quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Blaise Pascal e Pierre Bourdieu: Algumas divagações sobre a crítica à razão autofundadora.


 
 
 

Por Danilo José Viana da Silva

 




 


“O que assenta na sã razão é bem mal fundado, como a estima da sabedoria”


(PASCAL, Blaise. A justiça e a razão dos efeitos. In. Pensamentos. Abril cultural. P. 119)

 


 
     
            Uma das contribuições mais relevantes propiciada pela reativação por Pierre Bourdieu da crítica pascaliana à razão autofundadora consiste na possibilidade de se produzir instrumentos a partir dos quais é possível compreender um dos efeitos do poder simbólico, qual seja, o efeito de transfiguração do arbitrário fundador do direito e do Estado.

            A crítica de Pascal às tentativas de se fundar a razão nela mesma (a crítica pascaliana do fundamento) e de denegar o fundamento histórico-social da própria razão vem encontrar um importante desdobramento na crítica ao trabalho, levado a cabo historicamente pelos juristas, de fundar a lei nela mesma e, consequentemente, reforçar a ilusão da absoluta autonomia do campo jurídico frente às pressões externas.

            Na medida em que a razão não encontra outro fundamento a não ser nela mesma, à medida que a lei acaba sendo fundada nela mesma, a dissimulação do fundamento arbitrário da razão e da lei vem encontrar um de seus mais importantes princípios de explicação na consequente tomada da razão (e da lei) enquanto universal transhistórico, enquanto ordem, no caso do direito, absolutamente autônoma.

            A transfiguração do fundamento arbitrário do direito corresponde a um indicador de que nenhuma ordem pode reinar única e exclusivamente fundamentada na força explícita que se afirma como tal, enquanto violência injustificável. Neste caso, coube aos juristas o trabalho de racionalização e de justificação teórica de uma violência que em sua gênese é injustificável. Como lembra Pascal, “fez-se com que o que é forte fosse justo.”1   

            Assim foi possível se construir uma aparência de legitimidade a uma ordem cujo fundamento arbitrário deve ser a todo o tempo transfigurado pela opinião autorizada. A gênese arbitrária só existe hoje no inconsciente social em estado recalcado, o qual é produto, em grande parte, de um longo trabalho histórico de transfiguração levado a cabo pelo processo de racionalização jurídica. Como lembra Bourdieu

 

Assim, a força não pode se afirmar como tal, como violência sem rodeios, arbitrária, que é o que ela é, sem justificação; e é um fato inconteste que ela só consegue se perpetuar sob as roupagens do direito, fazendo com que a dominação somente consiga se impor de maneira durável na medida em que logra obter o reconhecimento, que não é outra coisa senão o desconhecimento do arbitrário de seu princípio. 2    

 

            Assim como os sacerdotes da Igreja, segundo a sociologia da religião de Max Weber, puderam, mediante todo um trabalho de racionalização das crenças e das práticas religiosas, santificar as relações arbitrárias nas quais se fundamentam a ordem eclesiástica e hierocrática, fazendo com que as relações de força sejam reconhecidas como relações sagradas, relações de sentido, quer dizer, retiradas da insignificância, possibilitando o processo de transfiguração do arbitrário que está na origem das práticas religiosas; os juristas puderam, por meio de todo um trabalho de racionalização e de sistematização doutrinária, legitimar e justificar uma ordem fundada na violência arbitrária.

            A necessidade de se fundar o direito e o Estado na  razão autofundadora vem encontrar um de seus princípios de explicação na necessidade de prolongar, de perpetuar uma ordem históricosocial que quer se passar por universal (a usurpação) e transhistórica. Como lembra Pascal a respeito, “é preciso fazê-la observar como autêntica, eterna, e ocultar o seu começo, se se quiser que não se acabe logo.”3 

            Um dos indícios menos difíceis de se encontrar é justamente a disposição do corpo de juristas (ethos feito corpo, regra feita corpo) para afirmar o fundamento do direito na própria Constituição, ou seja, a disposição incorporada para afirmar o fundamento do direito nele mesmo, como lembra Bourdieu:


 

É tanto menos difícil ao corpo de juristas convencer-se de que o direito tem o seu fundamento nele próprio, quer dizer, numa norma fundamental tal como a Constituição como norma normarum de que se deduzem todas as normas de ordem inferior, quanto a communis opinio doctorum, com raízes na coesão social do corpo de intérpretes, tenda a conferir a aparência de um fundamento transcendental às formas históricas da razão jurídica e à crença na visão ordenada da ordem social por eles produzidas. 4       

 
 

            Os juristas foram e são historicamente incumbidos de sistematizar e racionalizar o direito para que a ordem estatal da qual eles dependem possa se perpetuar. E esse trabalho de racionalização, não necessariamente conscientemente planejado, vem encontrar um reforço no trabalho de inculcação das categorias jurídicas de percepção e de construção da realidade social a partir, por exemplo, do ensino universitário.

            Um dos efeitos desse trabalho de inculcação das categorias jurídico-estatais de percepção é não apenas a formação de um corpo de profissionais autorizados pelo Estado por meio de títulos de créditos acadêmicos (os diplomas), mas também a perpetuação da ordem jurídica da qual os esquemas inculcados são produtos, bem como a denegação de qualquer fundamento do direito que não esteja nele mesmo, fortalecendo, assim, a amnésia social da gênese arbitrária do direito e do Estado.

            O recalque e a transfiguração da gênese arbitrária da ordem jurídica são necessários para os juristas, pois, como lembra Pascal, “quem a reduz ao seu princípio esmaga-a.”5   Neste caso, os trabalhos sóciosimbólicos de sublimação e de racionalização são necessários para a dissimulação da “verdade da usurpação: esta foi introduzida, outrora, sem razão.”6  O trabalho de pôr a razão onde ela nunca esteve é necessário para a produção da aparência de uma ordem racional, fundada num razão autofundadora e, por isso, digna de reconhecimento. É quando o trabalho de racionalização engendra o efeito de consagração da ordem vigente, ou melhor, do direito e do Estado.

 
 

Para compreender a dimensão simbólica do efeito do Estado, especialmente o que podemos chamar de efeito de universal, é preciso compreender o funcionamento específico do microcosmo burocrático, é preciso analisar a gênese e a estrutura desse universo de agentes do Estado, particularmente os juristas, que se constituíram em nobreza de Estado ao instituí-lo, especialmente, ao produzir o discurso performativo sobre o Estado que, sob a aparência de dizer o que ele é, fez o Estado ao dizer o que ele deveria ser (...)7 

 
 

            É preciso levar em conta como os interesses particulares dos juristas ligados ao Estado foram transformados (mediante a produção por eles das mais diversas teorias legitimadoras) em universais. É preciso também levar em conta os efeitos performativos dos discursos jurídicos, na medida em que eles fazem existir o que foi enunciado, ao passo em que tais discursos autorizados engendram efeitos de construção do mundo social. Assim, pode-se finalizar com uma advertência de Pascal, que lembra, a propósito do fundamento da lei, que quem “não estiver acostumado a contemplar os prodígios da imaginação humana, admirará que um século lhe tenha dado tanta pompa e reverência.”8 
 
 
 
Arte: Honoré Daumier
 
           

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1.      PASCAL, Blaise. A justiça e a razão dos efeitos. In. Pensamentos.Trad. Sérgio Millet. – São Paulo: Abril Cultural. 1079. P 113

2.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 126

3.      PASCAL, Blaise. Ibid

4.      BOURDIEU, Pierre. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In.:   O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 214

5.      PASCAL, Blaise. Op. Cit. P. 112

6.      PASCAL, Blaise. Op. Cit. P. 113

7.      BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996.p. 121

8.      PASCAL, Blaise. Op. Cit. P. 112