terça-feira, 5 de maio de 2015

Sobre a rigidez epistemocrática como um obstáculo à luta contra a nova vulgata.


Arte de Mariano Amaral: Terceirização e Tragédias sociais.







Por Danilo José Viana da Silva




“Combater tal política e defender as aquisições mais progressistas do passado significa parecer arcaico. Situação ainda mais paradoxal quando se é levado a defender coisas que de resto quer se transformar, como o serviço público e o Estado nacional, que ninguém pensa em conservar como está ou os sindicatos ou mesmo a escola pública, que é preciso continuar a submeter à crítica mais impiedosa”
                                       (BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2.RJ: Jorge Zahar ED, 2001. P. 41-42)




            A situação atual exige a tomada de atitudes paradoxais, tal como lembra a epígrafe de Bourdieu: exige a defesa de coisas que em um estado normal não deveriam ser defendidas tais como estão, pois precisam ser transformadas.

            Entre essas coisas, estão as grandes conquistas históricas, tais como os direitos trabalhistas e os serviços públicos (consideravelmente precarizados) que estão sendo postos em xeque pelo pacote de políticas neoliberais de precarização do trabalho assalariado e de institucionalização da insegurança ao mesmo tempo subjetiva e objetiva que está sendo aprovado por uma das facetas mais conservadoras do nosso Congresso Nacional.

            Além da defesa desses direitos trabalhistas, por menos eficazes que eles ainda sejam em nosso país, há ainda a luta contra a redução da maioridade penal. Sendo a redução da maioridade um dos componentes desse pacote de políticas neoliberais de penalização da miséria.

            Como lembra um dos maiores pesquisadores sobre o problema, uma das características  da penalidade neoliberal é que ela corresponde a um


regime que pode ser qualificado de “liberal-paternalista”, já que é liberal e permissivo no topo, em relação às corporações e às classes superiores, e paternalista e autoritário na base, em relação àqueles que se acham imprensados entre a reestruturação do emprego e o recuo da proteção social ou a sua conversão em instrumento de vigilância e disciplina.” 1 


            O tratamento de mão de ferro dado àqueles menores que são reconhecidos socialmente como párias sociais, totalmente abandonados por um Estado que a cada dia reduz o seu papel social, corresponde a uma das características das políticas neoliberais made in USA  de “combate” a criminalidade.

            Esta política de precarização dos direitos e de redução da maioridade penal, cega para o combate efetivo as causas da criminalidade  e atuante apenas no combate repressivo e policial no que tange as suas consequências, acaba potencializando ainda mais as condições para o aumento da criminalidade.

            Na medida em que o Estado reduz drasticamente a sua esfera de proteção social com a precarização dos direitos trabalhistas, ele caminha para a institucionalização da insegurança ao mesmo tempo subjetiva e objetiva: essa política de precarização, por se caracterizar pela elevação do risco e da insegurança aos trabalhadores, está baseada no “mito da transformação de todos os assalariados em pequenos empresários dinâmicos.”2  

            Por se caracterizar por uma considerável insegurança estrutural, cultuada pelos papas do neoconservadorismo como uma virtude, em que  instabilidade e flexibilidade são a regra, os assalariados acabam sendo vítimas desprotegidas dessa ilusão propiciada pela filosofia do “faça você mesmo” e do “self help (herdada da crença calvinista de que Deus ajuda aqueles que ajudam a si próprios).”3    

            A política de precarização dos direitos trabalhistas, com todos os seus efeitos de institucionalização da insegurança, acaba contribuindo para a produção de um verdadeiro desajustamento entre as expectativas subjetivas e as suas condições objetivas de realização; onde os assalariados, sem as menores condições de amortecer os efeitos nefastos da hipermobilidade do capital atrelada às políticas de desestruturação do Estado social e de maximização do Estado penal, estão entregues a um “sistema de instabilidade crônica”4  que tem todos os pré-requisitos para a instauração e maximização do precariado, sem falar nas consequências  e custos sociais daí advindos, tais como o “alcoolismo, droga, delinquência, acidentes de trabalho, etc.”5  

            Neste caso, as lutas contra esse pacote de precarização dos direitos trabalhistas e contra a redução da maioridade penal deveriam ser realizadas em conjunto, tendo em vista o fortalecimento e a contribuição a um verdadeiro movimento que conseguiria transpor as barreiras da torre de marfim acadêmica.

            Entretanto, um dos efeitos mais perversos das divisões estruturadas ao mesmo tempo nas coisas (nos manuais doutrinários de direito penal, ou, por exemplo, na instituição de disciplinas  divididas por um rígido muro epistemocrático) e nos cérebros (mediante o emprego de categorias cognitivas de construção de problemas conforme os rígidos limites institucionais impostos como virtude e que, na verdade, mostram “como virtudes pequeno-burguesas de “prudência”, de “seriedade”, de honestidade”, etc., (...) poderiam outrossim exercer-se na gestão de uma contabilidade comercial ou num emprego administrativo, se convertem aqui em “método científico”6) é o de impedir o exercício do pensamento relacional que poderia ser consideravelmente produtivo: pelo fato de tanto a precarização do trabalho quanto a redução da maioridade penal constituírem dois elementos da política contra os pobres e miseráveis, eles possuem as pré-condições para a instauração da insegurança individual e coletiva e para o próprio aumento da criminalidade, além de contribuir para a maximização da superlotação carcerária, verdadeira política de depósito dos párias urbanos. 

            À medida que a rígida distinção entre disciplinas (entre, por exemplo, direito penal, criminologia e direito do trabalho, nos cursos de direito) dificulta uma reflexão mais completa e relacional desse problema, com a desculpa positivista e epistemocrática ( que tem como uma de suas características a confusão entre rigor e rigidez) de que cada uma delas possui o seu “objeto” bem delimitado e circunscrito, as críticas dos estudiosos da justiça criminal mais voltados para a esquerda acabam se parecendo com verdadeiros disparos de balas de festim. O mesmo pode-se dizer dos estudiosos dos  direitos trabalhistas que ignoram completamente os efeitos nefastos da redução da maioridade penal.

            Levando em conta as formas  como as lutas de classe estão presentes no interior do campo jurídico, onde os juristas lutam em prol da maximização do capital jurídico, essas lutas de classe aparecem de forma eufemizada a partir da distinção entre, por exemplo, os juristas mais inclinados a “justiça do povo” e da classe trabalhadora, e os juristas “militantes” do direito empresarial, mais relacionados aos interesses do polo dominante no interior do campo econômico.

            É neste sentido, ou seja, à medida que as lutas de classe são constantemente transfiguradas por um processo de racionalização jurídica, que a luta não apenas acadêmica em prol da defesa dos direitos trabalhistas  ou contra a redução da maioridade pode aparentar,  para, por exemplo, os juristas mais voltados para os interesses dos dominantes economicamente, uma causa pouco “nobre”.

            É neste sentido  que a rigidez epistemocrática do direito (verdadeiro limite de fronteira) pode representar um forte obstáculo a uma possível contribuição na luta contra o avanço neoliberal de precarização do trabalho e de penalização da pobreza: se elas precisam ser pensadas em conjunto, justamente pelo fato de atingirem com maior violência as populações mais pobres, elas também precisam ser combatidas em conjunto, e esse combate jamais deve se limitar aos meros debates acadêmicos.

            É preciso lembrar uma citação de Wacquant a respeito: “Estudantes do bem-estar social e da justiça criminal se unam, vocês não têm nada a perder, exceto suas amarras conceituais.” 7   A rigidez epistemocrática, reduzindo cada um em sua torre de marfim limitada, aprisiona cada scholar em sua redoma escolástica.     
      
                                    


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1.      WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Trad. Sérgio Lamarão. – RJ: Revan, 2003, 3ª ed. p. 35
2.      BOURDIEU,  Pierre. Contrafogos 2. Trad. André Telles. – RJ: Jorge Zahar Ed, 2001. P. 51
3.      BOURDIEU,  Pierre. Contrafogos 2. P. 31
4.      BOURDIEU,  Pierre. Contrafogos 2. P. 51
5.      BOURDIEU,  Pierre. Contrafogos 2. P. 57
6.      BOURDIEU, Pierre. INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA. In: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 41-31
7.      WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade: revisitando a fusão entre workfare e prisonfare. Trad. Julia Alexim. (entrevista)