Danilo José Viana da Silva
Um grande legado da filosofia costuma prolongar a imagem do filósofo como o que busca, ama, a verdade, o verdadeiro conhecimento. O filósofo, assim, seria o legítimo pretendente à verdade, ele saberia o verdadeiro caminho para se chegar a ela.
Esses legítimos pretendentes à verdade deveriam abdicar dos seus próprios desejos e prazeres, deveriam evitá-los a qualquer custo, visto que eles iriam contaminar toda essa genuína busca pela verdade. Daí que se faz também toda uma maledicência sobre o Desejo; afinal de contas, boa parte da psicanálise faz isso, como lembra Deleuze em seu abecedário, é
que os psicanalistas falam do desejo como os padres. Não é a única aproximação, os psicanalistas são padres. De que forma falam do desejo? Falam como um grande lamento da castração. A castração é pior que o pecado original. É uma espécie de maledicência sobre o desejo, que é assustadora. 1
Mas queremos tratar aqui de outro ponto, o qual corresponde ao fato de a filosofia, para Deleuze, não ser uma atividade reservada apenas para os entendidos, especialistas ou doutores. Se a filosofia, segundo a perspectiva dele juntamente com Guattari, “mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos”, 2 e se não há conceitos sem que haja o problema a partir do qual ele foi criado, poderíamos, assim, afirmar que, para Deleuze, não há uma ditadura de um único problema. Este deveria, então, ser posto; então não há uma ditadura “do” problema verdadeiro e legítimo.
Poderíamos também afirmar que, segundo a perspectiva de Deleuze, se não há um único problema, também não há um único conceito, não há “o” único conceito de Ideia, de Cogito, de Tempo, de Violência... Cada conceito visa resolver um problema posto pelo filósofo. Assim, para Deleuze, os conceitos “não se fabricam assim, num piscar de olhos.” 3 Mas um dos pontos que queremos aqui focar, é o de que a filosofia – criação de conceitos – não corresponde a uma atividade centrada nas mãos dos especialistas, Deleuze afirma a filosofia como criação, jamais repetição do Mesmo.
A cor filosófica – o conceito – não é algo cuja fabricação exija um doutorado ou PhD. Mesmo que tais especialistas realizem reflexões que comumente são vistas como bem feitas, bem elaboradas, se eles não criarem nenhum conceito, eles realizam qualquer coisa, menos filosofia.
Um matemático não precisa saber filosofia para refletir sobre os cálculos que realiza, os artistas não precisam ler filosofia para refletir sobre as suas criações; assim filosofia não é reflexão, qualquer um pode refletir sem filosofia, até mesmo quem não sabe ler.
A douta crítica também não é filosofia, principalmente se ela não passar de uma crítica, pois os que apenas criticam sem parar e nada criam, lembram Deleuze e Guattari, nada mais fazem do que aumentar a chaga da filosofia:
Criticar é somente constatar que um conceito se esvanece, perde seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando é mergulhado em um novo meio. Mas aqueles que criticam sem criar, aqueles que se contentam em defender o que se esvanesceu sem saber dar-lhe forças para retornar à vida, eles são a chaga da filosofia.4
Fazer filosofia, segundo Deleuze, não é ter um monte de saberes reservas armazenados, não é se considerar culto e falar sem parar sobre tudo; em outras palavras, fazer filosofia não corresponderia a uma atividade erudita onde o filósofo iria responder a todas as questões, sejam elas de que blocos forem. Talvez isso seja uma grande perca de tempo, pois nenhum conceito poderá responder a todos os problemas. E o pior consiste em apenas falar sobre tudo e nada criar. Os falatórios, os debates eruditos, as discussões nunca criaram um só conceito. “É por isso que o filósofo tem muito pouco prazer em discutir.”5
Um dos pontos relevantes sobre o pensamento de Deleuze é justamente a própria questão do pensamento, de torná-lo possível. Tal filosofia se constitui como um pensamento diferencial, um pensamento sem imagem. Assim, trata-se de criar novas imagens e não se submeter aos postulados para pensar, pois, como lembra o próprio Deleuze, tais postulados desnaturam a diferença, a diferença de pensar com o pensamento: “O pensamento se recobre com uma “imagem” composta de postulados que desnaturam seu exercício e sua gênese.” 6
Os pressupostos em filosofia não são apenas explícitos, eles também são implícitos; o pressuposto implícito que Deleuze escreve em Diferença e Repetição é justamente a cogitatio natura universalis a partir e por meio da qual a Filosofia pode ter o seu ponto inicial, seu ponto de partida; chega até a ser inútil citar exemplos de filósofos que partem de postulados implícitos; Deleuze chega até mesmo a escrever que é “inútil multiplicar as declarações de filósofos, desde “todo mundo tem, por natureza, o desejo de conhecer” até “o bom senso é a coisa do mundo melhor repartida,” para verificar a existência do pressuposto,(...)” 7 trata-se do postulado implícito.
Os postulados, assim, são implícitos, trata-se de uma Imagem do pensamento, e é segundo esta Imagem, que “o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro.” 8 Segundo esta Imagem do pensamento, pode-se pressupor que cada um já saiba o que significa pensar, essa Imagem tudo subjuga. Deleuze a denomina de “imagem dogmática ou ortodoxa, imagem moral.” 9
Essa Imagem deformadora do pensamento será uma das preocupações mais presentes nas obras de Deleuze, visto que uma de suas pretensões é a de se desembaraçar da doxa, dos postulados, sejam estes explícitos ou implícitos; em outras palavras, ele evita todo o pressuposto que desnatura o exercício do pensamento.
Assim, poderíamos dizer que um dos pontos marcantes na filosofia de Gilles Deleuze é a destruição da Imagem do pensamento, - destruição de uma Imagem que se pressupõe a si mesma – para assim criar novas imagens sem estar redimido a tais postulados; ele, assim, tem a pretensão de chegar a um verdadeiro começo; começo sem Imagem preestabelecida; Deleuze afirma a diferença em detrimento da identidade.
Criar o novo, pensar o novo, e para isso não é necessário ser Especialista, Mestre, Doutor ou PhD; o que importa, em Deleuze, é tornar possível o pensamento, pensar livremente, pois para pensar, criar, não é necessário ser especialista ou se redimir ao modelo-ideia-essência de sujeito pensante.
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2. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Trad.: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. – Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. P. 13
3. DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Trad.: José Marcos Macedo. Palestra de 1978, Edição brasileira: Folha de São Paulo, 27/06/1999, P. 3
4. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Op. cit. p. 41-42
5. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Op. cit. p. 41
6. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 369
7. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. P. 192
8. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid
9. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid