Por Danilo José Viana da Silva
Em Meditação
pascalianas Bourdieu realiza algumas interpretações bastante interessantes
sobre O processo de Kafka. No
presente e superficial texto iremos apenas tratar da problemática relativa ao
poder de manipulação do tempo dos outros (um dos efeitos da dominação
simbólica). Tendo ciência de que a sociologia reflexiva de Bourdieu
corresponde, em grande parte, a uma ruptura com a sociologia espontânea, na
qual a utilização das mais diferentes obras acaba reproduzindo “um
empreendimento análogo ao dos teólogos ou canonistas da Idade Média que reuniam
em suas enormes Sumas o conjunto dos
argumentos e questões legadas pelas “autoridades” (...) 1, é
relevante, assim pensamos, lembrar que o
fato do citado sociólogo lançar mão de O processo de Kafka tem como um de seus mais importantes
fundamentos uma linha teórica que permite “escapar do ecletismo puro e
simples.”2
Em outras palavras, ele retoma O processo para, em certa medida,
retomar, em Meditações pascalianas, algumas
problemáticas que já foram tratadas em sua sociologia. É justamente para se
pensar um dos efeitos da dominação simbólica, ou seja, a dominação do tempo dos
outros exercida pelos dominantes em determinado campo, que a citada obra de
Kafka é retomada em determinado momento.
O poder sobre o tempo dos outros e
sobre a administração de posições no interior do campo universitário foi
analisado por Bourdieu em Homo
Academicus. Esse poder sobre o tempo dos outros (o qual não deve ser tomado
como um poder exercido de forma plenamente consciente para a realização de tal
dominação, pois corresponde a um efeito do habitus
enquanto sentido do jogo incorporado, enquanto ethos incorporado, enquanto regra feita corpo)
supõe talvez antes
de tudo uma arte de manipular o tempo dos outros, ou mais precisamente, o ritmo
de sua carreira, de seu curso, de acelerar ou de adiar realizações tão
diferentes quanto o sucesso nos concursos ou nos exames, a defesa de tese, a
publicação de artigos ou de obras, a nomeação nos postos universitários, etc.
E, em contrapartida, essa arte, que também é um das dimensões do poder, com freqüência
só se exerce com cumplicidade mais ou menos consciente do impetrante, mantido
assim, às vezes, até um idade bem avançada, na disposição dócil e submissa,
enfim, um pouco infantil – o diretor de tese, na Alemanha, se chama Doktorvater,
“pai de doutor – que caracteriza o bom aluno de todas as idades. 3
Esse poder que corresponde a uma verdadeira
arte de manipular, aquém do cálculo cínico e plenamente racional ou orientado
para este fim, o tempo dos outros, e que é exercido pelos detentores do poder
universitário (e dos detentores das posições privilegiadas) no interior do
campo universitário é um bom exemplo para se compreender as incertezas, as angústias,
as ansiedades sentidas por quem está, em grande parte, entregue “ao arbítrio de
um chefe”4, tal como ocorre com o próprio Josef K. Neste sentido,
como lembra Bourdieu, O processo é “um
modelo bastante realista dos campos de produção cultural, em que se exercem
poderes os quais, a exemplo dos da ordem universitária, têm como princípio o
controle sobre o tempo dos outros.” 5
No inicio do romance K. não se preocupa
de imediato com o suposto processo do qual ele era acusado, depois ele entra,
pouco a pouco, no jogo que se “caracteriza por um grau muito elevado de
imprevisibilidade: não se pode confiar em nada.” 6 Trata-se de um jogo onde tudo pode acontecer,
onde as instituições encarregadas de velar e de reproduzir a ordem não
conseguem dissimular o arbitrário que as fundamenta. O próprio tribunal é “o
lugar por excelência do arbitrário, que se afirma como tal, sem sequer se dar o
trabalho de se dissimular. Por exemplo, o Tribunal censura pelo atraso quando
ele mesmo está sempre atrasado (...)” 7
Diante desse poder instituído, K.
pouco pode fazer contra a sua submissão, principalmente pelo fato de que aos
poucos ele entra no jogo onde o próprio advogado manipula suas esperanças e as
expectativas, “embalando-o com vagas esperanças e atormentando-o com ameaças
imprecisas.” 8 K. experimenta
uma angústia à altura do paciente de hospital , para quem o médico diz “ora uma
coisa ora outra, inquietando, logo em seguida tranquilizando (...)” 9
Trata-se também de uma possibilidade de
se repensar as lógicas das próprias Instituições
Totais, para utilizar uma noção de Goffman 10, tais como as
prisões, os conventos, os manicômios, ou, até mesmo, as escolas, as
universidades, os hospitais, as instituições burocráticas, algo possível de se
retomar a partir da própria obra de Kafka.
Em O processo as situações de incerteza e de investimento são levadas
ao extremo, onde “a exemplo do que se passa num regime despótico, não há mais
limites ao arbitrário e a imprevisibilidade (...)” 11 Trata-se de uma situação extrema onde o poder
de manipulação das aspirações enseja o investimento de todos os móveis. Para
além dessa situação extrema, esse poder de manipulação só é possível, em certa
medida, com a cumplicidade de suas próprias vítimas, seja no campo jurídico, no
campo universitário, esse poder de manipular o tempo dos outros “só consegue se
instaurar com a cumplicidade (extorquida) da vítima, e de seu investimento no
jogo.” 12 Trata-se de um dos efeitos mais característicos da dominação
simbólica, ou seja, o efeito brutal que corresponde ao fato de os próprios dominados
tenderem a reproduzir a lógica de sua própria dominação.
Na medida em que K. está submetido a
manipulação do seu tempo, ele encontra-se em uma situação de extrema
insegurança e incapacidade de atribuir sentido a sua própria vida. A apropriação
da cultura dominante enquanto “a” cultura legítima (aliás, esta também é a
maneira, em certo sentido, a partir da qual ela se vê), já que estamos também refletindo
sobre o campo universitário, é o capital mediante o qual os dominados são condenados
“a viver num tempo orientado pelos outros (...)” 13
No caso do campo universitário isso
é compreensível na medida em que os que ocupam posições dominantes em seu interior
possuem diplomas universitários, os quais, segundo Bourdieu, correspondem a
verdadeiros “títulos de nobreza cultural”14 com eficácia simbólica suficiente atribuída pelo
Estado para fazer existir aquilo que está enunciado no próprio diploma em
conformidade com o seu próprio enunciado (eis um dos efeitos performativos dos títulos
universitários).
Portanto, na
definição tácita do diploma, ao assegurar formalmente
uma competência específica (...), está inscrito que ele garante realmente a posse de uma “cultura geral”,
tanto mais ampla e extensa quanto mais prestigioso for esse documento; e,
inversamente, que é impossível exigir qualquer garantia real sobre o que ele
garante formal e realmente, ou, se preferirmos, sobre o grau que é a garantia
do que ele garante. 15
Diferentemente dos autodidatas e dos
desprovidos dos diplomas, os quais devem a todo o tempo mostrar, dar provas de
sua cultura, os que possuem os diplomas consagrados pelo Estado possuem a
garantia estatutária, não apenas universitária, da cultura legítima e não estão
sujeitos a contingência relacionada a necessidade de ter que por a prova o seu
capital cultural formalmente garantido (Um típico exemplo onde, a partir dos
efeitos do capital simbólico, a essência precede a existência, pois independentemente
das constrições da existência, a cultura garantida daquele que possui o título
define o próprio possuidor, ele é o
que o diploma enuncia e garante, independentemente da contingência existencial).
Na medida em que
esses títulos de nobreza cultural asseguram um poder sobre o destino dos
dominados no interior do campo universitário, tais títulos permitem se jogar
com a angústia dos outros e impulsionar, juntamente com a lógica da concorrência
entre os pares, os mais diversos investimentos no jogo universitário, por
exemplo; fazendo com que os próprios dominados ajudem a reproduzir a própria
lógica a partir da qual eles são dominados.
_________________
1.
BOURDIEU, Pierre;
CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João
de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 39
2.
BOURDIEU, Pierre. Fieldwork in
Philosophy. In.: Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da
Silveira e Denise Moreno Pegorim. – São
Paulo: Brasiliense, 2004. P. 42
- BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Trad. Ione
Ribeiro Valle e Nilton Valle. Rev. Tec.: Maria Tereza de Queiroz
Piacentini. – Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. P. 122
4.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio
Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 280
5.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Ibid
6.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Ibid
7.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 281
8.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Ibid
9.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 282
10.
Sobre as
Instituições Totais ver GOFFMAN, Erving. Manicômios,
prisões e conventos. Trad. Dante Moreira Leite. – São Paulo: Perspectiva
11.
BOURDIEU, Pierre. Meditações
Pascalianas. Ibid
12.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Ibid
13.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 290
14.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do
julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto Alegre,
RS: Zouk, 2011. P. 27
15.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção. P. 28-29