quarta-feira, 28 de maio de 2014
terça-feira, 27 de maio de 2014
Max Weber e Pierre Bourdieu: Uma analogia entre o campo religioso e o universitário
Por Danilo José
Viana da Silva
É preciso considerar a importância da sociologia da
religião de Max Weber na medida em que ela permite se construir analogias entre
estruturas hierárquicas equivalentes, tais como as estruturas do universo
acadêmico e do religioso, principalmente no que concerne ao processo de
racionalização do qual as crenças religiosas foram objeto no decorrer da
modernidade.
O processo de racionalização e de
burocratização da vida religiosa foi um dos objetos da sociologia compreensiva
de Weber. Atrelado ao estudo do processo de racionalização e de
institucionalização, pela Igreja, da vida religiosa, está o processo de
monopolização por um corpo especializado (o sacerdócio) no trabalho de gestão
dos bens de salvação (em contraposição aos profetas e leigos: desprovidos da
autoridade propriamente religiosa garantida pela Igreja) da pregação ou do
culto legítimo realizado em um local especialmente constituído para tal, em
contraposição as seitas proféticas ou aos rituais de magia.
É preciso frisar também que foi a
partir dela (da sociologia da religião de Weber) que Pierre Bourdieu pôde
construir uma sociologia do campo
religioso (noção que não encontramos em Weber) enquanto estrutura de
relações de força onde agentes providos de determinada competência lutam em
prol da monopolização do capital de autoridade propriamente religiosa e do
poder de gerir os bens reconhecidos como sagrados.
Em outras palavras, ela possibilitou
a construção de uma sociologia que leva em conta uma das questões mais
relevantes sobre o poder simbólico,
qual seja, a função de transfiguração das relações de força (e o quanto o trabalho de racionalização
levado a cabo pelo corpo de sacerdotes foi indispensável para tal), de
transfiguração de uma ordem arbitrária; ou seja, o processo de santificação das
relações de força mediante uma economia do desinteresse econômico, ou seja,
mediante a denegação dos interesses estritamente econômicos, dos interesses
particulares dos indivíduos.
O aparecimento das Igrejas e de um
corpo de profissionais mais especializados no trabalho do culto está atrelado
ao processo de universalização de práticas religiosas que eram mais relativas
aos problemas particulares e concretos dos indivíduos. Ou seja, as práticas
religiosas estavam bem mais relacionadas, antes das grandes religiões e do
processo de universalização e de sistematização das práticas religiosas, aos
interesses mais particulares, mais econômicos dos indivíduos.
Como
adverte Weber
A ação ou o
pensamento religioso ou “mágico” não pode ser apartado, portanto, do círculo
das ações cotidianas ligadas a um fim, uma vez que também seus próprios fins
são, em grande maioria, de natureza econômica.1
Em outras
palavras, a ação religiosa (antes do moderno processo de racionalização e do
aparecimento de uma instituição permanente encarregada de gerir os bens de
salvação e de formar um corpo de profissionais hierarquizados e dotados de uma
determinada competência garantida pela Igreja) “em sua existência primordial,
está orientada para este mundo. As
ações religiosas ou magicamente exigidas devem ser realizadas “para que vás
muito bem e vivas muito e muitos anos sobre a face da terra.”2
É neste
sentido que atrelado ao processo de racionalização e de burocratização da ética
religiosa levado a cabo pela Igreja como uma consequência da formação por ela
de um corpo altamente especializado em tal trabalho de racionalização, está o
processo de universalização das crenças religiosas que estavam mais voltadas
para a realização dos interesses particulares de cada um.
À medida que as práticas religiosas estão condicionadas à realização dos interesses pessoais,
não há possibilidades de realização da rotinização racional do culto, pois
este realizava-se de forma aleatória e em relação aos interesses particulares,
o que inviabilizava a existência de uma congregação de fiéis. O condicionamento
das práticas religiosas em um estágio pouco burocratizado e racionalizado pode
ser atestado pelas ações hostis, consistindo até mesmo em agressões, direcionadas
aos deuses cuja adoração não propiciou os frutos desejáveis para os que os
veneraram.
Atrelado
ao processo de racionalização da vida religiosa está o processo de constituição
de uma congregação de fiéis, algo
que, pelo menos em sua tipologia ideal, não pode ser constituído no seio das práticas rituais e das profecias, as
quais eram levadas a cabo por profetas ou mágicos não atrelados ou formados por
uma instituição permanente (a Igreja) e, por isso mesmo, desprovidos da
competência garantida pela Igreja para o
exercício do culto legítimo.
Mas o que
realmente interessa no presente texto é o estabelecimento de uma relação de
equivalência de função entre a ordem religiosa e a ordem acadêmica no que
concerne a justificação do poder (em um caso, religioso, no outro, acadêmico)
segundo preceitos gerais garantidos por uma instituição permanente (a Igreja ou
o Estado enquanto instituição que garante o capital de autoridade aos títulos
emitidos pela instituição universitária) e com capacidade de garantir a posse
“real” de uma cultura independentemente da contingência existencial. Em outras
palavras, como lembra Bourdieu
(...) na definição tácita do diploma, ao
assegurar formalmente uma competência
específica (...), está inscrito que
ele garante realmente a posse de uma
“cultura geral”, tanto mais ampla e extensa quanto mais prestigioso for esse
documento; e, inversamente, que é impossível exigir qualquer garantia real
sobre o que ele garante formal e realmente, ou, se preferirmos, sobre o grau
que é a garantia do que ele garante. 3
Neste
caso, a garantia formal da cultura de um agente enquanto a garantia de uma
posse real pode existir como uma espécie de essência que precede a existência,
a própria contingência existencial.
É preciso
considerar uma distinção importante na sociologia da religião de Max Weber,
qual seja, a distinção entre os sacerdotes e os profetas, pois é a partir dela
que se irá estabelecer uma relação de equivalência entre a ordem religiosa e a universitária.
Antes de
tudo é preciso frisar que os sacerdotes constituem um corpo de profissionais
ligados a uma instituição dotada de caráter permanente (no caso, a Igreja ). Os
sacerdotes são “funcionários de uma empresa
permanente, regular e organizada.”4 Eles, enquanto corpo de funcionários, podem
ser definidos como um grupo que passou por uma formação consideravelmente homogênea.
E, como profissionais encarregados do trabalho de
racionalização das crenças religiosas mediante, por exemplo, o trabalho de
doutrinação, são incumbidos de realizar o trabalho do culto regular “vinculado
a determinadas normas, a determinados tempos e lugares.”5 É preciso deixar claro que os sacerdotes
passaram por uma formação, o que permite o exercício de um trabalho, por eles,
que se dá em uma espécie de conluio involuntário,
ou seja, um trabalho que se dá em uma lógica consideravelmente orquestrada
segundo determinadas normas.
Os
sacerdotes, como lembra Weber, são incumbidos, enquanto corpo profissional
adestrado, da “ocupação contínua com o culto e os problemas da orientação
prática das almas.”6 E essa
formação pode ser vista como resultante, em grande parte, do trabalho de
racionalização levado a cabo pelos próprios sacerdotes, ou seja, eles
contribuem para construir a ordem da qual a autoridade de que eles desfrutam
depende.
Observa-se
que, diferentemente do profeta, o sacerdote está vinculado a uma instituição
permanente que lhe garante um capital de autoridade religiosa independentemente
da contingência existencial, ou seja, independentemente de ele ter que
demonstrar constantemente, dar provas de sua competência propriamente
religiosa. A autoridade do sacerdote não
está, diferentemente do profeta, baseada no carisma estritamente pessoal, mas
em uma ordem hierárquica e em preceitos gerais, quer dizer, está baseada na
“impessoalidade.”
Já por
“profeta”, como lembra Weber, “queremos entender aqui o portador de um carisma
puramente pessoal, o qual, em virtude
de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa
ou um mandado divino.”7 Em outros termos, diferentemente do
sacerdote, cujo capital de autoridade está vinculado a uma instituição que
garante o seu reconhecimento, o capital
de reconhecimento do profeta está vinculado ao seu carisma pessoal: neste
sentido, ele deve dar constantemente provas de sua profecia, ele está, neste
caso, sujeito a contingência existencial similar a de um autodidata que, por estar
desprovido dos mais reconhecidos e consagrados títulos acadêmicos, deve dar
provas de sua cultura.
Os
sacerdotes, como lembra Bourdieu, “ficam dispensados de confirmar a todo
momento sua autoridade, e protegidos das consequências do fracasso de sua ação
religiosa.”8 Trata-se de uma
das características diferenciais mais relevantes entre os profetas e os
sacerdotes. “Primeiro e sobretudo porque o segundo reclama autoridade por estar
a serviço de uma tradição sagrada, e o primeiro, ao contrário, em virtude de
sua relação pessoal ou de seu carisma.”9 Por isso mesmo o profeta
está muito mais sujeito as contingências relativas a relação de oferta e
demanda dos serviços e bens de salvação por parte dos leigos.
Já o
capital de autoridade e de reconhecimento (espécies de capitais simbólicos)
estão assegurados, em grande parte, por uma instituição: pelo fato da garantia,
pela instituição eclesiástica, do capital de autoridade religiosa dos
sacerdotes, ou seja, pelo fato de tal autoridade não está baseada no carisma
pessoal, eles podem estar sujeitos às mesmas regras de substituição e intercambiabilidade que podem ser
encontradas nas instituições jurídico-burocráticas.
Ou seja,
um sacerdote pode ser substituído por outro com a mesma titulação sem que isso
acarrete uma defasagem no capital de autoridade, algo que não acontece no caso
dos profetas. Diferentemente destes, os sacerdotes são profissionais intercambiáveis, tais como os
promotores de justiça, por exemplo.
Neste
aspecto, os que seguem a doutrina ensinada pelo sacerdote, não obedecem
propriamente e essencialmente ao sacerdote, mas ao sistema doutrinário
característico da Igreja como instituição monopolizadora de legitimidade das
práticas religiosas e que propicia a formação não de seguidores e discípulos,
mas a constituição de uma congregação de leigos.
O profeta, diferentemente do sacerdote, não
é um administrador do culto. A sua situação, como lembra Weber,
não corresponde,
em geral, aos interesses daqueles que administram o culto, os quais por isso
procuram, quando e onde possível, passar para a formação de uma congregação,
isto é, de uma relação associativa duradoura entre os adeptos, com direitos e
deveres fixos.10
O profeta, por não passar pela formação
doutrinária de uma instituição, é definido levando-se em conta o processo de
monopolização da gestão religiosa pela Igreja, como um leigo ou profano, verdadeiro
desprovido do capital de autoridade propriamente religioso: “o profeta ético e
exemplar, em regra, é ele mesmo leigo e, em todo o caso, apoia sua posição de
poder sobre o grupo de adeptos leigos”11 que não constituem,
necessariamente, uma congregação organizada de fiéis, justamente por faltar,
por exemplo, a “cotidianização, quando o próprio profeta ou seus discípulos
asseguram a continuidade da revelação e da administração da graça.”12
Quando se trata da profecia ou de
práticas religiosas não reconhecidas como tais pela Igreja, a regra geral é a livre
relação ocasional.
O objetivo deste texto é
justamente denotar uma relação de equivalência entre o Estado (enquanto
instituição burocrática encarregada de garantir a autoridade dos títulos
universitários) e a Igreja (enquanto instituição hierárquica e burocrática
encarregada de garantir o capital de autoridade religiosa dos títulos
eclesiásticos).
Neste caso, é possível observar uma
relação de homologia entre os sacerdotes e os acadêmicos providos dos títulos
mais nobres reconhecidos pela ordem universitária: no que concerne aos efeitos engendrados
pela posse de títulos universitários, a relação de homologia pode ser
construída no que diz respeito aos efeitos essencialistas. Em outras palavras,
como lembra Bourdieu, os detentores dos títulos de nobreza cultural, ou seja, dos
diplomas escolares e universitários,
Diferentemente dos detentores de
um capital cultural desprovido da certificação escolar que, a todo o momento,
podem ser intimados a apresentar seus comprovantes, por serem identificados
apenas pelo que fazem, simples filhos de suas obras culturais, os detentores de
títulos de nobreza cultural – neste aspecto, semelhantes aos detentores de
títulos nobiliárquicos, cujo ser, definido pela fidelidade a um sangue, solo,
raça, passado, pátria e tradição, é irredutível a um fazer, competência ou
função – basta-lhes ser o que são porque todas as suas práticas valem o que
vale seu autor, sendo a afirmação e a perpetuação da essência em virtude da qual elas são realizadas. Definidos pelos
títulos que os predispõem e os legitimam a ser o que são, que transformam o que
fazem na manifestação de uma essência anterior
e superior a suas manifestações (...) 13
Diferentemente dos autoditadas
desprovidos dos títulos escolares e acadêmicos, os detentores dos raros títulos
universitários não devem provar a todo o momento a posse real de um determinado
capital cultural, pois o título garantido pela instituição universitária tende
a engendrar os efeitos essencialistas de constituir o possuidor enquanto o
detentor real de determinado capital cultural irredutível a necessidade da
constante submissão a prova. Tais títulos, assim como os títulos eclesiásticos,
possibilitam fazer existir o que eles enunciam em conformidade com o enunciado,
tratando-se de um efeito performativo da palavra autorizada e materializada no
título escolar e/ou universitário.
É preciso frisar que os profetas
ocupam uma posição, no interior das lutas no campo religioso, que se contrapõe
tacitamente a ordem eclesiástica. E a relação monopolística engendrada pela
dominação propiciada pelas grandes religiões tende a excluir como religião
todas as práticas que não estejam conforme as regras por tal ordem produzidas e
impostas. A própria existência de uma profecia já constitui, em certa medida,
uma “resistência” a ordem eclesiástica dominante, ela desafia a própria
hierarquia.
No caso dos universos escolar e
acadêmico, é possível observar uma relação de homologia na medida em que a
instituição acadêmica tende a definir a sua cultura e a forma, por ela
vinculada, de se relacionar com a cultura como “as” maneiras legítimas,
contribuindo, assim, para a desvalorização de todas as culturas e formas de com
elas se relacionar que não estejam de acordo com os esquemas inculcados pela
instituição universitária e escolar.
O curso ex cathedra transmite algo distinto e a mais do que reza
seu conteúdo literal: ele propõe um exemplo de proeza intelectual, e acaba por
definir de modo inescapável a cultura legítima e a relação legítima com esta
cultura. A seriedade e o brilho, a elegância e a naturalidade, eis algumas das
qualidades que definem maneiras próprias ao ato de transmissão que marcam a
cultura transmitida e impõe-se, junto com tal cultura, àqueles que a recebem
mediante tais modalidades. Poder-se-ia mostrar igualmente de que modo todas as
práticas pedagógicas propõem implicitamente o modelo da modalidade adequada da
atividade intelectual.14
É neste sentido que pode-se pensar
uma relação de homologia na medida em que as instituições escolar e
universitária contribuem para ratificar, por meio dos títulos reconhecidos pelo
Estado, uma determinada cultura (a
cultura da classe dominante econômica e intelectual) como a cultura legítima. Tratando-se,
no caso, de instâncias que monopolizam o trabalho de definir determinada
cultura particular como universal.
Trata-se de um
trabalho, aquém de um plano explicitamente e conscientemente deliberado para
tal, de definição, tanto da cultura
quanto da forma de com ela se relacionar, como legítimas. No caso do campo
religioso, observa-se a homologia no que concerne ao processo de monopolização,
atrelado ao trabalho de racionalização pelos sacerdotes, da definição da
relação legítima com o sagrado.
Neste caso, assim
como a religião se coloca como a mediadora na relação com o sagrado, as
instituições escolar e universitária seriam a mediadoras na relação com a
cultura. Assim como a ordem religiosa contribuiu para se estabelecer a distinção
entre os competentes oficiais (os sacerdotes) e os leigos (ou seja, os que
estão desprovidos dos títulos reconhecidos, incluindo aí os próprios profetas),
as instituições escolar e universitária contribuem para se fortalecer a
distinção entre os cultos e os leigos (verdadeiros profanos e não reconhecidos
pela ordem acadêmica).
E enquanto instâncias que contribuem
para a ratificação e a oficialização de uma determinada cultura ( a cultura da
classe dominante) e da forma de com ela se relacionar ( a forma legítima) elas
podem cumprir suas funções sociais mais nobres de produção, como faz a religião
( a propósito dos dominantes), de uma verdadeira “teodiceia de sua boa sorte.”15
Ou seja, uma verdadeira teodiceia da sorte dos dominantes.
________________________
1. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da
sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. 4ª
Ed. 3ª reimpressão – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012. P. 279
2.
WEBER, Max. Ibid
3.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do
julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto
Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 28-29
4.
WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 294
5.
WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 295
6.
WEBER, Max. Ibid
7.
WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 303
8.
BOURDIEU, Pierre.
Gênese e estrutura do campo religioso. In: Economia
das trocas simbólicas. Trad. Sergio
Miceli. – São Paulo: Perspectiva, 2009.
P. 59
9.
WEBER, Max. Ibid
10.
WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 310
11.
WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 313
12.
WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 311
13.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção. P. 27-28
14.
BOURDIEU, Pierre.
Sistemas de ensino e sistemas de pensamento. In.: Economia das trocas simbólicas. P. 219
15.
WEBER, Max. Sociologia das religiões. Trad. Cláudio
J. A. Rodrigues. – 1.ed. – São Paulo: Ícone, 2010. P. 14
Foto de Max Weber
sábado, 10 de maio de 2014
domingo, 4 de maio de 2014
Sobre "A conduta na Pesquisa" de Abraham Kaplan
Por Danilo José Viana da Silva
Livro
interessante, mas que parece ser pouco conhecido por essas bandas. Um dos
pontos que merece destaque é justamente a crítica à imagem idealizada da
pesquisa, a qual é caracterizada pela crença na capacidade de reconstrução lógica
e completa de todos os complexos atos de pesquisa. Ou seja, Kaplan afirma que
boa parte daquilo que constitui uma pesquisa propriamente científica se dá em
uma “lógica-em-uso” ou, como ele algumas vezes chama, “i-lógica-em-uso” que é inapreensível por completo pela reconstrução
retrospectiva e lógica dos atos da investigação. Como ele mesmo chega a lembrar: “os
incidentes mais importantes do drama da ciência são montados em algum lugar por
detrás das cortinas. A ampliação
do conhecimento é, sem dúvida,
básica para a empresa
científica mesmo de um ponto de vista lógico. A reconstrução convencional
oferece o resultado, mas permanecemos ignorantes do enredo. Em segundo lugar,
uma lógica reconstruída não é descrição, mas idealização da prática científica.
Nem mesmo o maior dos cientistas possui um estilo cognitivo que seja inteira e
perfeitamente lógico e a pesquisa mais brilhante continua a trair divagações
que são demasiado humanas.”( KAPLAN, Abraham. A Conduta na Pesquisa: Metodologia para as Ciências do
Comportamento. Trad. Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. – São Paulo:
E.P.U. Ed. da Universidade de São Paulo. 2ª Reimpressão, 1975. P. 12-13) A crença na capacidade da completa
reconstrução lógica dos atos de pesquisa além de reproduzir uma imagem mutilada
da própria pesquisa, acaba contribuindo para se reproduzir tanto a ilusão do
completo esgotamento de tudo o que foi feito (mas também de tudo o que deve ser
feito, tal como acontece com a ilusão do metodologismo, o qual tem como um de
seus efeitos a dogmatização da realização científica) na pesquisa pelo próprio pesquisador quanto
para alimentar a ilusão de que tudo o que acontece na prática científica se dá
de forma bem ordenada e não contraditória. Kaplan mostra a importância de se levar em
conta o modus operandi científico que acaba sendo reduzido, em virtude de um
apego excessivo a lógica reconstruída e a metodologia, a um opus operatum.
Contra o que ele chama de “mito da metodologia” (que consiste em acreditar que
a metodologia é condição suficiente para a realização científica) e a imagem
idealizada da pesquisa (imagem que, mediante a crença na autossuficiência da
lógica reconstruída, acaba ignorando a complexidade da investigação), aqui está
um livro relevante. Em suma, Kaplan argumenta que a pretensão da completa
reconstrução lógica de todo o enredo de uma pesquisa corresponde a uma
reprodução da visão idealizada da lógica da ciência que, por não conseguir
captar aquilo que ela acha que conseguiu, acaba reproduzindo o que seria a
pesquisa em seu refino e pureza, deixando de lado o modus operandi da e na
prática cientifica. Livro interessante,
já está esgotado, mas ainda há alguns na estante virtual.
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