Danilo José Viana da Silva
Tentar expor a microssociologia ou sociologia infinitesimal de Gabriel Tarde através dela mesma pode não ser lá muito esclarecedor. Neste caso, pensamos ser bem melhor expor de maneira bem exemplificativa esta nova maneira de investigar o social e, até mesmo, utilizando uma linguagem não científica algumas vezes.
Então, vamos lá:
Na feira realizada semanalmente no centro da cidade de Dantara, um dos feirantes disse à um cliente que lhe perguntou o preço dos tomates: “ Ah, o tomate não é barato! É baratão.
Aí o cliente falou: baratão? Nunca ouvi esta palavra antes, mas vou adotar. (disse rindo)
Aí outro feirante ouviu a conversa e passou também a adotar a palavra baratão e começou a gritar no meio da feira: “Atenção! Atenção! Tomates baratão! Tomates baratão! Podem chegar!
E outro feirante ouviu a palavra, mas achou feia e gramaticalmente estupida; mas, depois de duas horas, começou a gritar: Tomates baratão! Aproxime-se, dei-me atenção!
E daí uma onda de imitação propagou bastante essa palavra; daí em diante, quase todos já estavam bem familiarizados com a palavra baratão, tomates baratão! Aliás, ela passou a ser empregada não apenas em relação aos tomates, mas à todo tipo de produto que estava à venda na feira. Até mesmo os clientes saiam da feira falando ela, mesmo que sem querer. Ou seja, eles falavam sem ter a nítida e consciente ideia de que estavam imitando, ou melhor, propagando via imitação uma palavra nova que foi disparada na feira.
Mas, outro feirante achou essa palavra (baratão) já muito desgastada, e acabou inventando outra palavra para atrair os clientes na movimentada feira. Ele se recusou a propagar a palavra baratão novamente e criou outra palavra: barataria, e começou a gritar: aconcheguem-se! Venham cá ver estas laranjas, estão uma barataria só!
Daí os outros feirantes começaram a dar atenção à esta novidade que acabou de ser disparada na feira: barataria. Em cerca de dois meses, boa parte dos feirantes já estava propagando a palavra barataria, a qual, pouco a pouco, foi substituindo a antiga palavra (baratão).
Muitos dos feirantes nem mesmo se davam conta do que faziam, eles imitavam, também inventavam sem nem mesmo ter disso consciência, outas vezes eles copiavam gírias de compradores estrangeiros, que nem português falavam lá muito bem.
Tiago seixas Themudo vai exemplificar isso de maneira bastante interessante, ele busca na literatura um belo exemplo de como uma novidade é propagada via contágio imitativo, sem que os próprios agentes sociais se deem conta disso, é um exemplo dado por Melville que ele cita em nota de rodapé:
“(turco): - Humildemente, senhor – disse ele – ontem fiquei pensando em Bartleby, e pensei que, preferisse ele tomar todos os dias...
(Advogado): - Então você também adotou a palavra – disse eu ligeiramente nervoso.
(turco): - Humildemente senhor, que palavra?... – Que palavra, senhor?
(Advogado): - A palavra, essa, turco: disse eu – É essa.
(turco): - Ho! Preferir? Ho, sim, palavra esquisita. Eu nunca a emprego. Mas, como ia dizendo, se o senhor prefere...
(Advogado): - Turco – atalhei – quer fazer o favor de retirar-se?
(turco): - Ho, pois não, se o senhor prefere que eu me retire.
Enquanto ele abria a porta para retirar-se, Nippers viu-me de relance sentado à escrivaninha e perguntou-me se eu preferia que um certo papel fosse copiado em papel azul ou branco. [...] Era claro que ela (a palavra preferir) caíra da língua involuntariamente, e pensei comigo mesmo, que certamente eu devia livrar-me de um demente, que até certo ponto já transtornara a língua, quando já não as cabeças, a minha e a de meus escreventes.” 1
Este é um bom exemplo, assim como o da feira, para entendermos a lógica da formação, dos movimentos, muitas vezes, imperceptíveis na sociedade. Esta é constantemente movimentada pelas ações dos agentes sociais, ações que, muitas vezes, nem mesmo chegamos a perceber, mas são bastante importantes, pois são eles que gestam as futuras transformações. Tarde irá dar toda uma importância especial à estes pequenos acontecimentos, eis um ponto que o diferencia de todo o legado da sociologia positivista que tachava estes pequenos acontecimentos de superfluidades, de meras flutuações que não devem ser levadas em conta, pois tudo aconteceria conforme as prévias grandes representações do social, das quais os agentes seriam os reflexos.
Tarde, assim, da toda uma importância as invenções anônimas, vistas como insignificantes e supérfluas pela sociologia positivista, a qual, partindo de grandes conjecturas, ignora toda uma riqueza que movimenta constantemente o social, e que não se deixa capturar, muitas vezes, pelos grandes sistemas representativos do social. Este jamais existiria sem as ações dos agentes, dos múltiplos agentes sociais. Tarde dará toda uma importância à tudo aquilo que os grandes sistemas de explicação do social ignora. E ele escreve:
Sozinhos, alguns espíritos rebeldes, estranhos, com o seu toque de finados, no tumulto do oceano social em que estão mergulhados, ruminam aqui e acolá problemas bizarros, absolutamente desprovidos de actualidade. E são estes os inventores de amanhã. 2
É como se uma pequena invenção, vista como insignificante em determinado momento, fica-se durante um bom tempo em estado de latência, assim como um vírus que ainda não se manifestou. O social, em Tarde, é completamente reanimado por tais atos de invenção.
E no caso da imitação, vale lembrar que Tarde não irá conceber um sujeito soberano absoluto de suas próprias decisões, soberano de suas próprias escolhas, se suas próprias imitações e criações. Antes, as subjetividades são constantemente perpassadas por fluxos, são constantemente afetadas reciprocamente umas pelas outras, influenciam-se reciprocamente.
Assim, imitamos sem ter a plena e absoluta liberdade de escolha, muitas vezes imitamos inconscientemente, outras porque achamos necessário, imperioso... enfim, há os mais variados motivos que jamais esgotam as suas infinitas razões. E, sobre isso, ele vai escrever que
O cidadão dos novos tempos gaba-se de fazer uma livre escolha entre as proposições que lhe são feitas: mas, na realidade, a que ele aceitou, a que ele segue, é a que responde melhor às suas necessidades, aos seus desejos pré-existentes e resultante dos seus usos, dos seus costumes, de todo o seu passado de obediência. 3
Se há EU, trata-se de um EU rachado por onde entram e saem os formigamentos da vida. É como se Tarde concebesse as subjetividades como vasos que são CONSTANTEMENTE moldados pelas relações, pelos usos, costumes, modos, conversas... Por múltiplas relações em constante movimento.
Tentamos mostrar o quanto uma novidade pode entrar em disputa com outra, quando escrevemos sobre as relações entre as palavras baratão e barataria, e como uma pode substituir a outra e engendrar um novo hábito, o qual será abalado por outra invenção que também tenderá a se transformar em hábito... enfim, não há costume, hábito, que reine para sempre no social. Este está em constante movimento, corresponde a algo vivo. Lembrando que uma invenção também pode fortalecer uma outra circulante na vida social, não penas substituí-la. Não há invenções sem relações ou absolutamente autônomas. O sociólogo, para Tarde, deve se lambuzar de e na vida, e não ficar em seu gabinete apenas conjecturando.
Nossa intenção aqui foi apenas facilitar alguns pontos da sociologia infinitesimal ou microssociologia desenvolvida por Gabriel Tarde. Observamos o quanto esta nova maneira de se investigar o social confere toda uma importância à vida, às conversas, às relações imperceptíveis que ocorrem no mais profundo interior do corpo social e que gestam as futuras transformações que movimentam constantemente o social. Também há toda uma potência subversiva no ato de criação, na medida em que ele bifurca uma série de repetições necessárias.
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1. Melville, H. Contos de Hermam Melville. São Paulo, Cultrix Ed, 1985, p, 38-39 (todos os itálicos são de Tiago Themudo) in: THEMUDO, Tiago Seixas. Gabriel Tarde: sociologia e subjetividade. - Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto, 2002.p. 105-106.
2. TARDE, Gabriel. As leis da imitação. Trad. Carlos Fernandes Maia com a colaboração de Maria Manuela Maia. Rés-Editora, Lda. P. 10.
3. TARDE, Gabriel. Op. Cit. p. 281