o comando da transcendência, o comando de conceitos que supostamente existiriam acima deste mundo. Há, em Espinosa, “uma filosofia da imanência.” 1
            Em outros termos, Espinosa recusou-se a afirmar a existência de seres exteriores acima deste mundo. Primeiramente, em seu pensamento não há a reprodução de uma substância ou Deus transcendente criador do mundo. Deus, para Espinosa, é imanente e, consequentemente, não se trata de uma causa exterior. O Deus espinosano é uma deus do mundo, pois coincide com os processos produtores de tudo o que existe.
            Não se trata de um panteísmo, onde Deus seria idêntico aos modos, ou seja, finito; mas se expressa mediante um desses modos e contém, em sua infinidade tudo o que há. Natureza naturante é a atividade que afirma-se por uma infinidade de processos. Os efeitos que surgem dessa atividade expressam a mesma natureza como natureza naturada. São efeitos imanentes, são os modos. Assim, como fala  o filósofo Claudio Ulpiano em uma de suas aulas, “quando Espinosa pensa Deus, ele rompe com a teologia tradicional”, ou melhor, transcendental. Deus, para Espinosa, “existe segundo uma necessidade da sua própria natureza, age também em virtude de uma necessidade da sua própria natureza, quer dizer, com uma absoluta liberdade.” 2 Diferentemente do homem, que não é absolutamente livre, pois sua potência de agir pode ser aumentada ou diminuída conforme a afecção (afeto).
Os corpos, para Espinosa, nunca deixam de ser afetados. Quando dois corpos são afetados por alegria e nossa potência de agir é aumentada,  houve a relação entre estes corpos mediante um encontro. A ampliação de potência decorre de uma nova composição entre as relações que formam um tipo de terceiro indivíduo. “Com efeito, se, por exemplo, dois indivíduos de natureza inteiramente igual se juntam, eles compõem um indivíduo duas vezes mais potente do que cada em deles considerado separadamente.” 3  
Para Espinoza, enquanto Deus não é coagido por causas exteriores, o homem pode ser coagido a fazer aquilo que ele não considera ser bom ou útil para ele:
Ninguém, portanto, a não ser que seja dominado por causas exteriores e contrárias à sua natureza, descuida-se de desejar o que lhe é útil, ou seja, de conservar o seu ser. Quero, com isso, dizer que não é pela necessidade de sua natureza, mas coagido por causas exteriores, que alguém se recusa a se alimentar ou se suicida, o que pode ocorrer de muitas maneiras. 4

            Nestes termos, as práticas pedagógicas atuais, por exemplo, com suas técnicas de coação, como as provas e os testes, impõem o que considera ser útil, generaliza o que cada um julga ser útil e, consequentemente, estabelece-se como uma pedagogia ou docência triste, palavra de ordem que afasta as pessoas daquilo que elas são capazes. Trata-se de uma pedagogia ou docência dominadora.                                     
            O outro ponto que brevemente tocaremos aqui, corresponde aos dois atributos que são percebidos pelo intelecto como constituindo a essência da substância, ou seja, extensão e pensamento. Em Espinoza, diferentemente de Descartes, corpo e mente são modos da substância, e que mesmo sendo distintos não se relacionam causalmente:
Nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem  a mente determinar o corpo ao movimento ou ao repouso, ou a qualquer outro estado (se é que isso existe). 5
           
Em Espinosa, há um paralelismo entre corpo-mente, há um tipo de correspondência entre tais modos ou modificações finitas da substância.  Já Descarte irá pensar corpo e mente como substâncias distintas que interagem uma com a outra. Para este último, assim, a ação da alma equivale ao padecer do corpo ou o inverso: corpo e mente agiriam um sobre o outro, ou seja, hierarquia. É isto que Espinosa não irá reproduzir, pois, tal pensamento concebe facilmente uma relação hierárquica na qual a mente, como superior, agiria sobre o corpo, o qual seria o inferior.
O pensamento cartesiano também concebe a existência do corpo e mente como duas substâncias distintas; isto também será duramente combatido por Espinosa, visto que, para ele, “não podem existir várias substâncias, mas tão-somente uma única substância.” 6   A qual é imanente, nunca transcendente.
Espinosa, assim, rompe com toda uma tradição de pensamento que pensava a relação entre corpo e mente em termos hierárquicos, onde uma agiria sobre a outra, uma seria superior e outra seria inferior. Este grande filósofo afirma o ser humano como efeito finito de uma causa imanente e infinita, que, por isso mesmo, nele se exprime e é tido como uma potência causal. A potência humana é pensada como expressão da potência infinita da natureza.
Potência, para Espinosa, também é princípio de afecção. Partindo da perspectiva que afirma o paralelismo mente-corpo, afirmamos, então, que o poder de percepção e pensamento da mente aumenta proporcionalmente à capacidade do corpo de ser afetado. Então, o meu corpo pode ser afetado por forças que tanto podem aumentar como diminuir minha potência de agir.
A alegria, ou melhor, um encontro alegre seria uma afecção que aumenta minha capacidade de pensar e agir, portanto, trata-se de aumento de potência, enquanto que a tristeza implica uma diminuição de potência, um encontro triste é aquele que diminui minha capacidade de pensar e agir. Assim, poderemos também pensar, em Espinosa, as subjetividades como expressão dos afetos que a constituem, das forças que animam. Trata-se de um campo de afetos que são inapreensíveis pelas perversas estratégias do mundo da representação:  mundo para o qual a democracia estaria sempre subordinada ao quádruplo julgo.  
Mas, o pensamento de Espinosa é evitado ainda hoje, assim como, por exemplo, Maquiavel e Marx – autores que são quase totalmente ignorados nos cursos de direito aqui em Recife – pois eles não contribuíram para a afirmação da transcendência que comanda, do Estado como entidade flutuante e de seres exteriores ao próprio mundo em que vivemos.  
O pensamento de Espinosa pode ser desconfortável para todos aqueles que pensam a política reduzida às dicotomias indivíduo e Estado, sujeito e Estado, estas são abstrações e delícias dominadoras que encantam a muitos amantes do pensamento oficial. A política, para Espinosa, é compreendida quando esses dois, indivíduos e Estado, são postos em relação com a Multitude. Este é o verdadeiro agente político. São as relações entre os indivíduos, a sociabilidade entre os indivíduos que determina os poderes e os direitos, jamais um direito natural flutuante, isolado, vindo do exterior, do além mundo.
Para finalizar, gostaríamos de alertar a todos os intelectuais, conservadores & Cia de que ao ler Espinosa, ou então um retrato seu pintado por Deleuze ou Negri,  (para citar apenas dois exemplos) tomem cuidado: estes livros podem, nas festas natalinas, como lembra Negri, fazer com que “se engasguem com o peru da ceia...” 7              _________________________     
1.       NEGRI, Antonio. Subjetividade e Política na atualidade. Trad.: Izabel F. M. Borges. Estados gerais da psicanálise: Segundo Encontro Mundial – Rio de Janeiro – outubro 2003. P. 7
2.       SPINOZA, Benedictos. Tratado Político. Trad. Norberto de Paula Lima. – São Paulo: Ícone, 1994. P. 33
3.       SPINOZA, Benedictos. Ética. Trad.: Tomaz Tadeu. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. P.169
4.       SPINOZA, Benedictos. Ética. P. 170
5.       SPINOZA, Benedictos. Ética. P. 100
6.       SPINOZA, Benedictos. Op. cit. p. 15
7.       NEGRI, Antonio. Baruch Spinoza: A potência de um materialista. Trad.: Adriano Pilatti