Por Danilo José Viana da Silva
“Na verdade esse tipo de medida terá conseqüências que só vão aparecer em
2030. Para quem sabe ver, elas já estão presentes no Brasil, por exemplo. Neste
momento, estão acontecendo na França coisas que já foram feitas no Brasil, na
Argentina, pelos Chicago Boys, e vemos as conseqüências: aumento de desemprego,
violência, criminalidade, religiões milenaristas, pentecostalistas etc. Essas
conseqüências são encontradas também nos guetos de Chicago, ao lado do campus
universitário simpático dos Chicago Boys.”
(Pierre Bourdieu. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria
Andreá Loyola.)
“Estudantes do bem-estar social e da justiça criminal se unam, vocês não
têm nada a perder, exceto suas amarras conceituais.”
(Loïc Wacquant. A política punitiva da marginalidade: revistando
a fusão entre workfare e prisonfare.)
Não se pode
reduzir a penalização apenas a questão do encarceramento e do enrijecimento da
legislação penal. Eles correspondem a alguns dos integrantes do grande pacote
das políticas neoliberais de “combate” a criminalidade. Neste caso, a questão
da redução da maioridade penal jamais deve ser desintegrada da questão relativa
a flexibilização e a precarização do trabalho assalariado, pois ambas
constituem a vulgata planetária que atinge brutalmente a vida dos pobres, de
todos aqueles que são desprovidos das condições sociais de acesso as
propriedades pertinentes em nossa sociedade. É sob pena de uma verdadeira
mutilação de um complexo problema social que, no atual estado das coisas, a
questão da redução da maioridade penal pode ser pensada isoladamente do pacote
de precarização do trabalho assalariado recentemente votado pelo Congresso
Nacional.
O que este pacote
de “novas políticas” de precarização do Estado social (reduzido frequentemente
pelos neoconservadores como um mero estado assistencialista) engendra é
justamente o aumento da criminalidade e a maximização daquilo que Pierre
Bourdieu chama de “mão direita do Estado”, quer dizer, o Estado “está se
retirando de um certo número de setores da vida social que eram sua incumbência
e pelos quais era responsável.”1
A votação da PEC2
a favor da redução da maioridade penal, juntamente com a aprovação pelo
Congresso Nacional do PL3 que visa – mediante a chamada
eufemisticamente “ampliação da Terceirização do Trabalho” – flexibilizar os
direitos trabalhistas conquistados durante vários anos de lutas trabalhistas
pela classe trabalhista, reflete bem um quadro propício para uma verdadeira
ditadura sistemática sobre os pobres em
nosso país.
Sem falar nas
táticas, no mínimo, draconianas empregadas pela Polícia na midiaticamente denominada
“Guerra contra as drogas” nas favelas no Complexo do Alemão, que também refletem
– tal como foi recentemente divulgado pela mídia e pelas redes sociais, sendo o
caso do brutal e frio assassinato de Eduardo ( garoto de 10 anos), por
policiais no Complexo do Alemão, por estar portando um celular, um caso limite
do tratamento dado aos moradores do Alemão nessa “cívica” “guerra contra as
drogas” – a maximização e o tratamento da mão de ferro dado às classes mais
desfavorecidas e historicamente estigmatizadas.
Como lembra Loïc Wacquant
em entrevista, o Estado “neoliberal pratica a política do laissez-faire, laissez passer com relação às corporações e às
classes altas, no nível das causas da desigualdade. Mas é destemidamente intervencionista
e autoritário quando lida com as consequências destrutivas da desregulamentação
econômica no nível mais baixo do espectro social e de classe.”4
O que a nova
composição do Congresso Nacional vem aprovando em apenas 4 meses de sua atuação
corresponde a um conjunto de medidas que fazem parte do pacote das políticas
neoliberais de minimização do Estado econômico e social e de maximização do
Estado penal e repressor. A redução da maioridade penal corresponde a um
típico exemplo de como os setores mais conservadores lutam no Campo burocrático para fazer valer os seus
interesses transfigurados mediante o uso de uma retórica oficial do “bem comum”
e do “republicanismo”, pretendem “combater” a criminalidade mediante a
maximização de suas próprias causas.
É neste sentido
que a penalidade neoliberal representa um paradoxo insustentável, pois ela
pretende “combater” a criminalidade a partir do fortalecimento inconsequente
das próprias causas da criminalidade. Como lembra Wacquant “a penalidade
neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um “mais Estado”
policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada
da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto de Primeiro como
do Segundo Mundo.”5
Juntamente com a
redução da maioridade penal está a questão da flexibilização e da precarização
do trabalho votada recentemente por um Congresso que representa uma das faces
mais conservadoras de nosso recente poder legislativo. Representando também um
dos elementos do pacote neoliberal, onde o Congresso Nacional passa a atuar
como um verdadeiro representante dos grandes conglomerados econômicos, pode-se
citar as Leis n: 9.096/95 e n: 9.504/97 que foram aprovadas no governo de
Fernando Henrique Cardoso e que “permitem doações financeiras por pessoas jurídicas
a campanhas eleitorais e a partidos políticos. Tal modificação nas regras do
financiamento eleitoral deu um enorme poder às grandes empresas, que passaram a
ser determinantes para a eleição de candidatos.6”
Só em 2010, entre
as principais empresas doadoras estão a “Camargo Corrêa, OAS, Andrade
Gutierrez, Siderúrgica Gerdau, Banco Alvorada (Bradesco), BMG, Itaú/Unibanco,
Santander, JBS/Friboi, Ambev, Votorantim Comércio e Energia. Os investimentos
são altos. Segundo a Transparência Brasil, o custo total das eleições de 2010 e
2012 chega a R$ 10,8 bilhões”7
Em um país
consideravelmente desprovido de tradição democrática, o congresso Nacional reflete
uma espécie de subcampo do campo burocrático onde grande parte dos agentes atuantes
pode ser vista como representante dissimulada dos interesses de grandes
empresas mediante o emprego de uma retórica oficial característica desse
subcampo, o que de fato reflete a pobre autonomia de que desfruta tal subcampo:
juntamente pelo fato de a sua atuação ser em grande parte tributária das
pressões exercidas pelo polo dominante no interior do “campo econômico.”8
Neste sentido, as
condições estão mais propícias para a aprovação de medidas que visam
desestruturar uma das mais importantes conquistas de nossa civilização com a
flexibilização e a precarização do trabalho assalariado. Como lembra Bourdieu:
“Lembro que quando disse, na Gare de Lyon, em 1995, não
recordo exatamente a frase, mas sei que usei a palavra civilização "é uma
civilização que está em perigo" -, pensei: "Bourdieu, não é possível,
você está exagerando!" E, como detesto bancar o intelectual que diz
grandes frases, eu disse a mim mesmo: "Bourdieu você bancou o intelectual,
isso é um exagero". Na verdade eu estava com muito mais razão do que
pensava. Nesse processo, estão ameaçados, por um lado, os oito séculos de
trabalho intelectual que foram necessários para se definir o que é um artista,
o que é um escritor; por outro, dois ou três séculos de luta social, combates,
greves e lutas sindicais para inventar formas muito complexas de regulação das
sociedades humanas.”9
Esse pacote neoliberal de políticas
contra os pobres tem o efeito de por em xeque anos e anos de lutas para se
constituir espaços relativamente autônomos, tais como o campo artístico, o
campo científico (um dos exemplos onde a autonomia do campo científico pode ser
abalada corresponde justamente a tentativa de condicionar as pesquisas e o progresso
científico aos interesses políticos, econômicos e empresariais através da
redução dos incentivos de pesquisa a todos os que não se “adaptam” às exigências
do mercado), e as garantias que os trabalhadores conseguiram conquistar em séculos
de lutas simbólico-materiais. “ Muitas coisas que nos parecem evidentes - como
a previdência social, o seguro contra acidentes de trabalho, o seguro de saúde
- tiveram de ser inventadas, e tudo isso foi muito difícil, muito complicado.”10
E são séculos de lutas e conquistas que estão sendo colocadas em xeque.
E a redução da maioridade penal,
representado uma dupla atuação do Estado, onde ele enfraquece o seu setor
social – educação, saúde, trabalho, previdência, lazer, moradia etc – para fortalecer
o seu aparato punitivo e repressivo,
juntamente com a tentativa de se implementar um processo de flexibilização das
garantias dos direitos dos trabalhadores, devem ser vistas como um conjunto,
devem ser, no atual estado das coisas, vistas de forma integrada. “É essencial
não isolar mudanças na justiça criminal de mudanças correlatas ocorridas em
diversas frentes das políticas públicas que interagem com a mesma população
despossuída.”11
Se, por um lado, a redução da
maioridade penal atua como uma política repressiva direcionada principalmente
aos dominados, – juntamente com a ajuda da brutal atuação policial nos
processos de “ocupação” das favelas – aos
despossuídos das condições de acesso às propriedades pertinentes em nossa
sociedade, a precarização do trabalho tem todas as condições para contribuir
para a gestão do processo de imposição do trabalho precário às classes mais
pobres.
_______________________________________________
1.
BOURDIEU, Pierre.
A mão esquerda e a mão direita do Estado. In.: Contrafogos: táticas para
enfrentar a invasão neoliberal. Trad. Lucy Magalhães – Rio De Janeiro: Zahar,
1998. P. 10
2.
Projeto de Emenda
Constitucional n.: 171/1993
3.
Projeto de Lei n.:4330/2004
4.
WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade: revisitando
a fusão entre workfare e prisonfare. Trad. Julia Alexim
5.
WACQUANT, Loïc.
Nota aos leitores brasileiros: rumo a uma ditadura sobre os pobres? In.: As prisões da miséria. Trad. André
Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001. P. 07
6.
BAVA, Silvio
Caccia. Uma disputa e tanto. in.: Le monde diplomatique Brasil, Abril de
2014. P. 03
7.
BAVA, Silvio
Caccia. Ibid
8.
Sobre a noção de
campo econômico ver BOURDIEU, Pierre. O
campo econômico.Trad. Suzana Cardoso e Cécile Raud-Mattedi. 1997.
9.
Pierre Bourdieu. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria
Andreá Loyola. Rio de Janeiro. EdUERJ. 2002. P. 21
10.
Pierre Bourdieu. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria
Andreá Loyola. Rio de Janeiro. EdUERJ. 2002. P. 22
11.
WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade.