Por Danilo José Viana da Silva
É contrariamente a leitura propagada
pelo ritual de embalsamento escolástico que tende mais a classificar e dividir
as supostas “fases” (em se tratando de Bachelard, essa divisão se realizou com
o intuito de dividir o seu pensamento entre a suposta “fase Diurna”, constituída
pela sua filosofia da ciência, e a suposta “fase Noturna”, constituída por um
suposto Bachelard poético, por um Bachelard “mais poético”) de um pensamento do
que a levar em conta o quanto as suas noções básicas foram produzidas para a
prática científica, que a psicanálise do fogo como uma psicanálise do
conhecimento científico pode ser tomada (assim como o faz sociólogos como
Bourdieu, por exemplo) como um instrumento que permite se ter um mínimo de consciência
sobre o próprio processo de produção da verdade científica.
O devaneio, assim como o fogo,
jamais pode ser totalmente eliminado, ele está potencialmente vivo em várias
dimensões. É com ciência de que o devaneio não cessa de afirmar sua força com
um vigor comparável ao de uma labareda de fogo, que a pesquisa científica pode
maximizar a vigilância epistemológica, “essa vigilância malévola”1,
contra as causas mais imperceptíveis do próprio devaneio.
A verdade científica, para
Bachelard, corresponde a uma incessante “reforma de uma ilusão”1 ,
ou seja, a verdade cientifica pode ser pensada como uma ilusão bem
fundamentada. A psicanálise do fogo além de corresponder a um importante
instrumento que permite se compreender a potência criativa e incontrolável do
devaneio (mais especificamente nas pesquisas sobre o fogo) também permite se
produzir instrumentos de controle contra tal potência, sejam tais instrumentos
os que o cientista emprega sobre si, sejam os que os componentes da cidadela
científica empregam uns contra os outros, possibilitando assim o exercício do
controle cruzando reforçado pela necessidade de prova pela experiência científica.
É assim, com ciência
da impossibilidade de se eliminar completamente o devaneio, que a descoberta da
verdade científica se realiza como uma incessante polêmica contra o erro, como
um constante e incessante processo de retificação. O suposto “Bachelard Noturno”
não corresponde a um filósofo e historiador da ciência que “decidiu” fazer poesia,
mas um filósofo preocupado com a própria potência do devaneio, da obscuridade, “do
narcisismo que a experiência primeira proporciona”3 ... e o quanto o
conhecimento desses vitais elementos pode ser importante e fundamental para a compreensão
da composição e da complexidade do próprio conhecimento científico.
Como lembra um de
seus mais ilustres discípulos,
“ainda ninguém tinha
dito com a insistente certeza de Bachelard que, antes de tudo, a mente é em si
mesma pura potência de erro, que o erro tem uma função positiva na gênese do
saber e que a ignorância não é uma espécie de lacuna ou ausência, mas tem a
estrutura e a vitalidade do instinto.”4
O devaneio enquanto potência ativa pode
ser pensado como as várias implicações tão profundas do pensamento que elas próprias
não se reconhecem. Tratam-se de experiências íntimas e, “quando fazemos experiências
ítimas, contradizemos fatalmente a experiência
objetiva.”5 É assim que um grande número de pensadores
pode pensar com pretensões científicas sobre, por exemplo, uma realidade
aparentemente tão evidente como o Estado mediante os próprios esquemas estatais
e oficiais de construção cognitiva do mundo profundamente arraigados em seus
espíritos: o que equivale a produção de uma “ciência” preditiva de seu objeto.
Em outras palavras, tal “ciência”
acaba sendo incontrolavelmente possuída por
seu próprio objeto na medida em que as disposições mais inconscientes de seus
realizadores são produtos do Estado, é assim que, como lembra Bourdieu, na
medida em que pensamos o Estado mediante categorias de pensamento propriamente
estatais, acabamos sendo “pensados por um Estado que acreditamos pensar”6
.
É assim que as condições de pesquisa
que se pretendem “científicas” se tornam bastante propícias para a realização
do “encontro do Estado consigo mesmo.”7 Sendo o Estado uma realidade aparentemente evidente
e imediata, as pesquisas que o tomam
como objeto podem ser pensadas, em sua maioria, como consideráveis exemplos de
como o devaneio não cessa de afirmar sua força incessante, assim como nas
pesquisas sobre o fogo que Bachelard chegou a analisar:
“o devaneio não cessa
de retomar os temas primitivos, não cessa de trabalhar como uma alma primitiva,
a despeito do pensamento elaborado, contra a própria instrução das experiências
científicas.”8
_________________________
1.
BACHELARD, Gaston.
A
psicanálise do fogo. Trad. Paulo Neves. 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes.
2008. P. 02
2.
BACHELARD, Gaston.
Epistemologia.
Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P.
15
3.
BACHELARD, Gaston.
A
psicanálise do fogo. P. 06
4. CANGUILHEM, Georges. Sur une
épistémologie concordataire. In.: BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude;
PASSERON, Jean-Claude. Ofício de
Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de
Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 103-104
5.
BACHELARD, Gaston.
A
psicanálise do fogo. P. 07
6. BOURDIEU, Pierre. Espíritos de
Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. In.: Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa –
Campinas, SP. Papirus. 1996. P. 91
7. BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: cursos no Collège de
France. Trad.: Rosa Freire d´Aguiar. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das
Letras, 2014. P. 173
8.
BACHELARD, Gaston.
A
psicanálise do fogo. P. 05-06