sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Antonio Negri: o poder constituinte como ausência de pressupostos e plenitude de potência



   Danilo José Viana da Silva

            O constitucionalismo e a ciência jurídica afirmam um paradoxo insustentável, como bem lembra Antonio Negri, tal paradoxo extremo consiste no “jogo de afirmar e negar, de tornar algo como absoluto e depois estabelecer-lhe limites – que é tão próprio do seu trabalho lógico – como o fez a propósito do poder constituinte.” 1
            Eis o problema: o poder constituinte é visto como um poder absoluto e ilimitado e, ao mesmo tempo, limitado. O poder constituinte é, assim,  ilimitado e limitado. Mas que limites são estes impostos pelo constitucionalismo e pela ciência jurídica?
            Negri cita dois grandes limites, os quais visam reduzir a onipotência e a expansividade do poder constituinte; tratam-se de dois limites que desnaturam o poder constituinte e que visam negar a crise por que passa a sua definição jurídica: são os limites temporais e espaciais.
            O primeiro limite tem por finalidade, por meio da judicialização da revolução e do poder constituinte, “transformar o poder constituinte em poder extraordinário, comprimi-lo no evento e encerrá-lo numa factualidade somente revelada pelo direito.” 2  O poder constituinte é reduzido à revelação jurídica da revolução ( evento passado) e, em vistas disso, a grande preocupação do pensamento jurídico será   terminar a revolução. A onipotência do poder constituinte é reduzida (tentam reduzir) à judicialização da revolução e do poder constituinte. Assim, a revolução deveria ser um rápido evento que visaria apenas instaurar e organizar o aparato burocrático, a hierarquia dos poderes: a revolução, como evento já passado, deverá ser encerrada. (era como se a sua função tivesse chegado ao fim)
            O próprio tempo do poder constituinte é “fechado, detido e confinado em categorias jurídicas, submetido à rotina administrativa.” 3 Trata-se de uma verdadeira canalização do tempo do poder constituinte, este é reduzido à uma cronologia sem vida.
            Os limites seguintes (os espaciais) existem em razão de o poder constituinte não ser apenas onipotente, ele “é também expansivo, seu caráter ilimitado não é apenas temporal, é também espacial.” 4  Os limites espaciais - estabelecidos pelo constitucionalismo ou pela ciência jurídica - visam reduzir e regular a expressão espacial do poder constituinte. Nestes termos, tal desnaturação afirma que o poder constituinte “deve ser reduzido a norma de produção do direito, interiorizado no poder constituído.” 5
            Uma monstruosa parafernália jurídica recobre o poder constituinte e o reduz a mero sujeito produtor de normas jurídica, do ordenamento jurídico. O poder constituinte acaba sendo desnaturado por limites e procedimentos rígidos e bem definidos; ele não pode mais ser visto a não ser como mera atividade de revisão constitucional, norma de interpretação; enfim, o poder constituinte é confinado na rotina burocrático-parlamentarista.
            O constitucionalismo também estabelece limites subjetivos ao poder constituinte, estes limites, após a desnaturação realizada pelos precedentes, têm por finalidade dissecar o poder constituinte. O limite subjetivo dissolve a originalidade e o caráter inalienável do poder constituinte, logo após, há a supressão do “nexo que historicamente liga o poder constituinte ao direito de resistência.” 6   O que escapar dessa detestável empreitada, será submetido e absorvido por conceitos que sufocam o poder constituinte, conceitos como os de Povo, Nação, por exemplo.
            Em outra obra, Negri e Hardt lembram o quanto tais conceitos impossibilitam pensar, por exemplo, que a multiplicidade social seja capaz de agir em comum e se manter internamente diferente. Tratam-se de conceitos que - por serem concepções unitárias, por reduzirem as diferenças a uma única identidade - são saberes de encomenda e mecanismos de limitação-canalização do poder constituinte:
O povo tem sido tradicionalmente uma concepção unitária. A população, como se sabe, é caracterizada pelas mais amplas diferenças, mas o povo reduz esta diversidade a uma unidade, transformando a população numa identidade única: o “povo” é uno. A multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares. 7    
           
            Negri e Hardt nos convidam a pensar a multidão, a qual jamais pode ser reduzida a uma identidade (Povo) ou uniformidade ( Massa) a Massa impede também a formação de diferentes sujeitos sociais. “A essência das massas é a indiferença: todas as diferenças são submersas e afogadas nas massas.” 8   E é no conceito de Nação, assim como no de Povo, que o poder constituinte é sufocado. Todo evento antagonístico desaparece.
            Neste caso, o constitucionalismo e a ciência jurídica negam não apenas a crise por que passa a sua definição de poder constituinte, mas também a potência da multidão; esta potência é negada por meio dos conceitos unitários que sufocam o poder constituinte.
            E, finalmente, a ciência jurídica e o constitucionalismo celebram uma grande festa  em comemoração a uma das mais perversas limitações por eles realizada: trata-se da absorvição do poder constituinte pelo mundo da representação, ou melhor, pela máquina da representação.
O caráter ilimitado da expressão constituinte é limitado na sua gênese, porquanto submetido às regras e à extensão relativa do sufrágio; no seu funcionamento, porquanto submetido às regras parlamentares; no seu período de vigência, que se mantém funcionalmente delimitado, mais próximo à forma da ditadura clássica do que à teoria e às praticas da democracia: em suma, a idéia de poder constituinte é juridicamente pré-formada quando se pretendia que ela formasse o direito, é absorvida pela idéia de representação política quando se almejava que ela legitimasse tal conceito. 9   

            Assim, o poder constituinte não pode exprimir-se a não ser através da representação, o poder constituinte reduzido à atividade de produção de normas jurídicas é, então, “inserido no grande quadro da divisão social do trabalho.” 10  Mas quando se realiza tal limitação, a negação da realidade do poder constituinte se anima. Trata-se da canalização do trabalho vivo e imposição do trabalho morto.
Vale lembrar que a perspectiva de Negri e Hardt não corresponde a um tipo de reformismo; como eles lembram, o “nosso problema não é mais demonstrar que o reformismo é impossível: não é somente impossível, mas também entediante, perverso, repetitivo e cruel. O Estado não é mais defensável, nem com ironia.” 11 Negri pensa alternativas para se afirmar o poder constituinte da multidão contra o poder constituído do Estado e da soberania. Essas alternativas colocam o problema necessário da “produção alternativa de subjetividade e a constituição alternativa do poder.” 12  As forças emergentes são vistas não mais como algum tipo de pressão reformista da ordem existente, “mas como elemento de  um novo poder constituinte.” 13   
Poder produtivo, - não reduzido ao mundo da representação – criativo e afirmativo; afirma uma infinitude de expressões singulares de potência produtiva, multiplicidades de redes de cooperação, afirmação do trabalho vivo. O poder constituinte, segundo Antonio Negri, é a afirmação da democracia como procedimento absoluto, (e não limitado como quer a ciência jurídica e o constitucionalismo) é uma democracia sem limites, sem teleologia, sem fundamento. O poder constituinte é a afirmação do monopólio da força que “pertence à série de sujeitos,” 14  e não ao Estado; neste caso, nada pode preceder o processo. Não há bloqueios das “possibilidades de construir sempre novas hipóteses de coabitação e montagens de cooperação.” 15    
Poder constituinte é imanência absoluta sobre as superfícies do possível; eis o processo sem  precedentes, sem pressupostos.  Ausência de pressupostos e plenitude de potência. Trata-se do trabalho vivo: “fundamento e motor de toda a produção, de todo desenvolvimento, de toda inovação,” 16 cujo tempo atinge concentrações que são frequentemente espasmos. O poder constituinte como ausência de pressupostos e plenitude de potência é afirmação da vida, também dos poderes dionisíacos dos mais subterrâneos mundos... O poder constituinte, segundo Negri, é onipotente, expansivo, ilimitado e inconcluso.                                                                                                      
_____________________   
1.       NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Trad. Adriano Pilatti- Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 9
2.       NEGRI, Antonio. Ibid
3.       NEGRI, Antonio. Ibid
4.       NEGRI, Antonio. Op. cit. p. 10
5.       NEGRI, Antonio. Ibid
6.       NEGRI, Antonio. Ibid
7.       NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Multidão: Guerra e democracia na era do Império, Trad. Clóvis Marques, Rev. Téc. Giuseppe Cocco, Ed. Record, Rio de Janeiro, São Paulo, 2005, p.13
8.        NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Ibid
9.       NEGRI, Antonio. Op. cit. p. 11
10.    NEGRI, Antonio. Ibid
11.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso: Para a crítica ao Estado pós-moderno. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF- PAZULIN, 2004. p. 194
12.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso. p. 192
13.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso. p. 193
14.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso. p. 199
15.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Ibid
16.    NEGRI, Antonio. Op. cit. p. 53








sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A propagação da nova administração da miséria



  Danilo José Viana da Silva

            A particularidade da nova política da administração da miséria pelo cárcere consiste na universalização de particularismos vinculados a um contexto histórico singular. Tal desparticularização é realizada por toda uma plêiade de intelectuais, de grandes setores da mídia e por múltiplos outros agentes, cuja principal tarefa é fazer com que tais ideias atravessem o Atlântico para aportarem em Londres e, a partir daí, estenderem “suas ramificações por todo o continente.” 1
            Essa nova vulgata planetária prega a necessidade do fortalecimento do Estado penal e policial, e a supressão e enfraquecimento do Estado econômico e social. Por meio da divulgação e universalização desse marketing ideológico, possível é a realização da dessocialização,  (com o enfraquecimento do Estado social e a maximização do Estado penal) a  desregulamentação e imposição do trabalho assalariado da miséria, concretizando, assim, uma verdadeira ditadura sobre os pobres.
            Trata-se do grande paradoxo das políticas de combate ao crime implementadas pela penalidade neoliberal, a qual apresenta e prega por todo o planeta  o seguinte paradoxo:
pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. 2   
            Essas redefinições das ações do Estado não surgiram do nada, trata-se do resultado dos esforços de uma gama de instituições e organismos internacionais, como por exemplo,
o Banco Mundial, a Comissão  Européia, a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos (OCDE), enfim, os "bancos de idéias" do pensamento conservador (o Manhattan Institute, em Nova York, o Adam Smith Institute,em Londres, a ex-Fondation Saint-Simon, em Paris, a Deutsche Bank Fundation, em Frankfurt), as fundações de filantropia, as escolas do poder (Science-Politique, na França, a London School of Economics, na Inglaterra, a Harvard Kennedy School of Government, nos Estados Unidos etc) 3   
            Além de toda uma rede de difusão dessa vulgata sem fronteiras, a qual, no contexto aqui analisado, refere-se ao senso comum penal criminalizador da miséria e normatizador do trabalho precário parido nos Estados Unidos e internacionalizado por múltiplos meios, os quais são ora reconhecíveis ora, até mesmo, irreconhecíveis.
            Nessa rede de divulgação dessa utopia neoliberal, o sucesso de um dos organismos ou agentes se deve não a ele próprio, mas “à posição que ocupa no seio da estrutura das relações de competição e de conluio, de subordinação e de dependência, que o ligam ao conjunto dos outros protagonistas e que está na raiz dos efeitos que é suscetível de exercer.” 4  
            A mídia também tem o seu papel nessa demoníaca rede propagadora das mais perversas políticas de combate ao crime, ela tem a função de desinformar a população sobre a criminalidade e o sistema carcerário; trata-se de um poderoso participante desse grande boom da administração da miséria pelo cárcere e das políticas penais ultra-repressivas.
            No nosso país a terrível e incontrolável máquina midiática é bastante indispensável à realização da ditadura sobre os pobres, trata-se de um parceiro crucial nessa “bela” empreitada. A máquina midiática contribui para a universalização da doxa penal, alimentando, assim, a indiferença dos políticos e do público frente as prisões de nosso país: verdadeiros “campos de concentração para pobres,” 5  grandes depósitos dos dejetos sociais que alimentam “as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo.” 6  
            Outro ponto relevante consiste na negação do acesso à assistência jurídica, o racismo segundo o qual, por exemplo,
em São Paulo, como nas outras grandes cidades, os indivíduos de cor “se beneficiam” de uma vigilância particular por parte da polícia, têm mais dificuldade de acesso a ajuda jurídica e, por um crime igual, são punidos com penas mais pesadas que seus comparsas brancos. 7    
            A administração da miséria pregada pelo neoliberalismo também é fortalecida pela falta de capacidade dos Tribunais para darem conta da monstruosa demanda penal, uma das mais notáveis consequências dessa aparente recusa de justiça organizada é a superlotação das prisões em nosso país, por exemplo.
A “sobrecarga dos Tribunais e a progressiva escassez de recursos que os paralisa, por outro, têm todas as aparências de uma recusa de justiça organizada;” 8   organizada para facilitar a concretização (e isso no nosso país tem efeitos drásticos) da política de Tolerância zero pregada pelo pensamento neoliberal, o qual vem encontrar o seu amparo intelectual em diversas universidades, grandes parceiras dessa empreitada neoliberal.
            A doutrina da Tolerância zero  veio encontrar as suas bases na teoria da Vidraça quebrada “formulada em 1982 por James Q. Wilson (papa da criminologia conservadora nos Estados Unidos) e George Kelling em artigo publicado pela revista Atlantic Monthly: adaptação  do ditado popular “quem rouba um ovo, rouba um  boi,” 9 segundo este ditado popular, que pretende ser teoria, é lutando fortemente contra os pequenos distúrbios do dia-dia que se faz recuar as grandes patologias criminais.
            Esse senso comum penal da criminalização da miséria encontra seu aval de ciência por meio de diversos papas da criminologia, da sociologia... Um dos mais fortes modelos planetários que dão a essa nova vulgata uma forma acadêmica é, como lembram Bourdieu e Wacquant,
o sociólogo britânico Anthony Giddens, professor  da Universidade de Cambridge, agora à testa da London School of Economics e pai da "teoria da estruturação", síntese escolástica de diversas tradições sociológicas e filosóficas.  10
            Essa é apenas uma dentre as incontáveis matrizes teóricas que visam atribuir à esse senso comum  um aval de cientificidade. Essa nova política de criminalização da miséria também é uma grande realizadora da exclusão etnorracial, onde os imigrantes pobres, mexicanos, asiáticos são sempre vistos como perigosos, desonestos e elementos supérfluos no plano econômico.
            O panoptismo também é indispensável e bem presente na política da imposição do trabalho miserável, na medida em que “sujeita os benefícios da assistência pública às práticas intrusivas do registro válido de informações e controle rígido, bem como estabelece um monitoramento rigoroso de suas condutas.” 11
            Para terminar, podemos concluir que a nova política da administração da miséria, internacionalizada por toda uma rede neoliberal, corresponde a um monstro devorador que se alimenta das próprias fezes, na medida em que a médio e a longo prazo, só pode agravar o desemprego e aumentar a criminalidade; essa nova política além de reduzir “artificialmente o índice de desemprego ao omitir das estatísticas uma importante reserva de pessoas em busca de emprego,” 12 mas ao mesmo tempo agravando o próprio desemprego por tornar mais difícil de se empregar, num mercado de trabalho miserável, os que estavam presos. Também tem o desgraçado privilegio de ser uma
Instituição total concebida para os pobres, meio criminógeno e desculturalizante moldado pelo imperativo (e o fantasma) da segurança, a prisão não pode senão empobrecer aqueles que lhes são confiados e seus próximos, despojando-os um pouco mais dos magros recursos de que dispõem quando nela ingressam, obliterando sob a etiqueta infamante de “penitenciário” todos os atributos suscetíveis de lhes conferir uma identidade social reconhecida (como filho, marido, pai, assalariado ou desempregado, doente, marselhês ou madrilenho etc.), e lançando-os na espiral irresistível da pauperização penal, face oculta da “política social” do Estado para com os mais pobres. 13                                                                           
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1.     WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Trad. André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 2001,  p. 20
2.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 8
3.     BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. A nova bíblia de Tio Sam. In: Le Monde diplomatique. 01 de maio de 2000  
4.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 19
5.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 11
6.     WACQUANT, Loïc. Ibid
7.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 9
8.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 39
9.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 25
10. BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. Ibid
11. WACQUANT, Loïc. O lugar da prisão na nova administração da pobreza. Trad.: Paula Miraglia e Hélio de Mello Filho, 2008.
12. WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. P. 143
13. WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. P. 143-144









sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Gilles Deleuze: Por uma história da filosofia concreta

  

Danilo José Viana da Silva
Já sabemos que a filosofia, para Deleuze, “é a disciplina que consiste em criar conceitos,”1 e que não há conceitos, ou melhor, não há criação de conceitos sem os problemas em função dos quais ele foi fabricado. Simples: não há criação de conceitos sem problemas; há até encruzilhadas destes onde um conceito se alia a outros coexistentes.
A filosofia, assim, é criativa, ela é “tão inventiva quanto qualquer outra disciplina;”2 não há criação, em filosofia, sem que haja uma necessidade, pois “os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos.”3  Neste caso, a filosofia não pode ser encarada como abstração, a história da filosofia, assim, é coisa nada abstrata, justamente pelo fato de Deleuze sempre revelar os problemas para os quais determinados conceitos foram criados. Trata-se de revelar o problema, pois, como ele mesmo lembra no seu Abecedário,  
O filósofo já expôs os conceitos que está criando. Ele não pode, além disso, expor os problemas que os seus conceitos... ou, pelo menos, só se podem encontrar estes problemas através dos conceitos que criou. E se não encontrou o problema ao qual responde um conceito, tudo é abstrato. Se encontrou o problema, tudo vira concreto. 4
            Deleuze nunca escreve sobre os conceitos, sem  revelar os problemas, sem se remontar aos problemas posto pelo filósofo. É justamente por isso que ele deixa bem claro que  uma atenta leitura da filosofia de Platão, por exemplo, corresponde a uma leitura  bem concreta: “Se nos entregamos à leitura de Platão é por aí que tudo se torna tão concreto!”5
            Mas, como assim?
Deleuze quando pinta, por exemplo, um retrato de Platão, não deixa de lado os problemas para os quais o conceito de Ideia foi fabricado:
O pretendente não é conforme ao objeto senão na medida em que se modela   (interiormente e espiritualmente) sobre a Ideia. Ele não merece a qualidade (por exemplo, a qualidade de justo) senão na medida em que se funda sobre a essência (a justiça). Em suma, é a identidade superior da Ideia que funda a boa pretensão das cópias e funda-a sobre uma semelhança interna ou derivada. 6 
            Trata-se, então, de um verdadeiro critério de seleção dos pretendentes. Haviam muitos pretendentes ao político, sendo este o pastor dos homens, “toda espécie de rivais surge, o médico, o comerciante, o trabalhador, para dizer: “O pastor dos homens sou eu.”7  Eis o problema para o qual o conceito de Ideia foi criado por Platão – trata-se do conceito platônico de Ideia. Tudo isso é bem concreto, há uma necessidade, algo que faz com que Platão crie tal conceito: Selecionar os legítimos pretendentes e excluir os falsos, os simulacros.
            Assim, “um criador só faz aquilo que tem absoluta necessidade.”8 Deleuze, quando faz história da filosofia, escreve a necessidade sentida pelo filósofo; tal história nunca será, por isso mesmo, abstrata. Trata-se de uma história da filosofia concreta.
            Para ele, os que contam história da filosofia sem revelar os problemas a partir do qual determinado filósofo fabricou conceitos, acabam contando uma história da filosofia abstrata em dobro, justamente por eles acharem a filosofia  abstrata:
Quando acham que a Filosofia é abstrata, a história da Filosofia passa a ser abstrata em dobro, já que ela nem consiste mais em falar de idéias abstratas, mas em formar idéias abstratas a partir de idéias abstratas. Para mim, a história da Filosofia é uma coisa muito diferente. 9
            Trata-se de uma história abstrata em dobro, visto que já partem da abstração, e, a partir desta, formam mais abstrações. Parte-se de abstração, neste tipo de história, e, nestes termos, tudo é feito como se os conceitos viessem do nada. Não haveria nenhum problema, os conceitos, assim, estariam prontos no ar. Eis um grande equívoco que é denunciado por Deleuze: “Os conceitos não nascem prontos, não andam pelo céu, não são estrelas, não são contemplados.” 10           Deleuze se recusa a contar uma história da filosofia nestes termos, visto que tal história não afirma a filosofia como criação, ou seja, essa história da filosofia abstrata esconde, recusa-se a explicar o problema que levou o filósofo a inventar um conceito.
 Deleuze quanto pinta um retrato de Platão, Hume, Spinoza, Nietzsche e outros, sempre escreve os problemas e as criações que daí advém. Trata-se de uma história da filosofia nada abstrata, mas concreta; a história da filosofia, em termos deleuzianos, afirma a “mais elevada tarefa – a que consiste em determinar os problemas, em neles inscrever nosso poder decisório e criador.” 11  Tal história da filosofia concreta afirma a potência inerente a vida, ela afirma o movimento constante da criação.                   
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1.       DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Trad.: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. – Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. P. 13
2.       DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Trad.: José Marcos Macedo. Palestra de 1978, Edição brasileira: Folha de São Paulo, 27/06/1999, P. 3
3.       DELEUZE, Gilles. Ibid
6.       DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. In: Lógica do Sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. – São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 262
7.       DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. P. 260
8.       DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Ibid
11.    DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado, 2ª Ed. Rio de Janeiro:   Graal, 2006, p. 372








terça-feira, 7 de dezembro de 2010

É isso que faz um mundo (Gilles Deleuze)



O carrapato responde ou reage a três coisas, três excitantes, um só ponto, em uma natureza imensa, três excitantes, um ponto, é só. Ele tende para a extremidade de um galho de árvore, atraído pela luz, ele pode passar anos, no alto desse galho, sem comer, sem nada, completamente amorfo, ele espera que um ruminante, um herbívoro, um bicho passe sob o galho, e então ele se deixa cair, aí é uma espécie de excitante olfativo. O carrapato sente o cheiro do bicho que passa sob o galho, este é o segundo excitante, luz, e depois odor, e então, quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a região com menos pêlos, um excitante tátil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se pode dizer, ele não dá a mínima. Em uma natureza formigante, ele extrai, seleciona três coisas.
                                                                                                                                    
                                                                                                                                        (Gilles Deleuze)  

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Gabriel Tarde: por uma cartografia das intensidades


Danilo José Viana da Silva

            Um dos pontos mais relevantes na sociologia de Gabriel Tarde é justamente a recusa de explicar o social pela intervenção de uma representação geral. Para ele, os indivíduos não poderiam ser reduzidos a um suporte reflexivo de uma Consciência coletiva. Realizar tal redução seria o mesmo que em biologia, por exemplo, formular uma teoria dos organismos desconsiderando totalmente a ação das células.
            Para Tarde, diferentemente de Durkheim, o que jamais pode ser deixado de lado são as operações concretas, as transformações sociais, as operações de mudança, os graus intensivos, pois  estes  correspondem a necessária energia que instaura uma nova percepção do mundo. O que realmente interessa para o sociólogo, segundo Tarde, seriam os acontecimentos transformadores, visto que seriam estes os gestores das futuras transformações.
            Então, para Tarde, deveríamos substituir a macrossociologia das grandes representações. O que  realmente interessa são os vermes, os germes, que entram no corpo social e tornam possíveis as transformações futuras. Só aí é que se poderia falar de seus macroagenciamentos, o inverso seria bastante equivocado. O que o sociólogo deve realmente fazer é um exercício microscópico, caso contrário ele poderá ignorar os germes de possíveis mudanças futuras. Os germes, as invenções pequenas que inserem uma novidade no campo social.
Também, no dia em que um cientista, por exemplo Galileu, se lembrar de formular a menor lei ou o menor facto científico contrário ao mais curto dos versículos sagrados; no dia em que um monarca se lembrar editar o mais pequeno decreto contrário ao mais secundário preceito da religião estabelecida, por exemplo a autorização de vender carne em tempo de abstinência ou de trabalhar ao domingo; no dia, enfim, em que desabroche num país um ramo de indústria ou de arte qualquer considerada imoral ou ímpia pela sua religião, por exemplo, um teatro profano ou um jornal livre-pensador; nesse dia, um germe de dissolução entrou no corpo social; e é preciso a todo o custo ou que esse germe seja expulso, pela inquisição, nomeadamente, ou que, pela propaganda filosófica, revolucionária ou reformista, esse germe cresça e se estenda a ponto de reconstituir a ordem social sobre novos fundamentos. 1
            São das mudanças sociais que se trata, dos acontecimentos-singularidades, dos vermes e germes que entram no corpo social e que torna possível a reconstrução de um novo social, o qual nunca pode ser visto como algo estável, imóvel; ao revés, Tarde afirma o social como “um sistema termodinâmico que nunca atingiria o equilíbrio, pois sempre novos diferenciais intensivos (invenções) vêm reagitar o sistema, complexificando o antigo equilíbrio entrópico.” 2 
            Trata-se de uma cartografia das intensidades, pois, em Tarde, os laços sociais nunca são limitados às relações oficiais, aos espaços territorializados e codificados. Para Tarde, os laços sociais não estão concatenados, limitados ou reduzidos às relações entre professor e aluno, papai e mamãe, senhor e escravo... Assim, como lembra Tiago Seixas Themudo, as “minhas propriedades extrapolam o campo das relações oficiais, o indivíduo não tem sua cartografia limitada aos espaços institucionais de subjetivação.” 3
            Nenhum espaço ou território sobrecodificado pode limitar, apreender todo um campo de ralações moleculares. Pode-se compreender, então, que jamais as ações das mônadas 4 dominantes poderão ser totalmente imperiais; tais ações jamais poderão impedir as linhas de fuga, as desterritorializações; tais ações não podem impedir a movencia, a abertura, a reativação vital...
Em outras palavras, Gabriel Tarde cria uma sociologia que afirma a Diferença como força ativa da vida. Trata-se de uma cartografia das intensidades, pois ela se faz ao mesmo tempo que os movimentos, as pequenas variações que se agitam e transformam o social, criam outros mundos. Assim, o sociólogo jamais pode deixar de lado as variações intensivas dos fluxos de crença e desejo; ele deve estar mergulhado nas intensidades.                    
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1.       TARDE, Gabriel de. As leis da imitação. Trad. Carlos Fernandes Maia, Colaboração: Maria Manuela Mais. Porto, Ed. Rés, 1976. P. 323
2.       THEMUDO, Tiago Seixas. Gabriel Tarde: Sociologia e Subjetividade. – Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002. P. 79
3.       THEMUDO, Tiago Seixas. Op. cit. p. 58
4.       Vale lembrar que as mônadas concebidas por Tarde diferem das concebidas por Leibniz pelo fato de estarem em constante interpenetração; ou seja, Tarde, com a sua neomonadologia, afirma  mônadas abertas, ( e não fechadas como as de Leibniz) capazes de se modificar uma às outras. Sobre essa nova monadologia vide: TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia e outros ensaios. Trad. Paulo Neves, Organização e Introdução: Eduardo Viana Vargas. COSACNAIFY.