Por Danilo José Viana da Silva
“Um cavalheiro que antigamente cantasse e tivesse belo porte só com isso poderia adquirir reputação nos círculos sociais, mas é hoje obrigado a saber pelo menos um pouco de seu Réaumur, seu Newton, seu Descartes.” 1
Segundo Bachelard, um dos entraves consideráveis ao progresso do conhecimento científico é justamente o comprometimento da “ciência”, ou melhor, dos livros científicos com a vida cotidiana, com as conversas em salões de festa...
Em outras palavras, é característica do espírito pré-científico essa preocupação em atender a demanda dos problemas cotidianos, as piadas dos figurões, aos gostos da alta classe e a incontrolável libido sciendi bastante alastrada e disseminada. “No século XVIII, a ciência interessava a todo homem instruído.”2 Nos livros “científicos” do século XVIII não é difícil de se encontrar uma linguagem agradável e feita num tom bastante dialogal, tal como Bachelard lembra:
Peguem um livro científico do século XVIII vejam como está inserido na vida cotidiana. O autor dialoga com o leitor como um conferencista. Adota os interesses e preocupações naturais. Por exemplo, quer alguém saber a causa do trovão? Começa-se por falar com o leitor sobre o medo do trovão,(...) 3
O livro científico não deveria ser enfadonho, mas direcionado ao público mundano como um todo, não era raro encontrar livros científicos divertidos e com a pretensão de facilitar, de simplificar e de mostrar que o conhecimento científico é coisa fácil e agradável:
Priestley escrevia ainda um livro traduzido em 1771: “ As experiências elétricas são as mais claras e as mais agradáveis de todas as que Física oferece.” Assim, essas doutrinas primitivas referentes a fenômenos tão complexos, apresentam-se como doutrinas fáceis, condição indispensável para que sejam agradáveis, para que interessem um público mundano. 4
Toda essa facilidade e agradabilidade estão muito bem fundamentadas num empirismo vulgar suficientemente potente para engendrar uma preguiça intelectual que chega a se expressar numa postura e num espírito que nada constrói, mas apenas aguarda a “natureza”, o “acaso”, criar, ou melhor, trazer as suas próprias leis. Neste caso, bastaria ao cientista observar e descrever o que vê.
Trata-se de um empirismo não apenas evidente, mas “empirismo colorido.” Não é preciso compreendê-lo, basta vê-lo. Para os fenômenos elétricos, o livro do mundo é livro de figuras. Deve-se folheá-lo sem tentar preparar sua surpresa. Nesse domínio ele parece tão seguro que não se poderia jamais ter previsto o que se vê! 5
Simplesmente, nada é construído, tudo já seria dado pela natureza, caberia ao cientista observar bem, olhar bem e descrever o que vê. Eis como empirismo vulgar e vício da ocularidade se relacionam tão bem. Por tal vício (o vício da ocularidade) compreende-se o preconceito segundo o qual o que conhecemos é uma extensão da visão, uma extensão do que chegamos a ver. Simplesmente, nesse estágio (o da espera do que vamos ver e descrever bem) muito pouco ou quase nada cabe à razão.
Mas é justamente contra esse preconceito tão presente no espírito pré-científico que a epistemologia bachelardiana luta: “conhece-se mais facilmente o açúcar fabricando açucares do que analisando um açúcar particular.” 6 Ou seja, o objeto científico jamais se encontra dado e já pronto para ser analisado e para, por exemplo, produzir-se uma catalogação do que foi visto, ao revés, tal objeto deve ser construído, realizado. Como ele mesmo lembra:
A nosso ver, para a epistemologia é preciso aceitar o postulado seguinte: o objeto não poderia ser designado como um objetivo imediato; em outras palavras, uma ida ao objeto não é inicialmente objetivo. É preciso pois aceitar uma verdadeira ruptura entre o conhecimento sensível e o conhecimento científico.7
O trabalho de construção do objeto científico ( “devemos antes de tudo tomar consciência da necessidade construtiva e nos comprometermos a rejeitar tudo o que não pareça necessário (...) 8” ) requer vários retoques, retificações, prudência... que diferem muito do objeto esperado sustentado pelo empirismo vulgar e seu sensualismo, em seu apego aos sentidos. Sobre a inconsistência desse sensualismo que fundamenta o empirismo vulgar e até mesmo o positivismo do século XIX e XX, Canguilhem lembra o seguinte:
Se se admite que as percepções sensíveis são, ao mesmo tempo, um dado primitivo e a única realidade imediata, é falso falar de ilusões dos sentidos. Além disso, se não se pode superar a impressão pessoal é impossível tirar daí um conhecimento objetivo; não há qualquer razão para estabelecer diferenças, escolher entre as impressões pessoais: todas têm o mesmo direito. 9
Como exemplo de positivista que lançou mão da epistemologia sensualista do empirismo para fundamentar diferenças podemos citar Comte, em seu Curso de Filosofia Positiva, quando sustenta que a luz é eternamente diferente do som, pelo fato de as considerações fisiológicas se bastarem: simplesmente a visão se distingue da audição, bem como o tato ou a pressão.
Essa epistemologia sensualista é altamente subjetivista, na medida em que o dado primeiro é a única realidade imediata, então, é só esperar, ver e descrever como o oficial de registro que encontramos no filme O enigma de Kaspar Hauser dirigido por Werner Herzog. De acordo com o empirismo vulgar, devemos estar “todos no espetáculo. Não nos ocupemos do físico que é apenas um marcador de cena.” 10
Contra a epistemologia sensualista e o empirismo vulgar, Bachelard afirma o necessário trabalho de construção do objeto como um constante esforço de dessubjetivação. É por isso que ele afirma que uma simples ida ao objeto já dado não é objetiva. Contra essa ilusão do fato e do objeto dado, do objeto já pronto, Bachelard afirma a necessidade do trabalho de construção controlada, metódica e racional do objeto, trabalho onde tanto racionalismo aplicado quanto materialismo técnico são trabalhados, onde, por exemplo, racionalismo e realismo (“De fato, essa contradança de duas filosofias contrarias, em ação no pensamento científico, implica filosofias mais numerosas, e apresentaremos diálogos sem dúvida menos cerrados, mas que ampliam a psicologia do espírito científico” 11) se relacionam constantemente.
E a necessidade de construção do objeto científico contra as ilusões dos objetos pré-construídos (os objetos já dados, por exemplo) é um ponto de suma importância para compreendermos a fundamentação epistemológica e teórica da sociologia de Pierre Bourdieu:
O que conta, na realidade, é a construção do objeto, e a eficácia de um método de pensar nunca se manifesta tão bem como na sua capacidade de construir objetos socialmente insignificantes em objetos científicos. 12
Ou então:
(...) é preciso construir o objeto; é preciso pôr em causa os objetos pré-construídos (...) 13
A construção metódica e controlada do objeto científico é questão indispensável para se compreender a sua sociologia, bem como o quanto tal sociologia é influenciada pela epistemologia bachelardiana. 14 A construção do objeto científico é um ponto importante para se compreender a ruptura, por tal trabalho propiciada, com o senso comum; na medida em que, como vimos no caso de Bourdieu, ela possibilita se construir um objeto científico que para o senso comum não passa de uma banalidade (de algo natural e inquestionável) ou de algo invisível e, por isso, inexistente. Trata-se também de uma potente ferramenta, em sociologia, contra a hierarquia dos objetos de estudo.
E a construção do objeto científico em sociologia também é algo muito trabalhoso, requer vários retoques, retificações... pode-se tomar como exemplo o difícil trabalho de construção do objeto científico realizado por Bourdieu em Homo Academicus, onde o próprio cientista iria investigar um campo (o campo universitário) onde ele próprio ocupa uma posição. Várias questões e problemas epistemológicos no trabalho de construção do objeto são levantados, inclusive o necessário controle e vigilância epistemológica na relação de proximidade e distância (do agente que o ocupa uma posição no campo que ele mesmo pretende tomar como objeto, neste caso tanto a posição por ele ocupada quanto o campo jamais devem se ignorados, não apenas o campo e suas relações com outros, mas a sua própria posição – a posição que o próprio pesquisador ocupa - deve ser objetivada) que permeia tal trabalho:
Ao tomar como objeto um mundo social no qual se está preso, somos obrigados a encontrar, numa forma que se pode dizer dramatizada, um certo número de problemas epistemológicos fundamentais, todos ligados à questão da diferença entre o conhecimento prático e o conhecimento erudito e principalmente à dificuldade particular da ruptura com a experiência autóctone e com a restituição do conhecimento obtido à custa dessa ruptura. Conhece-se o obstáculo ao conhecimento científico que tanto o excesso de proximidade quando o excesso de distância representam e a dificuldade de instaurar esta relação de proximidade rompida e restaurada que, à custa de um longo trabalho sobre o objeto mas também sobre o sujeito da pesquisa, permite integrar tudo o que só se pode conhecer se se está lá e tudo o que não se pode ou não se quer conhecer porque não se está lá. 15
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1. Anônima, Histoire générale et particulière de l’élétricité. 3 parts, Paris, 1752; 2ª . parte, p. 2 e 3. Apud. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 40
2. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 39
3. BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. In.: BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 276
4. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 37
5. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Ibid
6. BACHELARD, Gaston. A filosofia do não: o novo espírito científico. Trad. Joaquim José Moura Ramos. – São Paulo: Abril Cultural, 1978. P. 33
7. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 115
8. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 35
9. CANGUILHEM, Georges. Leçons sur la methode. In.: BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 269.
10. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 38
11. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 109
12. BOURDIEU, Pierre. INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA. In,: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P.20
13. BOURDIEU, Pierre. INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA. Ibid
14. Pode-se encontrar um ótimo artigo escrito por Frédéric Vandenberghe onde são expostas a importância da epistemologia bachelardiana para a sociologia de Pierre Bourdieu e como ela é trabalhada por ele em: http://sociofilo.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2011/03/Orealerelacional-vandenberghe.pdf
15. BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Trad. Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011. P. 21
Desenho da capa de uma das edições de Homo Academicus de Pierre Bourdieu