Por Danilo José
Viana da Silva
“O que assenta na sã razão é bem
mal fundado, como a estima da sabedoria”
(PASCAL, Blaise. A justiça e a
razão dos efeitos. In. Pensamentos. Abril cultural. P. 119)
Uma das
contribuições mais relevantes propiciada pela reativação por Pierre Bourdieu da
crítica pascaliana à razão autofundadora consiste na possibilidade de se
produzir instrumentos a partir dos quais é possível compreender um dos efeitos
do poder simbólico, qual seja, o efeito de transfiguração do arbitrário
fundador do direito e do Estado.
A crítica de Pascal às tentativas de
se fundar a razão nela mesma (a crítica pascaliana do fundamento) e de denegar
o fundamento histórico-social da própria razão vem encontrar um importante
desdobramento na crítica ao trabalho, levado a cabo historicamente pelos
juristas, de fundar a lei nela mesma e, consequentemente, reforçar a ilusão da absoluta autonomia do campo jurídico
frente às pressões externas.
Na medida em que a razão não
encontra outro fundamento a não ser nela mesma, à medida que a lei acaba sendo
fundada nela mesma, a dissimulação do fundamento arbitrário da razão e da lei
vem encontrar um de seus mais importantes princípios de explicação na
consequente tomada da razão (e da lei) enquanto universal transhistórico,
enquanto ordem, no caso do direito, absolutamente autônoma.
A transfiguração do fundamento
arbitrário do direito corresponde a um indicador de que nenhuma ordem pode
reinar única e exclusivamente fundamentada na força explícita que se afirma
como tal, enquanto violência injustificável. Neste caso, coube aos juristas o
trabalho de racionalização e de justificação teórica de uma violência que em
sua gênese é injustificável. Como lembra Pascal, “fez-se com que o que é forte
fosse justo.”1
Assim foi possível se construir uma
aparência de legitimidade a uma ordem cujo fundamento arbitrário deve ser a
todo o tempo transfigurado pela opinião autorizada. A gênese arbitrária só
existe hoje no inconsciente social em estado recalcado, o qual é produto, em
grande parte, de um longo trabalho histórico de transfiguração levado a cabo
pelo processo de racionalização jurídica. Como lembra Bourdieu
Assim, a força não
pode se afirmar como tal, como violência sem rodeios, arbitrária, que é o que
ela é, sem justificação; e é um fato inconteste que ela só consegue se
perpetuar sob as roupagens do direito, fazendo com que a dominação somente
consiga se impor de maneira durável na medida em que logra obter o
reconhecimento, que não é outra coisa senão o desconhecimento do arbitrário de
seu princípio. 2
Assim como os sacerdotes da Igreja,
segundo a sociologia da religião de Max Weber, puderam, mediante todo um
trabalho de racionalização das crenças e das práticas religiosas, santificar as
relações arbitrárias nas quais se fundamentam a ordem eclesiástica e
hierocrática, fazendo com que as relações de força sejam reconhecidas como
relações sagradas, relações de sentido, quer dizer, retiradas da
insignificância, possibilitando o processo de transfiguração do arbitrário que
está na origem das práticas religiosas; os juristas puderam, por meio de todo
um trabalho de racionalização e de sistematização doutrinária, legitimar e
justificar uma ordem fundada na violência arbitrária.
A necessidade de se fundar o direito
e o Estado na razão autofundadora vem encontrar um de seus princípios de explicação
na necessidade de prolongar, de perpetuar uma ordem históricosocial que quer se
passar por universal (a usurpação) e transhistórica. Como lembra Pascal a
respeito, “é preciso fazê-la observar como autêntica, eterna, e ocultar o seu
começo, se se quiser que não se acabe logo.”3
Um dos indícios menos difíceis de se
encontrar é justamente a disposição do corpo de juristas (ethos feito corpo, regra feita corpo) para afirmar o fundamento do
direito na própria Constituição, ou seja, a disposição incorporada para afirmar
o fundamento do direito nele mesmo, como lembra Bourdieu:
É tanto menos
difícil ao corpo de juristas convencer-se de que o direito tem o seu fundamento
nele próprio, quer dizer, numa norma fundamental tal como a Constituição como norma normarum de que se deduzem todas
as normas de ordem inferior, quanto a communis
opinio doctorum, com raízes na coesão social do corpo de intérpretes, tenda
a conferir a aparência de um fundamento transcendental às formas históricas da
razão jurídica e à crença na visão ordenada da ordem social por eles
produzidas. 4
Os juristas foram e são
historicamente incumbidos de sistematizar e racionalizar o direito para que a
ordem estatal da qual eles dependem possa se perpetuar. E esse trabalho de
racionalização, não necessariamente conscientemente planejado, vem encontrar um
reforço no trabalho de inculcação das categorias jurídicas de percepção e de
construção da realidade social a partir, por exemplo, do ensino universitário.
Um dos efeitos desse trabalho de
inculcação das categorias jurídico-estatais de percepção é não apenas a
formação de um corpo de profissionais autorizados pelo Estado por meio de
títulos de créditos acadêmicos (os diplomas), mas também a perpetuação da ordem
jurídica da qual os esquemas inculcados são produtos, bem como a denegação de
qualquer fundamento do direito que não esteja nele mesmo, fortalecendo, assim,
a amnésia social da gênese arbitrária do direito e do Estado.
O recalque e a transfiguração da
gênese arbitrária da ordem jurídica são necessários para os juristas, pois,
como lembra Pascal, “quem a reduz ao seu princípio esmaga-a.”5 Neste caso, os trabalhos sóciosimbólicos de
sublimação e de racionalização são necessários para a dissimulação da “verdade
da usurpação: esta foi introduzida, outrora, sem razão.”6 O trabalho de pôr a razão onde ela nunca
esteve é necessário para a produção da aparência de uma ordem racional, fundada
num razão autofundadora e, por isso, digna de reconhecimento. É quando o trabalho de
racionalização engendra o efeito de consagração da ordem vigente, ou melhor, do
direito e do Estado.
Para compreender a
dimensão simbólica do efeito do Estado, especialmente o que podemos chamar de efeito de universal, é preciso
compreender o funcionamento específico do microcosmo burocrático, é preciso
analisar a gênese e a estrutura desse universo de agentes do Estado,
particularmente os juristas, que se constituíram em nobreza de Estado ao
instituí-lo, especialmente, ao produzir o discurso performativo sobre o Estado
que, sob a aparência de dizer o que ele é, fez o Estado ao dizer o que ele
deveria ser (...)7
É preciso levar em conta como os
interesses particulares dos juristas ligados ao Estado foram transformados
(mediante a produção por eles das mais diversas teorias legitimadoras) em
universais. É preciso também levar em conta os efeitos performativos dos
discursos jurídicos, na medida em que eles fazem existir o que foi enunciado,
ao passo em que tais discursos autorizados engendram efeitos de construção do
mundo social. Assim, pode-se finalizar com uma advertência de Pascal, que
lembra, a propósito do fundamento da lei, que quem “não estiver acostumado a
contemplar os prodígios da imaginação humana, admirará que um século lhe tenha
dado tanta pompa e reverência.”8
Arte: Honoré Daumier
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1. PASCAL, Blaise. A justiça e a
razão dos efeitos. In. Pensamentos.Trad.
Sérgio Millet. – São Paulo: Abril Cultural. 1079. P 113
2. BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio
Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 126
3. PASCAL, Blaise. Ibid
4. BOURDIEU, Pierre. A força do
direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In.: O
poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P.
214
5. PASCAL, Blaise. Op. Cit. P. 112
6. PASCAL, Blaise. Op. Cit. P. 113
7. BOURDIEU, Pierre.
Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. Razões Práticas: Sobre
a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996.p. 121
8. PASCAL, Blaise. Op. Cit. P. 112