sábado, 11 de abril de 2015

Em busca de uma ditadura sobre os pobres.




Por Danilo José Viana da Silva



“Na verdade esse tipo de medida terá conseqüências que só vão aparecer em 2030. Para quem sabe ver, elas já estão presentes no Brasil, por exemplo. Neste momento, estão acontecendo na França coisas que já foram feitas no Brasil, na Argentina, pelos Chicago Boys, e vemos as conseqüências: aumento de desemprego, violência, criminalidade, religiões milenaristas, pentecostalistas etc. Essas conseqüências são encontradas também nos guetos de Chicago, ao lado do campus universitário simpático dos Chicago Boys.”
                      (Pierre Bourdieu. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andreá Loyola.)



“Estudantes do bem-estar social e da justiça criminal se unam, vocês não têm nada a perder, exceto suas amarras conceituais.”
    (Loïc Wacquant. A política punitiva da marginalidade: revistando a fusão entre workfare e prisonfare.)





Não se pode reduzir a penalização apenas a questão do encarceramento e do enrijecimento da legislação penal. Eles correspondem a alguns dos integrantes do grande pacote das políticas neoliberais de “combate” a criminalidade. Neste caso, a questão da redução da maioridade penal jamais deve ser desintegrada da questão relativa a flexibilização e a precarização do trabalho assalariado, pois ambas constituem a vulgata planetária que atinge brutalmente a vida dos pobres, de todos aqueles que são desprovidos das condições sociais de acesso as propriedades pertinentes em nossa sociedade. É sob pena de uma verdadeira mutilação de um complexo problema social que, no atual estado das coisas, a questão da redução da maioridade penal pode ser pensada isoladamente do pacote de precarização do trabalho assalariado recentemente votado pelo Congresso Nacional.


O que este pacote de “novas políticas” de precarização do Estado social (reduzido frequentemente pelos neoconservadores como um mero estado assistencialista) engendra é justamente o aumento da criminalidade e a maximização daquilo que Pierre Bourdieu chama de “mão direita do Estado”, quer dizer, o Estado “está se retirando de um certo número de setores da vida social que eram sua incumbência e pelos quais era responsável.”1


A votação da PEC2 a favor da redução da maioridade penal, juntamente com a aprovação pelo Congresso Nacional do PL3 que visa – mediante a chamada eufemisticamente “ampliação da Terceirização do Trabalho” – flexibilizar os direitos trabalhistas conquistados durante vários anos de lutas trabalhistas pela classe trabalhista, reflete bem um quadro propício para uma verdadeira ditadura sistemática sobre os pobres  em nosso país.


Sem falar nas táticas, no mínimo, draconianas empregadas pela Polícia na midiaticamente denominada “Guerra contra as drogas” nas favelas no Complexo do Alemão, que também refletem – tal como foi recentemente divulgado pela mídia e pelas redes sociais, sendo o caso do brutal e frio assassinato de Eduardo ( garoto de 10 anos), por policiais no Complexo do Alemão, por estar portando um celular, um caso limite do tratamento dado aos moradores do Alemão nessa “cívica” “guerra contra as drogas” – a maximização e o tratamento da mão de ferro dado às classes mais desfavorecidas e historicamente estigmatizadas.  


Como lembra Loïc Wacquant em entrevista, o Estado “neoliberal pratica a política do laissez-faire, laissez passer com relação às corporações e às classes altas, no nível das causas da desigualdade. Mas é destemidamente intervencionista e autoritário quando lida com as consequências destrutivas da desregulamentação econômica no nível mais baixo do espectro social e de classe.”4


O que a nova composição do Congresso Nacional vem aprovando em apenas 4 meses de sua atuação corresponde a um conjunto de medidas que fazem parte do pacote das políticas neoliberais de minimização do Estado econômico e social e de maximização do Estado penal  e repressor.  A redução da maioridade penal corresponde a um típico exemplo de como os setores mais conservadores lutam no Campo burocrático para fazer valer os seus interesses transfigurados mediante o uso de uma retórica oficial do “bem comum” e do “republicanismo”, pretendem “combater” a criminalidade mediante a maximização de suas próprias causas.


É neste sentido que a penalidade neoliberal representa um paradoxo insustentável, pois ela pretende “combater” a criminalidade a partir do fortalecimento inconsequente das próprias causas da criminalidade. Como lembra Wacquant “a penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto de Primeiro como do Segundo Mundo.”5  


Juntamente com a redução da maioridade penal está a questão da flexibilização e da precarização do trabalho votada recentemente por um Congresso que representa uma das faces mais conservadoras de nosso recente poder legislativo. Representando também um dos elementos do pacote neoliberal, onde o Congresso Nacional passa a atuar como um verdadeiro representante dos grandes conglomerados econômicos, pode-se citar as Leis n: 9.096/95 e n: 9.504/97 que foram aprovadas no governo de Fernando Henrique Cardoso e que “permitem doações financeiras por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e a partidos políticos. Tal modificação nas regras do financiamento eleitoral deu um enorme poder às grandes empresas, que passaram a ser determinantes para a eleição de candidatos.6”   


Só em 2010, entre as principais empresas doadoras estão a “Camargo Corrêa, OAS, Andrade Gutierrez, Siderúrgica Gerdau, Banco Alvorada (Bradesco), BMG, Itaú/Unibanco, Santander, JBS/Friboi, Ambev, Votorantim Comércio e Energia. Os investimentos são altos. Segundo a Transparência Brasil, o custo total das eleições de 2010 e 2012 chega a R$ 10,8 bilhões”7   


Em um país consideravelmente desprovido de tradição democrática, o congresso Nacional reflete uma espécie de subcampo do campo burocrático onde grande parte dos agentes atuantes pode ser vista como representante dissimulada dos interesses de grandes empresas mediante o emprego de uma retórica oficial característica desse subcampo, o que de fato reflete a pobre autonomia de que desfruta tal subcampo: juntamente pelo fato de a sua atuação ser em grande parte tributária das pressões exercidas pelo polo dominante no interior do “campo econômico.”8   

  
Neste sentido, as condições estão mais propícias para a aprovação de medidas que visam desestruturar uma das mais importantes conquistas de nossa civilização com a flexibilização e a precarização do trabalho assalariado. Como lembra Bourdieu:


“Lembro que quando disse, na Gare de Lyon, em 1995, não recordo exatamente a frase, mas sei que usei a palavra civilização "é uma civilização que está em perigo" -, pensei: "Bourdieu, não é possível, você está exagerando!" E, como detesto bancar o intelectual que diz grandes frases, eu disse a mim mesmo: "Bourdieu você bancou o intelectual, isso é um exagero". Na verdade eu estava com muito mais razão do que pensava. Nesse processo, estão ameaçados, por um lado, os oito séculos de trabalho intelectual que foram necessários para se definir o que é um artista, o que é um escritor; por outro, dois ou três séculos de luta social, combates, greves e lutas sindicais para inventar formas muito complexas de regulação das sociedades humanas.”9



            Esse pacote neoliberal de políticas contra os pobres tem o efeito de por em xeque anos e anos de lutas para se constituir espaços relativamente autônomos, tais como o campo artístico, o campo científico (um dos exemplos onde a autonomia do campo científico pode ser abalada corresponde justamente a tentativa de condicionar as pesquisas e o progresso científico aos interesses políticos, econômicos e empresariais através da redução dos incentivos de pesquisa a todos os que não se “adaptam” às exigências do mercado), e as garantias que os trabalhadores conseguiram conquistar em séculos de lutas simbólico-materiais. “ Muitas coisas que nos parecem evidentes - como a previdência social, o seguro contra acidentes de trabalho, o seguro de saúde - tiveram de ser inventadas, e tudo isso foi muito difícil, muito complicado.”10 E são séculos de lutas e conquistas que estão sendo colocadas em xeque.


            E a redução da maioridade penal, representado uma dupla atuação do Estado, onde ele enfraquece o seu setor social – educação, saúde, trabalho, previdência, lazer, moradia etc – para fortalecer o seu  aparato punitivo e repressivo, juntamente com a tentativa de se implementar um processo de flexibilização das garantias dos direitos dos trabalhadores, devem ser vistas como um conjunto, devem ser, no atual estado das coisas, vistas de forma integrada. “É essencial não isolar mudanças na justiça criminal de mudanças correlatas ocorridas em diversas frentes das políticas públicas que interagem com a mesma população despossuída.”11         


            Se, por um lado, a redução da maioridade penal atua como uma política repressiva direcionada principalmente aos dominados, – juntamente com a ajuda da brutal atuação policial nos processos de “ocupação” das favelas –  aos despossuídos das condições de acesso às propriedades pertinentes em nossa sociedade, a precarização do trabalho tem todas as condições para contribuir para a gestão do processo de imposição do trabalho precário às classes mais pobres.    
   
        
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1.      BOURDIEU, Pierre. A mão esquerda e a mão direita do Estado. In.: Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Trad. Lucy Magalhães – Rio De Janeiro: Zahar, 1998. P. 10  
2.      Projeto de Emenda Constitucional n.: 171/1993
3.      Projeto de Lei  n.:4330/2004  
4.      WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade: revisitando a fusão entre workfare e prisonfare. Trad. Julia Alexim
5.      WACQUANT, Loïc. Nota aos leitores brasileiros: rumo a uma ditadura sobre os pobres? In.: As prisões da miséria. Trad. André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001. P. 07
6.      BAVA, Silvio Caccia. Uma disputa e tanto. in.: Le monde diplomatique Brasil, Abril de 2014. P. 03
7.      BAVA, Silvio Caccia. Ibid
8.      Sobre a noção de campo econômico ver BOURDIEU, Pierre. O campo econômico.Trad. Suzana Cardoso e Cécile Raud-Mattedi. 1997.
9.      Pierre Bourdieu. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andreá Loyola. Rio de Janeiro. EdUERJ. 2002. P. 21          
10.  Pierre Bourdieu. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andreá Loyola. Rio de Janeiro. EdUERJ. 2002. P. 22
11.  WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade.