segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Sobre um persistente par de oposição ou como a sociologia reflexiva permite superá-lo





Foto: "BUSY" LOUIE em sessão de sparring com Ashante



Por Danilo José Viana da Silva



Introdução


Um dos pares de oposições mais persistentes e combatidos pela sociologia de Pierre Bourdieu corresponde a falsa oposição entre teoria e prática. Tomando como ponto de partida o fato de que qualquer prática científica digna desse nome corresponde a uma ruptura com o senso comum, essa oposição fundamenta não apenas as estruturas subjetivas de percepção e construção cognitiva do mundo, mas também as estruturas objetivas do mundo social: tome-se como exemplo os procedimentos para a aquisição da Cartenira Nacional de Habilitação no Brasil, em que os pretendentes são avaliados em uma primeira fase dita “teórica” e outra, separada da primeira, dita “prática”.

      Assim, tendo ciência do quanto essa oposição fundamenta tanto objetivamente quanto subjetivamente a vida social, a sociologia de Pierre Bourdieu corresponde a uma exigência de uma reflexão crítica sobre os instrumentos de construção da problemática e do objeto que também  correspondem a uma das formas mediante as quais essa oposição dicotômica pode se afirmar na prática da pesquisa em ciências sociais. Neste caso, tal sociologia realiza uma espécie de dupla ruptura: ela rompe tanto com o senso comum contra o qual  o conhecimento científico se construiu, mas também rompe com o senso comum erudito que tende a reproduzir, por falta de uma reflexão mais apurada sobre os instrumentos e as disposições que empregam para construir o real, a aludida oposição.

Levando-se em conta a ruptura com essa oposição que a noção de habitus enquanto senso prático - quer dizer, enquanto um conjunto de princípios adquiridos via socialização e produtores de práticas que não podem ser tomadas como meras execuções de uma regra sob pena de se destruir a verdade das práticas que a pesquisa científica deve levar em conta -  pôde engendrar, o presente texto também aborda alguns aliados de Bourdieu nesse trabalho de reflexão para se desvencilhar dessas falsas oposições, tal como o filósofo Charles S. Peirce, bem como alguns relevantes desdobramentos que a noção de habitus pôde engendrar na etnografia  do universo pugilístico realizada por Loïc Wacquant.


1. A persistência do par de oposição entre teoria e prática


Como exemplo de como a oposição entre teoria e prática estrutura objetivamente o mundo social, o que tende a contribuir para a sua reprodução mediante o trabalho de inculcação mental realizado pelo próprio mundo social, pode-se mencionar o processo de avaliação para a aquisição da Carteira Nacional de Habilitação no Brasil.

Estruturado entre duas fases distintas e separadas, uma dita “teórica” e outra dita “prática”, esse procedimento de institucionalização dessa oposição dicotômica tende a contribuir para a sua reprodução mediante a  contribuição  do trabalho de inculcação mental e escolar possibilitado pelas aulas ditas “teóricas” e “práticas.”

É neste sentido que essa oposição existe tanto exteriormente, reificada nas estruturas institucionais e nos processos de avaliação reconhecidos pelo Estado como obrigatórios para todos aqueles que pretendem dirigir um automóvel de forma regular, quanto no interior dos próprios agente sociais, mediante as categorias cognitivas adquiridas via socialização.

              A divisão entre a fase chamada “teórica” e a fase chamada “prática” pode ser tomada como um exemplo, entre outros, de que esses pares de opostos historicamente constituídos estruturam a um só tempo tanto a realidade social, quanto os esquemas incorporados de percepção e apreciação do mundo. À medida que esses pares constituem os próprios métodos de avaliação institucionalizados, tal como no exemplo das duas fases, eles acabam contribuindo para potencializar o efeito de reprodução das estruturas sociais e simbólicas.

O exemplo citado pode ser tomado como um dos casos mais expressos e paradigmáticos da oposição entre teoria e prática. Esta oposição é atuante em diversos universos de práticas específicas, tal como no próprio universo intelectual. E uma das formas pelas quais ela engendra os seus efeitos corresponde justamente as distinções entre conhecimento puro, entendido como um tipo de conhecimento que contém apenas a forma a partir da qual determinado objeto é conhecido, e o conhecimento prático ou aplicado, ou então, através da oposição entre ação e pensamento.

Essa oposição (teoria e prática), como lembra Bourdieu, encontra-se


Profundamente inscrita no inconsciente escolástico, essa oposição domina todo o pensamento. Funciona como um princípio absoluto de divisão, ela impede se descubra por exemplo que, como lembra Dewey, a prática adaptada (falar uma língua ou andar de bicicleta) constitui um conhecimento e encerra inclusive uma forma bastante particular de reflexão.1



Neste caso, a aludida oposição corresponde a um considerável obstáculo a pesquisa científica em sociologia, pois ela impede que se leve em conta as práticas reconhecidas como mais elementares e um tipo de reflexão que está abaixo do nível da consciência.

Pelo fato de tal oposição contribuir para a redução do pensamento apenas  a razão raciocinante, ao pensamento racional e consciente, ela acaba ignorando o quanto a ação, ou quanto determinada prática, está implicada em um tipo de reflexão que não se reduz a razão raciocinante.   Ela contribui para ignorar as práticas que, assim como os lances improvisados em um jogo de futebol, não têm a razão como princípio, mas que nem por isso deixam de ser razoáveis.

Uma das contribuições mais relevantes do pragmatismo de Charles S. Peirce para a sociologia reflexiva desenvolvida por Bourdieu corresponde justamente a crítica a tal par de oposição. Como lembra Peirce, “a função global do pensamento consiste em produzir hábitos de acção.”2 Sendo, segundo Peirce, a função principal do pensamento a produção da crença, de um senso comum, de uma crença enquanto um estado de apaziguamento mental, e sendo a função da crença “a criação de um hábito,”3 é só a custa da reprodução de uma verdadeira falácia que a ação pode ser desvinculada do pensamento. Em Peirce eles estão profundamente imbricados a ponto de a relação entre pensamento e ação não está sujeita ao voluntarismo. Todo hábito, toda ação, é produto da ação do pensamento que produz uma determinada crença, um determinado senso.
Além de tratar o pensamento como uma ação efetiva, ele não fica reduzido a razão raciocinante ou a teoria. Segundo Peirce, o pensamento jamais pode ser tão somente visto como uma reflexão consciente e acadêmica. Quando se desconsidera essas considerações, as práticas de determinados agentes podem ser mutiladas por uma forma de construção dessas práticas que ignora completamente a reflexão inconsciente (não acadêmica, não teórica) que está imbricada na própria prática.

À medida que uma reflexão sobre os perigos propiciados pela persistência desse par de oposição (teoria e prática) é ignorada, as condições de pesquisa cumprem os mais sugestivos preceitos para se ignorar a própria “pluralidade das formas de “inteligência,”4 além de contribuir para impedir, como lembra Bourdieu, que “se produza um conhecimento adequado do conhecimento prático”5 sem cair em “um certo populismo irracionalista e reacionário”6 que a “exaltação da prática e da tradição”7 tende a fortalecer.

            É o desconhecimento do desconhecimento dos efeitos perniciosos que essa oposição pode engendrar para as ciências sociais que permite a desconsideração da


Lógica de todas as ações  que são  razoáveis sem ser   produto de um plano razoável; habitadas por um espécie de finalidade objetiva sem serem conscientemente organizadas em relação a um fim explicitamente constituído; inteligíveis e coerentes sem serem originárias de uma intenção de coerência e de uma decisão deliberada.8 


              É preciso lembrar a importância de se por em xeque os pares de oposições mais persistentes (tendo em vista o fato de estarem profundamente arraigados no inconsciente social) para a pesquisa etnográfica. Neste caso, pode-se mencionar a pesquisa etnográfica desenvolvida por Wacquant nos gyns dos guetos de Chicago. Como lembra Wacquant


Tornar-se boxeador é apropriar-se, por impregnação progressiva, de um conjunto de mecanismos corporais e de esquemas mentais tão estreitamente imbricados que eles apagam a distinção entre o físico e o espiritual, ente o que emerge das capacidades atléticas e o que diz respeito às faculdades morais e à vontade. O boxeador é uma engrenagem viva de corpo e de espírito que despreza a fronteira entre razão e paixão, que explode a oposição ente ação e a representação (...)9


              Quando o pensamento é reduzido a uma mera atividade contemplativa e destemporalizante da teoria, do saber teórico e consciente, as condições de pesquisa se tornam férteis para a reprodução de um obstáculo a pesquisa etnográfica. Esse obstáculo impede que se compreenda que a prática do boxe, como lembra Wacquant, está completamente imbricada com uma forma bastante específica de reflexão que nada tem a ver com a reflexão consciente e racional.

              A própria prática do boxe pode ser vista como uma ação que não pode passar pela consciência discursiva. Cada ação é resultado da incorporação progressiva de um conjunto de saberes não codificados expressamente, mas que se fazem corpo no próprio pugilista. Neste caso, como sustenta Wacquant, o boxe corresponde “a um saber prático composto de esquemas imanentes a prática.”10 O boxe, assim, corresponde a uma prática que está completamente imbricada em um saber. O corpo do pugilista corresponde a um típico exemplo de um saber realizado, incorporado. O boxeador é uma regra feita corpo. Quer dizer que só o treinamento constante e árduo “permite que se adquira esse domínio prático das regras do pugilismo, o qual exatamente dispensa que essas regras se constituam como tal na consciência.”11

A oposição entre ação e pensamento (teoria e prática) cientificamente não faz nenhum sentido, ela corresponde a um verdadeiro obstáculo cuja superação pode ser tomada como uma das condições para o progresso da pesquisa em ciências sociais. Quando se trata de pensar processos de compreensão pelo corpo, de “compreensão do corpo,”12 pensamento e ação estão tão profundamente imbricados que a reprodução da oposição entre teoria e prática possui todos os pré-requisitos para a destruição da própria especificidade das práticas que uma pesquisa que se pretende rigorosa deveria construir. A prática do boxe, tal como nas pesquisas desenvolvidas por Wacquant, corresponde a um conjunto de regras em estado incorporado (habitus), ou seja, não faz nenhum sentido pensar em regras que existiriam no exterior dos agentes e que só seriam realizadas a partir de um ato consciente.

Assim, pensar em habitus pugilístico é pensar em um ethos feito corpo; em uma regra feita corpo; em um conjunto de esquemas de percepção e, ao mesmo tempo, produtor de práticas. O habitus pugilístico corresponde a um efeito “de um trabalho de aperfeiçoamento do corpo e do espírito.”13  Um e outro são aperfeiçoados simultaneamente.

Se o progresso das ciências sociais tem como uma de suas condições a ruptura com ao seu desenvolvimento (tal como o aludido par de oposição), isso ocorre, em grande parte, porque ela faz, como lembra Bourdieu em sua aula inaugural no Collège de France, “recuar a tentação da magia, essa hybris da ignorância ignorante de si mesma e que, caçada na relação com a mundo natural, sobrevive na relação com o mundo social.”14

Neste sentido, tratar, por exemplo, as práticas dos juristas como meras execuções de regras corresponde a um procedimento comparável aquele com o qual, segundo Pascal, os geômetras tentavam racionalizar segundo o método geométrico as práticas mais sutis e menos codificáveis pela razão raciocinante. Como ele lembra,

os geômetras querem tratar geometricamente essas coisas sutis e tornam-se ridículos, procurando começar pelas definições e em seguida pelos princípios, o que não é a maneira de proceder nessa espécie de raciocínio. 15      
             

  À medida que as relações de força no interior do microcosmo jurídico são reduzidas a meras relações comunicativas entre agentes intercambiáveis, as condições de pesquisa se tornam propícias para a mutilação, mediante princípios estéreis, dessas relações. As “relações de comunicação por excelência – são também relações de poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre locutores ou seus respectivos grupos.”16    

A ruptura com o economicismo que tende a reduzir essas relações a buscas racionais e conscientes para a maximização  do lucro monetário, assim como a ruptura com o culturalismo que, como uma espécie de extremo oposto do economicismo, tende a reproduzir uma visão encantada da cultura onde os agentes seriam reduzidos a meros maximizadores de conhecimento, reduzindo este a um tipo de conhecimento purificado de tudo o que pode estar relacionado ao poder, corresponde a uma exigência da sociologia do campo jurídico desenvolvida por Bourdieu.






Conclusão   


Correspondendo a um par de oposição que fundamenta inconscientemente tantos as estruturas objetivas do mundo social quanto as estruturas subjetivas, a falsa oposição entre teoria e prática corresponde a um obstáculo epistemológico para o desenvolvimento da pesquisa em ciências sociais.

Na medida em que ela fundamenta alguns pares de oposições que são constitutivos de tomadas de posições no campo das ciências sociais, tais como as tomadas de posição a favor da sociologia empirista em contraposição a sociologia teórica, a oposição entre teoria e prática corresponde mais a um entrave do que uma ferramenta verdadeiramente útil ao progresso das ciências sociais. É neste sentido que a vigilância epistemológica deve maximizar os seus instrumentos no combate a esses pares de oposições que, inconscientemente, contribuem para a construção de problemas e de objetos que só tem a ver com problemas e objetos verdadeiramente científicos pelo fato de se autointitularem científicos. 

Por desconsiderar a importância de uma reflexão mais apurada sobre os efeitos mais perniciosos que esse par de oposição pode engendrar, a pesquisa em ciências sociais acaba cumprindo os requesitos para a destruição da lógica da prática que nada tem a ver com a lógica destemporalizante que tende a reduzir as ações dos agentes a execuções de regras ou a meros reflexos de estruturas.

É neste sentido que a noção de habitus enquanto sentido do jogo incorporado desenvolvida por Pierre Bourdieu, assim como a noção de campo, corresponde a um relevante instrumento que exige que se leve em conta justamente aquilo contra o que a própria sociologia teve que se constituir.

Em outras palavras, ela exige que o sociólogo leve em conta a racionalidade específica que orienta as práticas dos agentes em determinado campo sem reduzi-las aos esquemas puramente formais de construção do objeto e das práticas.  

E esse tipo de exigência leva a um questionamento dos instrumentos de construção científica das práticas dos agentes. Como um consistente exemplo da importância da noção de habitus para as ciências sociais, abordou-se a pesquisa etnográfica desenvolvida por Loïc Wacquant nos gyns de Chicago. A aludida noção possibilitou se construir a prática pugilística não como mera execução de uma regra exterior aos agentes envolvidos, mas como uma espécie de senso prático incorporado via socialização.

O que exigiu que fosse levando em conta o processo de inculcação e de incorporação de uma lógica do jogo cujos princípios são imanentes a própria prática. Em outros termos, isso exigiu que fosse levando em conta as condições sociais de aquisição dos princípios do universo pugilístico, como o constante e progressivo envolvimento com a prática do boxe é indispensável para se adquirir, abaixo do nível da consciência, o capital corporal necessário para praticá-lo com alguma chance de sucesso. 
   
Assim, os golpes e os movimentos característicos do boxe só podem ser reduzidos a atos plenamente conscientes e calculados com a condição de se destruir a própria lógica das práticas do boxe, onde pensamento e ação estão tão imbricados em um único ato que não faria nenhum sentido atribuir à lógica da prática, neste caso, a cumprimentos de regras que se dariam em um estado plenamente consciente, como se a prática fosse meras execuções conscientes de regras não incorporadas. É neste sentido que a relação entre teoria e prática não se sujeita ao voluntarismo característico da filosofia da consciência.


____________________    
  1. BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 98
2.      PEIRCE, Charles S. Como tornar nossas ideias claras. Trad. António Fidalgo. Universidade da Beira Interior. P. 11
3.      PEIRCE, Charles S. Op. Cit. P. 9
4.      BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. P. 99
5.      BOURDIEU, Pierre. Ibid
6.      BOURDIEU, Pierre. Ibid
7.      BOURDIEU, Pierre. Ibid
  1. BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Trad. Maria Ferreira. 2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. P. 85
  2. WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Trad. Angela Ramalho. – Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. P. 34
  3. WACQUANT, Loïc. Op. Cit. P. 79
  4. WACQUANT, Loïc. Op. Cit. P. 89
  5. WACQUANT, Loïc. Ibid
  6. WACQUANT, Loïc. Ibid
  7. BOURDIEU, Pierre. Lições da aula: aula inaugural no Collège de France em 23 de abril de 1982. Trad. Egon de Oliveira Rangel. 2ª ed. Editora Ática: 2001. P. 35
  8. PASCAL, Blaise. Pensamentos sobre o espírito e sobre o estilo. In.: Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. – 2ª ed. – São Paulo: Abril Cultural. 1979. P. 38
  9. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer – 2ª ed. 1ª reimp. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. P. 24