Arte de Mariano Amaral: Terceirização e Tragédias sociais.
Por Danilo José Viana da Silva
“Combater tal
política e defender as aquisições mais progressistas do passado significa
parecer arcaico. Situação ainda mais paradoxal quando se é levado a defender
coisas que de resto quer se transformar, como o serviço público e o Estado
nacional, que ninguém pensa em conservar como está ou os sindicatos ou mesmo a
escola pública, que é preciso continuar a submeter à crítica mais impiedosa”
(BOURDIEU, Pierre.
Contrafogos 2.RJ: Jorge Zahar ED, 2001. P. 41-42)
A situação atual exige a tomada
de atitudes paradoxais, tal como lembra a epígrafe de Bourdieu: exige a defesa
de coisas que em um estado normal não deveriam ser defendidas tais como estão,
pois precisam ser transformadas.
Entre essas coisas, estão as grandes
conquistas históricas, tais como os direitos trabalhistas e os serviços
públicos (consideravelmente precarizados) que estão sendo postos em xeque pelo
pacote de políticas neoliberais de precarização do trabalho assalariado e de
institucionalização da insegurança ao mesmo tempo subjetiva e objetiva que
está sendo aprovado por uma das facetas mais conservadoras do nosso Congresso
Nacional.
Além da defesa desses direitos
trabalhistas, por menos eficazes que eles ainda sejam em nosso país, há ainda a
luta contra a redução da maioridade penal. Sendo a redução da maioridade um dos
componentes desse pacote de políticas neoliberais de penalização da miséria.
Como lembra um dos maiores pesquisadores
sobre o problema, uma das características
da penalidade neoliberal é que ela corresponde a um
“regime que pode
ser qualificado de “liberal-paternalista”, já que é liberal e permissivo no topo, em relação às corporações e às
classes superiores, e paternalista e
autoritário na base, em relação àqueles que se acham imprensados entre a
reestruturação do emprego e o recuo da proteção social ou a sua conversão em
instrumento de vigilância e disciplina.” 1
O tratamento de mão de ferro dado
àqueles menores que são reconhecidos socialmente como párias sociais,
totalmente abandonados por um Estado que a cada dia reduz o seu papel social,
corresponde a uma das características das políticas neoliberais made in USA de “combate” a criminalidade.
Esta política de precarização dos
direitos e de redução da maioridade penal, cega para o combate efetivo as
causas da criminalidade e atuante apenas
no combate repressivo e policial no que tange as suas consequências, acaba
potencializando ainda mais as condições para o aumento da criminalidade.
Na medida em que o Estado reduz
drasticamente a sua esfera de proteção social com a precarização dos direitos
trabalhistas, ele caminha para a institucionalização da insegurança ao mesmo
tempo subjetiva e objetiva: essa política de precarização, por se caracterizar
pela elevação do risco e da insegurança aos trabalhadores, está baseada no
“mito da transformação de todos os assalariados em pequenos empresários
dinâmicos.”2
Por se caracterizar por uma
considerável insegurança estrutural, cultuada pelos papas do neoconservadorismo
como uma virtude, em que instabilidade e flexibilidade são a regra, os
assalariados acabam sendo vítimas desprotegidas dessa ilusão propiciada pela
filosofia do “faça você mesmo” e do “self
help (herdada da crença calvinista de que Deus ajuda aqueles que ajudam a
si próprios).”3
A política de precarização dos
direitos trabalhistas, com todos os seus efeitos de institucionalização da
insegurança, acaba contribuindo para a produção de um verdadeiro desajustamento
entre as expectativas subjetivas e as suas condições objetivas de realização;
onde os assalariados, sem as menores condições de amortecer os efeitos nefastos
da hipermobilidade do capital atrelada às políticas de desestruturação do Estado
social e de maximização do Estado penal, estão entregues a um “sistema de
instabilidade crônica”4 que
tem todos os pré-requisitos para a instauração e maximização do precariado, sem
falar nas consequências e custos sociais
daí advindos, tais como o “alcoolismo, droga, delinquência, acidentes de
trabalho, etc.”5
Neste caso, as lutas contra esse
pacote de precarização dos direitos trabalhistas e contra a redução da
maioridade penal deveriam ser realizadas em conjunto, tendo em vista o
fortalecimento e a contribuição a um verdadeiro movimento que conseguiria transpor
as barreiras da torre de marfim acadêmica.
Entretanto, um dos efeitos mais
perversos das divisões estruturadas ao mesmo tempo nas coisas (nos manuais
doutrinários de direito penal, ou, por exemplo, na instituição de disciplinas divididas por um rígido muro epistemocrático) e nos cérebros
(mediante o emprego de categorias cognitivas de construção de problemas
conforme os rígidos limites institucionais impostos como virtude e que, na
verdade, mostram “como virtudes pequeno-burguesas de “prudência”, de
“seriedade”, de honestidade”, etc., (...) poderiam outrossim exercer-se na
gestão de uma contabilidade comercial ou num emprego administrativo, se
convertem aqui em “método científico”6) é o de impedir o exercício
do pensamento relacional que poderia
ser consideravelmente produtivo: pelo fato de tanto a precarização do trabalho
quanto a redução da maioridade penal constituírem dois elementos da política
contra os pobres e miseráveis, eles possuem as pré-condições para a instauração
da insegurança individual e coletiva e para o próprio aumento da criminalidade,
além de contribuir para a maximização da superlotação carcerária, verdadeira
política de depósito dos párias urbanos.
À medida que a rígida distinção
entre disciplinas (entre, por exemplo, direito penal, criminologia e direito do
trabalho, nos cursos de direito) dificulta uma reflexão mais completa e
relacional desse problema, com a desculpa positivista e epistemocrática ( que
tem como uma de suas características a confusão entre rigor e rigidez) de que
cada uma delas possui o seu “objeto” bem delimitado e circunscrito, as críticas
dos estudiosos da justiça criminal mais voltados para a esquerda acabam se
parecendo com verdadeiros disparos de balas de festim. O mesmo pode-se dizer
dos estudiosos dos direitos trabalhistas
que ignoram completamente os efeitos nefastos da redução da maioridade penal.
Levando em conta as formas como as lutas de classe estão presentes no
interior do campo jurídico, onde os juristas lutam em prol da maximização do
capital jurídico, essas lutas de classe aparecem de forma eufemizada a partir
da distinção entre, por exemplo, os juristas mais inclinados a “justiça do
povo” e da classe trabalhadora, e os juristas “militantes” do direito
empresarial, mais relacionados aos interesses do polo dominante no interior do
campo econômico.
É neste sentido, ou seja, à medida
que as lutas de classe são constantemente transfiguradas por um processo de
racionalização jurídica, que a luta não apenas acadêmica em prol da defesa dos
direitos trabalhistas ou contra a
redução da maioridade pode aparentar, para, por exemplo, os juristas mais
voltados para os interesses dos dominantes economicamente, uma causa pouco “nobre”.
É neste sentido que a rigidez
epistemocrática do direito (verdadeiro limite de fronteira) pode representar um
forte obstáculo a uma possível contribuição na luta contra o avanço neoliberal
de precarização do trabalho e de penalização da pobreza: se elas precisam ser pensadas em conjunto,
justamente pelo fato de atingirem com maior violência as populações mais
pobres, elas também precisam ser combatidas em conjunto, e esse combate jamais
deve se limitar aos meros debates acadêmicos.
É preciso lembrar uma citação de
Wacquant a respeito: “Estudantes do bem-estar social e da justiça criminal se
unam, vocês não têm nada a perder, exceto suas amarras conceituais.” 7 A rigidez epistemocrática, reduzindo cada um
em sua torre de marfim limitada, aprisiona cada scholar em sua redoma escolástica.
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1.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Trad. Sérgio Lamarão.
– RJ: Revan, 2003, 3ª ed. p. 35
2.
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos
2. Trad. André Telles. – RJ: Jorge Zahar Ed, 2001. P. 51
3.
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos
2. P. 31
4.
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos
2. P. 51
5.
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos
2. P. 57
6.
BOURDIEU, Pierre.
INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA.
In: O poder simbólico. Trad.
Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 41-31
7.
WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade: revisitando
a fusão entre workfare e prisonfare. Trad. Julia Alexim. (entrevista)