quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Gaston Bachelard: sobre a psicanálise do fogo e outras divagações




Por Danilo José Viana da Silva

            É contrariamente a leitura propagada pelo ritual de embalsamento escolástico que tende mais a classificar e dividir as supostas “fases” (em se tratando de Bachelard, essa divisão se realizou com o intuito de dividir o seu pensamento entre a suposta “fase Diurna”, constituída pela sua filosofia da ciência, e a suposta “fase Noturna”, constituída por um suposto Bachelard poético, por um Bachelard “mais poético”) de um pensamento do que a levar em conta o quanto as suas noções básicas foram produzidas para a prática científica, que a psicanálise do fogo como uma psicanálise do conhecimento científico pode ser tomada (assim como o faz sociólogos como Bourdieu, por exemplo) como um instrumento que permite se ter um mínimo de consciência sobre o próprio processo de produção da verdade científica.

            O devaneio, assim como o fogo, jamais pode ser totalmente eliminado, ele está potencialmente vivo em várias dimensões. É com ciência de que o devaneio não cessa de afirmar sua força com um vigor comparável ao de uma labareda de fogo, que a pesquisa científica pode maximizar a vigilância epistemológica, “essa vigilância malévola”1, contra as causas mais imperceptíveis do próprio devaneio.

            A verdade científica, para Bachelard, corresponde a uma incessante “reforma de uma ilusão”1 , ou seja, a verdade cientifica pode ser pensada como uma ilusão bem fundamentada. A psicanálise do fogo além de corresponder a um importante instrumento que permite se compreender a potência criativa e incontrolável do devaneio (mais especificamente nas pesquisas sobre o fogo)  também permite   se produzir instrumentos de controle contra tal potência, sejam tais instrumentos os que o cientista emprega sobre si, sejam os que os componentes da cidadela científica empregam uns contra os outros, possibilitando assim o exercício do controle cruzando reforçado pela necessidade de prova pela experiência científica.   

É assim, com ciência da impossibilidade de se eliminar completamente o devaneio, que a descoberta da verdade científica se realiza como uma incessante polêmica contra o erro, como um constante e incessante processo de retificação. O suposto “Bachelard Noturno” não corresponde a um filósofo e historiador da ciência que “decidiu” fazer poesia, mas um filósofo preocupado com a própria potência do devaneio, da obscuridade, “do narcisismo que a experiência primeira proporciona”3 ... e o quanto o conhecimento desses vitais elementos pode ser importante e fundamental para a compreensão da composição e da complexidade do próprio conhecimento científico.

Como lembra um de seus mais ilustres discípulos,

“ainda ninguém tinha dito com a insistente certeza de Bachelard que, antes de tudo, a mente é em si mesma pura potência de erro, que o erro tem uma função positiva na gênese do saber e que a ignorância não é uma espécie de lacuna ou ausência, mas tem a estrutura e a vitalidade do instinto.”4    

            O devaneio enquanto potência ativa pode ser pensado como as várias implicações tão profundas do pensamento que elas próprias não se reconhecem. Tratam-se de experiências íntimas e, “quando fazemos experiências ítimas, contradizemos fatalmente a experiência objetiva.”5  É assim que um grande número de pensadores pode pensar com pretensões científicas sobre, por exemplo, uma realidade aparentemente tão evidente como o Estado mediante os próprios esquemas estatais e oficiais de construção cognitiva do mundo profundamente arraigados em seus espíritos: o que equivale a produção de uma  “ciência” preditiva de seu objeto.

            Em outras palavras, tal “ciência” acaba sendo incontrolavelmente  possuída por seu próprio objeto na medida em que as disposições mais inconscientes de seus realizadores são produtos do Estado, é assim que, como lembra Bourdieu, na medida em que pensamos o Estado mediante categorias de pensamento propriamente estatais, acabamos sendo “pensados por um Estado que acreditamos pensar”6 .

            É assim que as condições de pesquisa que se pretendem “científicas” se tornam bastante propícias para a realização do “encontro do Estado consigo mesmo.”7  Sendo o Estado uma realidade aparentemente evidente  e imediata, as pesquisas que o tomam como objeto podem ser pensadas, em sua maioria, como consideráveis exemplos de como o devaneio não cessa de afirmar sua força incessante, assim como nas pesquisas sobre o fogo que Bachelard chegou a analisar:


“o devaneio não cessa de retomar os temas primitivos, não cessa de trabalhar como uma alma primitiva, a despeito do pensamento elaborado, contra a própria instrução das experiências científicas.”8   
  

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1.      BACHELARD, Gaston.  A psicanálise do fogo. Trad. Paulo Neves. 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes. 2008. P. 02
2.      BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 15
3.      BACHELARD, Gaston.  A psicanálise do fogo. P. 06
4.      CANGUILHEM, Georges. Sur une épistémologie concordataire. In.: BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 103-104
5.      BACHELARD, Gaston.  A psicanálise do fogo. P. 07
6.      BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. In.: Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996. P. 91
7.      BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: cursos no Collège de France. Trad.: Rosa Freire d´Aguiar. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2014. P. 173
8.      BACHELARD, Gaston.  A psicanálise do fogo. P. 05-06