Danilo José Viana da Silva
Na sociologia de Pierre Bourdieu encontramos diversos tipos de campos, há o campo científico, o campo artístico, o campo jurídico, enfim, há vários tipos de campos, todos eles com suas peculiaridades, suas leis, sua própria lógica, mas com algumas características em comum, uma delas é o fato de todos serem espaços de luta; eles são espaços de combates entre forças, são campos de força.
Mas, estes espaços de luta correspondem a universos onde cada um luta livremente, ou melhor, absolutamente livre? Estes campos de força são absolutamente autônomos?
Tais campos de luta possuem leis, posições, isto quer dizer que em nenhum deles os agentes sociais são absolutamente livres: pode-se dizer que não se entra em nenhum deles sem antes pagar o preço da entrada. Em outras palavras, é preciso ocupar posições, o campo é um espaço de luta, de relações de força entre agentes que ocupam posições, conscientemente ou não, (há hierarquias entre elas) e que pretendem obter sucesso.
É mediante o conceito de campo que é possível compreender as relações entre as posições, ocupadas por agentes, “que determinam a forma de tais interações.” 1 Nenhum dos campos são absolutamente autônomos, pois eles sofrem os efeitos de “pressões externas”, 2 produzindo também efeitos externos. Trata-se de uma sociologia em que o “real é relacional.”3 Há relações entre os campos e entre posições. Eles sofrem efeitos de pressões econômicas, políticas, enfim, nenhum campo goza de absoluta autonomia; o que se pode dizer é que os campos, na sociologia de Bourdieu, gozam de uma relativa autonomia; e isso é fundamental, pois também atesta a lógica e as leis próprias de cada campo, de suas relações, tal como ele descreve a respeito da relativa autonomia do campo artístico, por exemplo:
A autonomia relativa do campo artístico como espaço de relações objetivas em referência aos quais se acha objetivamente definida a relação entre cada agente e a sua própria obra, passada ou presente, é o que confere à história da arte a sua autonomia relativa e, portanto, a sua lógica original.” 4
Cada campo tem as suas leis, a sua lógica, a sua economia e sua forma de com ela se relacionar. No campo artístico, por exemplo, uma das características mais importantes é a denegação do econômico como a própria economia do campo. As economias da denegação do econômico, como ele mesmo lembra, “só podem funcionar mediante um recalcamento constante e coletivo do interesse propriamente “econômico” e da verdade das práticas desvendadas pela análise “econômica”. 5
No campo artístico, por exemplo, a recusa do comercial e do interesse econômico é um dos fortes pontos do processo de alquimia social e de produção da crença na ilusão da absoluta autonomia do campo artístico. Mas, são justamente as práticas de recusa do interesse econômico que caracterizam a forma de relação com a economia no campo artístico; trata-se, como afirma o sociólogo, de um tipo de racionalidade econômica própria do campo:
Neste cosmo econômico definido, em seu próprio funcionamento, por uma recusa do comercial que, de fato, é uma denegação coletiva dos interesses e ganhos comerciais, as condutas mais “anti-econômicas”, as mais desinteressadas visivelmente, aquelas que, e um universo “econômico” habitual seriam as mais condenadas sem o menor dó, contêm uma forma de racionalidade econômica (até mesmo, no sentido restrito) e, de modo algum, excluem seus autores dos ganhos, inclusive “econômicos”, prometidos aos que se conformarem à lei do universo. 6
O campo é também espaço de distribuição de capital, ou melhor, de distribuição não igualitária de capital simbólico, econômico... Pensar a economia não corresponde a uma reprodução da economia limitada aos bens materiais ou ao capital financeiro, pois há também o capital simbólico, o capital social... e a concorrência por eles. A estrutura das relações de força entre as posições é marcada por esta distribuição não igualitária de capital. E no campo artístico, para citar o mesmo exemplo, as lutas visam a produção e a consagração do artista, tratam-se de relações entre diversos agentes:
Tanto os artistas e os escritores quanto os mestres consagrados, tanto críticos e os editores quanto os autores, tanto os clientes entusiastas quanto os vendedores convencidos. 7
E é justamente do trabalho social empreendido por toda esta gama de agentes ocupando diferentes posições no espaço social que se produz o artista, a sua consagração e o próprio valor de sua obra. É o trabalho de toda uma rede de relações, e não só do produtor (artista), que atribui valor à obra de arte. É desta rede de relações que a obra de arte se torna algo sagrado e que o processo de alquimia social, indispensável para a realização de tal prática, é realizado.
Interessante notar que a própria forma do campo artístico se relacionar com a economia, qual seja, denegado-a, serve também de base e de critério para a própria crítica, mediante a formulação de oposições:
A oposição entre o comercial e o “não-comercial” encontra-se por toda parte: ela é o princípio gerador da maior parte dos julgamentos, que, em matéria de teatro, cinema, pintura, literatura, pretendem estabelecer a fronteira entre o que é arte e o que não o é (...) 8
Sendo o campo formado por posições ocupadas por agentes, o sucesso define-se, em boa parte, pelo maior nível de conformação às leis do campo; o que ocorre também quando o agente cumpre a sua função com gosto, como se fosse feito, ou melhor, como se nascesse, eis a ilusão do dom, para isso; tratando-se, assim, de uma posição incorporada: o agente incorpora a posição que ocupa no campo.
Em suma, ninguém pode lucrar com o jogo, nem mesmo os que o dominam, sem se envolver no jogo, sem se deixar levar por ele: significa isto que não haveria jogo sem a crença no jogo e sem as vontades, as intenções, as aspirações que dão vida aos agentes e que, sendo produzidas pelo jogo, dependem de sua posição no jogo e, mais exactamente, do seu poder sobre os títulos objetivados do capital específico (...) 9
Vale lembrar que a sociologia de Pierre Bourdieu denota bem mais como as relações de força, como determinada estrutura de relações de força tende a reproduzir, a impor, a inculcar (tal como ele mostra, juntamente com Passeron, em A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino) a cultura dominante pelas ações pedagógicas, por exemplo, do que a um pensamento totalizante; afinal, o próprio Bourdieu foi uma exceção as leis do campo pedagógico.
As lutas nos campos não são em vão: no campo jurídico, por exemplo, a luta é “pelo monopólio do direito de dizer o direito,(...)” 10 No campo científico, por exemplo, a luta “pelo monopólio da divisão legítima (...)” 11 Enfim, cada campo, como campo de luta, de concorrência, visa um monopólio.
E o processo de inculcamento tem a sua importância para a reprodução das relações de força, é mediante ele que determinadas práticas são vistas como se fossem naturais, como se já estivessem dadas na natureza das coisas, como se o mundo já fosse naturalmente dividido, como se a visão, o olhar, não fosse um produto histórico. Eis umas das consequências do processo de alquimia social. E isso possibilita, para os dominantes, a conservação, a perpetuação do status quo. A imposição da cultura dominante pelo processo educacional é um dos vários exemplos que podemos encontrar: realidade que foi rigorosamente estudada por Bourdieu e Passeron.
A imposição arbitrária de um arbitrário cultural: eis o duplo arbitrário que é indispensável para a perpetuação do status quo, para a reprodução das relações de força que estão na base da sociedade; trata-se de algo que era guardado em segredo e que ainda é dissimulado por toda uma produção simbólica que o legitima. Mas este segredo veio à tona! Falamos de algo que estava em segredo, dissimulado... Pois, afinal de contas, como bem lembra Bourdieu, “os dominantes têm compromisso com o silêncio,discrição, segredo, reserva; (...)” 12
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1. BOURDIEU, Pierre. A gênese dos conceitos de habitus e de campo. In: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 66
2. BOURDIEU, Pierre. A força do Direito. In: Ibid. P. 212.
3. BOURDIEU, Pierre. Introdução a uma sociologia reflexiva. In: Ibid. P. 28
4. BOURDIEU, Pierre. A gênese dos conceitos de habitus e de campo. In: Ibid. P. 71
5. BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 3ª ed. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2008. P. 19
6. BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. P. 19-20
7. BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. P. 29
8. BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. P. 30
9. BOURDIEU, Pierre. História reificada e incorporada. In: Ibid. P. 85-86
10. BOURDIEU, Pierre. A força do Direito. In: Ibid. P. 212.
11. BOURDIEU, Pierre. A ideia de Região. In: Ibid. P. 111.
12. BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. P. 32