Foto: "BUSY" LOUIE em sessão de sparring com Ashante
Por Danilo José Viana
da Silva
Introdução
Um dos pares de
oposições mais persistentes e combatidos pela sociologia de Pierre Bourdieu
corresponde a falsa oposição entre teoria e prática. Tomando como ponto de
partida o fato de que qualquer prática científica digna desse nome corresponde
a uma ruptura com o senso comum, essa oposição fundamenta não apenas as
estruturas subjetivas de percepção e construção cognitiva do mundo, mas também
as estruturas objetivas do mundo social: tome-se como exemplo os procedimentos
para a aquisição da Cartenira Nacional de Habilitação no Brasil, em que os
pretendentes são avaliados em uma primeira fase dita “teórica” e outra,
separada da primeira, dita “prática”.
Assim, tendo
ciência do quanto essa oposição fundamenta tanto objetivamente quanto subjetivamente a vida
social, a sociologia de Pierre Bourdieu corresponde a uma exigência de uma
reflexão crítica sobre os instrumentos de construção da problemática e do
objeto que também correspondem a uma das
formas mediante as quais essa oposição dicotômica pode se afirmar na prática da pesquisa em ciências sociais. Neste caso, tal sociologia realiza uma espécie de
dupla ruptura: ela rompe tanto com o senso comum contra o qual o conhecimento
científico se construiu, mas também rompe com o senso comum erudito que tende a
reproduzir, por falta de uma reflexão mais apurada sobre os instrumentos e as
disposições que empregam para construir o real, a aludida oposição.
Levando-se em conta a ruptura com essa oposição que
a noção de habitus enquanto senso
prático - quer dizer, enquanto um conjunto de princípios adquiridos via
socialização e produtores de práticas que não podem ser tomadas como meras
execuções de uma regra sob pena de se destruir a verdade das práticas que a
pesquisa científica deve levar em conta - pôde engendrar, o presente texto também
aborda alguns aliados de Bourdieu nesse trabalho de reflexão para se
desvencilhar dessas falsas oposições, tal como o filósofo Charles S. Peirce,
bem como alguns relevantes desdobramentos que a noção de habitus pôde engendrar na etnografia do universo pugilístico realizada por Loïc
Wacquant.
1. A persistência do par de
oposição entre teoria e prática
Como exemplo de como a oposição entre teoria e
prática estrutura objetivamente o mundo social, o que tende a contribuir para a
sua reprodução mediante o trabalho de inculcação mental realizado pelo próprio
mundo social, pode-se mencionar o processo de avaliação para a aquisição da
Carteira Nacional de Habilitação no Brasil.
Estruturado entre duas fases distintas e separadas, uma
dita “teórica” e outra dita “prática”, esse procedimento de institucionalização
dessa oposição dicotômica tende a contribuir para a sua reprodução mediante a contribuição
do trabalho de inculcação mental e escolar possibilitado pelas aulas
ditas “teóricas” e “práticas.”
É neste sentido que essa oposição existe tanto
exteriormente, reificada nas estruturas institucionais e nos processos de
avaliação reconhecidos pelo Estado como obrigatórios para todos aqueles que
pretendem dirigir um automóvel de forma regular, quanto no interior dos
próprios agente sociais, mediante as categorias cognitivas adquiridas via
socialização.
A divisão entre a fase chamada
“teórica” e a fase chamada “prática” pode ser tomada como um exemplo, entre
outros, de que esses pares de opostos historicamente constituídos estruturam a
um só tempo tanto a realidade social, quanto os esquemas incorporados de percepção
e apreciação do mundo. À medida que esses pares constituem os próprios métodos
de avaliação institucionalizados, tal como no exemplo das duas fases, eles
acabam contribuindo para potencializar o efeito de reprodução das estruturas
sociais e simbólicas.
O exemplo citado pode ser tomado como um dos casos mais
expressos e paradigmáticos da oposição entre teoria e prática. Esta oposição é
atuante em diversos universos de práticas específicas, tal como no próprio
universo intelectual. E uma das formas pelas quais ela engendra os seus efeitos
corresponde justamente as distinções entre conhecimento puro, entendido como um
tipo de conhecimento que contém apenas a forma a partir da qual determinado
objeto é conhecido, e o conhecimento prático ou aplicado, ou então, através da
oposição entre ação e pensamento.
Essa oposição (teoria e prática), como lembra Bourdieu,
encontra-se
Profundamente inscrita
no inconsciente escolástico, essa oposição domina todo o pensamento. Funciona
como um princípio absoluto de divisão, ela impede se descubra por exemplo que,
como lembra Dewey, a prática adaptada (falar uma língua ou andar de bicicleta)
constitui um conhecimento e encerra inclusive uma forma bastante particular de
reflexão.1
Neste caso, a aludida oposição corresponde a um
considerável obstáculo a pesquisa científica em sociologia, pois ela impede que
se leve em conta as práticas reconhecidas como mais elementares e um tipo de
reflexão que está abaixo do nível da consciência.
Pelo fato de tal oposição contribuir para a
redução do pensamento apenas a razão
raciocinante, ao pensamento racional e consciente, ela acaba ignorando o quanto
a ação, ou quanto determinada prática, está implicada em um tipo de reflexão
que não se reduz a razão raciocinante. Ela contribui para ignorar as práticas que, assim
como os lances improvisados em um jogo de futebol, não têm a razão como
princípio, mas que nem por isso deixam de ser razoáveis.
Uma das contribuições mais relevantes do pragmatismo
de Charles S. Peirce para a sociologia reflexiva desenvolvida por Bourdieu
corresponde justamente a crítica a tal par de oposição. Como lembra Peirce, “a
função global do pensamento consiste em produzir hábitos de acção.”2
Sendo, segundo Peirce, a função principal do pensamento a produção da crença,
de um senso comum, de uma crença enquanto um estado de apaziguamento mental, e
sendo a função da crença “a criação de um hábito,”3 é só a custa da
reprodução de uma verdadeira falácia que a ação pode ser desvinculada do
pensamento. Em Peirce eles estão profundamente imbricados a ponto de a relação
entre pensamento e ação não está sujeita ao voluntarismo. Todo hábito, toda
ação, é produto da ação do pensamento que produz uma determinada crença, um
determinado senso.
Além de tratar o pensamento como uma ação
efetiva, ele não fica reduzido a razão raciocinante ou a teoria. Segundo
Peirce, o pensamento jamais pode ser tão somente visto como uma reflexão
consciente e acadêmica. Quando se desconsidera essas considerações, as práticas
de determinados agentes podem ser mutiladas por uma forma de construção dessas
práticas que ignora completamente a reflexão inconsciente (não acadêmica, não
teórica) que está imbricada na própria prática.
À medida que uma reflexão sobre os perigos
propiciados pela persistência desse par de oposição (teoria e prática) é
ignorada, as condições de pesquisa cumprem os mais sugestivos preceitos para se
ignorar a própria “pluralidade das formas de “inteligência,”4 além
de contribuir para impedir, como lembra Bourdieu, que “se produza um
conhecimento adequado do conhecimento prático”5 sem cair em “um
certo populismo irracionalista e reacionário”6 que a “exaltação da
prática e da tradição”7 tende a fortalecer.
É o desconhecimento do
desconhecimento dos efeitos perniciosos que essa oposição pode engendrar
para as ciências sociais que permite a desconsideração da
Lógica de todas as
ações que são razoáveis sem ser produto de um plano razoável; habitadas por
um espécie de finalidade objetiva sem serem conscientemente organizadas em
relação a um fim explicitamente constituído; inteligíveis e coerentes sem serem
originárias de uma intenção de coerência e de uma decisão deliberada.8
É preciso lembrar a importância
de se por em xeque os pares de oposições mais persistentes (tendo em vista o
fato de estarem profundamente arraigados no inconsciente social) para a
pesquisa etnográfica. Neste caso, pode-se mencionar a pesquisa etnográfica
desenvolvida por Wacquant nos gyns dos
guetos de Chicago. Como lembra Wacquant
Tornar-se boxeador
é apropriar-se, por impregnação progressiva, de um conjunto de mecanismos
corporais e de esquemas mentais tão estreitamente imbricados que eles apagam a
distinção entre o físico e o espiritual, ente o que emerge das capacidades
atléticas e o que diz respeito às faculdades morais e à vontade. O boxeador é
uma engrenagem viva de corpo e de
espírito que despreza a fronteira entre razão e paixão, que explode a oposição
ente ação e a representação (...)9
Quando o pensamento é reduzido a
uma mera atividade contemplativa e destemporalizante da teoria, do saber
teórico e consciente, as condições de pesquisa se tornam férteis para a
reprodução de um obstáculo a pesquisa etnográfica. Esse obstáculo impede que se
compreenda que a prática do boxe, como lembra Wacquant, está completamente
imbricada com uma forma bastante específica de reflexão que nada tem a ver com a
reflexão consciente e racional.
A própria prática do boxe pode ser
vista como uma ação que não pode passar pela consciência discursiva. Cada ação
é resultado da incorporação progressiva de um conjunto de saberes não
codificados expressamente, mas que se fazem corpo no próprio pugilista. Neste
caso, como sustenta Wacquant, o boxe corresponde “a um saber prático composto
de esquemas imanentes a prática.”10 O boxe, assim, corresponde a uma
prática que está completamente imbricada em um saber. O corpo do pugilista
corresponde a um típico exemplo de um saber realizado, incorporado. O boxeador
é uma regra feita corpo. Quer dizer que só o treinamento constante e árduo
“permite que se adquira esse domínio prático das regras do pugilismo, o qual
exatamente dispensa que essas regras se constituam como tal na consciência.”11
A oposição entre
ação e pensamento (teoria e prática) cientificamente não faz nenhum sentido,
ela corresponde a um verdadeiro obstáculo cuja superação pode ser tomada como
uma das condições para o progresso da pesquisa em ciências sociais. Quando se
trata de pensar processos de compreensão pelo corpo, de “compreensão do corpo,”12
pensamento e ação estão tão profundamente imbricados que a reprodução da
oposição entre teoria e prática possui todos os pré-requisitos para a
destruição da própria especificidade das práticas que uma pesquisa que se
pretende rigorosa deveria construir. A prática do boxe, tal como nas pesquisas
desenvolvidas por Wacquant, corresponde a um conjunto de regras em estado
incorporado (habitus), ou seja, não
faz nenhum sentido pensar em regras que existiriam no exterior dos agentes e
que só seriam realizadas a partir de um ato consciente.
Assim, pensar em habitus pugilístico é pensar em um ethos feito corpo; em uma regra feita
corpo; em um conjunto de esquemas de percepção e, ao mesmo tempo, produtor de
práticas. O habitus pugilístico
corresponde a um efeito “de um trabalho
de aperfeiçoamento do corpo e do espírito.”13 Um e outro são aperfeiçoados simultaneamente.
Se o progresso das
ciências sociais tem como uma de suas condições a ruptura com ao seu
desenvolvimento (tal como o aludido par de oposição), isso ocorre, em grande
parte, porque ela faz, como lembra Bourdieu em sua aula inaugural no Collège de France, “recuar a tentação da
magia, essa hybris da ignorância
ignorante de si mesma e que, caçada na relação com a mundo natural, sobrevive
na relação com o mundo social.”14
Neste sentido,
tratar, por exemplo, as práticas dos juristas como meras execuções de regras
corresponde a um procedimento comparável aquele com o qual, segundo Pascal, os
geômetras tentavam racionalizar segundo o método geométrico as práticas mais
sutis e menos codificáveis pela razão raciocinante. Como ele lembra,
os geômetras
querem tratar geometricamente essas coisas sutis e tornam-se ridículos,
procurando começar pelas definições e em seguida pelos princípios, o que não é
a maneira de proceder nessa espécie de raciocínio. 15
À medida que as
relações de força no interior do microcosmo jurídico são reduzidas a meras
relações comunicativas entre agentes intercambiáveis, as condições de pesquisa
se tornam propícias para a mutilação, mediante princípios estéreis, dessas
relações. As “relações de comunicação por excelência – são também relações de
poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre locutores ou seus
respectivos grupos.”16
A ruptura com o economicismo que tende a reduzir essas
relações a buscas racionais e conscientes para a maximização do lucro
monetário, assim como a ruptura com o culturalismo que, como uma espécie de
extremo oposto do economicismo, tende a reproduzir uma visão encantada da
cultura onde os agentes seriam reduzidos a meros maximizadores de conhecimento,
reduzindo este a um tipo de conhecimento purificado de tudo o que pode estar
relacionado ao poder, corresponde a uma exigência da sociologia do campo
jurídico desenvolvida por Bourdieu.
Conclusão
Correspondendo a um
par de oposição que fundamenta inconscientemente tantos as estruturas objetivas
do mundo social quanto as estruturas subjetivas, a falsa oposição entre teoria
e prática corresponde a um obstáculo epistemológico para o desenvolvimento da
pesquisa em ciências sociais.
Na medida em que
ela fundamenta alguns pares de oposições que são constitutivos de tomadas de
posições no campo das ciências sociais, tais como as tomadas de posição a favor
da sociologia empirista em contraposição a sociologia teórica, a oposição entre
teoria e prática corresponde mais a um entrave do que uma ferramenta
verdadeiramente útil ao progresso das ciências sociais. É neste sentido que a vigilância
epistemológica deve maximizar os seus instrumentos no combate a esses pares de
oposições que, inconscientemente, contribuem para a construção de problemas e
de objetos que só tem a ver com problemas e objetos verdadeiramente científicos
pelo fato de se autointitularem científicos.
Por desconsiderar
a importância de uma reflexão mais apurada sobre os efeitos mais perniciosos
que esse par de oposição pode engendrar, a pesquisa em ciências sociais acaba
cumprindo os requesitos para a destruição da lógica da prática que nada tem a
ver com a lógica destemporalizante que tende a reduzir as ações dos agentes a
execuções de regras ou a meros reflexos de estruturas.
É neste sentido
que a noção de habitus enquanto
sentido do jogo incorporado desenvolvida por Pierre Bourdieu, assim como a
noção de campo, corresponde a um relevante instrumento que exige que se leve em
conta justamente aquilo contra o que a própria sociologia teve que se
constituir.
Em outras
palavras, ela exige que o sociólogo leve em conta a racionalidade específica
que orienta as práticas dos agentes em determinado campo sem reduzi-las aos
esquemas puramente formais de construção do objeto e das práticas.
E esse tipo de
exigência leva a um questionamento dos instrumentos de construção científica
das práticas dos agentes. Como um consistente exemplo da importância da noção
de habitus para as ciências sociais,
abordou-se a pesquisa etnográfica desenvolvida por Loïc Wacquant nos gyns de Chicago. A aludida noção
possibilitou se construir a prática pugilística não como mera execução de uma
regra exterior aos agentes envolvidos, mas como uma espécie de senso prático
incorporado via socialização.
O que exigiu que
fosse levando em conta o processo de inculcação e de incorporação de uma lógica
do jogo cujos princípios são imanentes a própria prática. Em outros termos,
isso exigiu que fosse levando em conta as condições sociais de aquisição dos
princípios do universo pugilístico, como o constante e progressivo envolvimento
com a prática do boxe é indispensável para se adquirir, abaixo do nível da
consciência, o capital corporal necessário para praticá-lo com alguma chance de
sucesso.
Assim, os golpes e
os movimentos característicos do boxe só podem ser reduzidos a atos plenamente
conscientes e calculados com a condição de se destruir a própria lógica das
práticas do boxe, onde pensamento e ação estão tão imbricados em um único ato
que não faria nenhum sentido atribuir à lógica da prática, neste caso, a
cumprimentos de regras que se dariam em um estado plenamente consciente, como
se a prática fosse meras execuções conscientes de regras não incorporadas. É
neste sentido que a relação entre teoria e prática não se sujeita ao
voluntarismo característico da filosofia da consciência.
____________________
- BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad.
Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 98
2.
PEIRCE, Charles S.
Como tornar nossas ideias claras. Trad.
António Fidalgo. Universidade da Beira Interior. P. 11
3.
PEIRCE, Charles S.
Op. Cit. P. 9
4.
BOURDIEU, Pierre.
Op. Cit. P. 99
5.
BOURDIEU, Pierre.
Ibid
6.
BOURDIEU, Pierre.
Ibid
7.
BOURDIEU, Pierre.
Ibid
- BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Trad. Maria
Ferreira. 2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. P. 85
- WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas
de um aprendiz de boxe. Trad. Angela Ramalho. – Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002. P. 34
- WACQUANT, Loïc. Op. Cit. P. 79
- WACQUANT, Loïc. Op. Cit. P. 89
- WACQUANT, Loïc. Ibid
- WACQUANT, Loïc. Ibid
- BOURDIEU, Pierre. Lições da aula: aula inaugural no Collège de France em 23 de abril de
1982. Trad. Egon de Oliveira Rangel. 2ª ed. Editora Ática: 2001. P. 35
- PASCAL, Blaise. Pensamentos
sobre o espírito e sobre o estilo. In.: Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. – 2ª ed. – São Paulo: Abril
Cultural. 1979. P. 38
- BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas:
o que falar quer dizer – 2ª ed. 1ª reimp. – São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2008. P. 24