segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Gabriel Tarde: por uma cartografia das intensidades


Danilo José Viana da Silva

            Um dos pontos mais relevantes na sociologia de Gabriel Tarde é justamente a recusa de explicar o social pela intervenção de uma representação geral. Para ele, os indivíduos não poderiam ser reduzidos a um suporte reflexivo de uma Consciência coletiva. Realizar tal redução seria o mesmo que em biologia, por exemplo, formular uma teoria dos organismos desconsiderando totalmente a ação das células.
            Para Tarde, diferentemente de Durkheim, o que jamais pode ser deixado de lado são as operações concretas, as transformações sociais, as operações de mudança, os graus intensivos, pois  estes  correspondem a necessária energia que instaura uma nova percepção do mundo. O que realmente interessa para o sociólogo, segundo Tarde, seriam os acontecimentos transformadores, visto que seriam estes os gestores das futuras transformações.
            Então, para Tarde, deveríamos substituir a macrossociologia das grandes representações. O que  realmente interessa são os vermes, os germes, que entram no corpo social e tornam possíveis as transformações futuras. Só aí é que se poderia falar de seus macroagenciamentos, o inverso seria bastante equivocado. O que o sociólogo deve realmente fazer é um exercício microscópico, caso contrário ele poderá ignorar os germes de possíveis mudanças futuras. Os germes, as invenções pequenas que inserem uma novidade no campo social.
Também, no dia em que um cientista, por exemplo Galileu, se lembrar de formular a menor lei ou o menor facto científico contrário ao mais curto dos versículos sagrados; no dia em que um monarca se lembrar editar o mais pequeno decreto contrário ao mais secundário preceito da religião estabelecida, por exemplo a autorização de vender carne em tempo de abstinência ou de trabalhar ao domingo; no dia, enfim, em que desabroche num país um ramo de indústria ou de arte qualquer considerada imoral ou ímpia pela sua religião, por exemplo, um teatro profano ou um jornal livre-pensador; nesse dia, um germe de dissolução entrou no corpo social; e é preciso a todo o custo ou que esse germe seja expulso, pela inquisição, nomeadamente, ou que, pela propaganda filosófica, revolucionária ou reformista, esse germe cresça e se estenda a ponto de reconstituir a ordem social sobre novos fundamentos. 1
            São das mudanças sociais que se trata, dos acontecimentos-singularidades, dos vermes e germes que entram no corpo social e que torna possível a reconstrução de um novo social, o qual nunca pode ser visto como algo estável, imóvel; ao revés, Tarde afirma o social como “um sistema termodinâmico que nunca atingiria o equilíbrio, pois sempre novos diferenciais intensivos (invenções) vêm reagitar o sistema, complexificando o antigo equilíbrio entrópico.” 2 
            Trata-se de uma cartografia das intensidades, pois, em Tarde, os laços sociais nunca são limitados às relações oficiais, aos espaços territorializados e codificados. Para Tarde, os laços sociais não estão concatenados, limitados ou reduzidos às relações entre professor e aluno, papai e mamãe, senhor e escravo... Assim, como lembra Tiago Seixas Themudo, as “minhas propriedades extrapolam o campo das relações oficiais, o indivíduo não tem sua cartografia limitada aos espaços institucionais de subjetivação.” 3
            Nenhum espaço ou território sobrecodificado pode limitar, apreender todo um campo de ralações moleculares. Pode-se compreender, então, que jamais as ações das mônadas 4 dominantes poderão ser totalmente imperiais; tais ações jamais poderão impedir as linhas de fuga, as desterritorializações; tais ações não podem impedir a movencia, a abertura, a reativação vital...
Em outras palavras, Gabriel Tarde cria uma sociologia que afirma a Diferença como força ativa da vida. Trata-se de uma cartografia das intensidades, pois ela se faz ao mesmo tempo que os movimentos, as pequenas variações que se agitam e transformam o social, criam outros mundos. Assim, o sociólogo jamais pode deixar de lado as variações intensivas dos fluxos de crença e desejo; ele deve estar mergulhado nas intensidades.                    
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1.       TARDE, Gabriel de. As leis da imitação. Trad. Carlos Fernandes Maia, Colaboração: Maria Manuela Mais. Porto, Ed. Rés, 1976. P. 323
2.       THEMUDO, Tiago Seixas. Gabriel Tarde: Sociologia e Subjetividade. – Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002. P. 79
3.       THEMUDO, Tiago Seixas. Op. cit. p. 58
4.       Vale lembrar que as mônadas concebidas por Tarde diferem das concebidas por Leibniz pelo fato de estarem em constante interpenetração; ou seja, Tarde, com a sua neomonadologia, afirma  mônadas abertas, ( e não fechadas como as de Leibniz) capazes de se modificar uma às outras. Sobre essa nova monadologia vide: TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia e outros ensaios. Trad. Paulo Neves, Organização e Introdução: Eduardo Viana Vargas. COSACNAIFY.