segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Uma cosmologia pentecostal à brasileira.



Arte: "Alegoria do Bom Governo" de Ambrogio Lorenzetti

Por Danilo José Viana da Silva



Em um momento em que parece haver uma intensificação dos movimentos e das ações sociais em prol dos direitos das minorias e dos estigmatizados socialmente, observa-se um tipo de reação, de intensificação das forças reacionárias apoiadas no gospel pentecostal da teologia da prosperidade. O fato de a vereadora mais bem votada em Recife ser uma representante das pautas pentecostais contra, por exemplo, as lutas travadas pelos movimentos feministas, e a vitória eleitoral de Marcelo Crivella para o posto de prefeito do Rio de Janeiro, podem ser vistos como exemplos patentes dessa reação conjunta e eficiente. 

Mas, para que esse efeito de reação não fique reduzido a imagem dos pináculos do mundo político, é preciso mencionar que no interior de Pernambuco, em alguns municípios, temas e músicas pentecostais há muito são utilizados nas propagandas eleitorais como formas de transfiguração dos projetos de poder que, via de regra, viabilizam vantagens para uma ou outra das famílias na luta pelo poder político municipal. Essa tonalidade pentecostal da campanha eleitoral acaba contribuindo para que os candidatos passem uma imagem para a população de que o poder político corresponde a uma continuação do poder de Deus na terra. 

Não se pode esquecer também a imagem do poder político que esses lideres acabam veiculando: o poder  político é tomado como um tipo de ordem mundana e terrena que corresponde, na verdade, a uma continuação da ordem divina e celestial. Através de toda uma ordem escalonada e hierárquica onde, no ápice haveria Deus e a ordem celestial, passando pela Igreja e a ordem hierocrática até chegar ao poder político e mundano ( um dos poderes mais baixos na ordem escalonada da cosmologia e propício a se corromper e que por isso deveria se submeter aos preceitos da Igreja), essa corrente reacionária pentecostal pode buscar suas bases ideológicas em uma imagem cosmológica do mundo. 

Na própria retórica da advogada Janaina Paschoal no processo de Impeachment pode-se observar vários elementos típicos das pregações pentecostais e  de cura das almas, tais como a entonação, a hexis corporal... Sendo assim, o próprio processo de Impeachment pôde ser justificado como uma continuação da vontade de Deus na terra e a Constituição Federal pôde ser tomada como um “livro sagrado que o PT não assinou”, pois atrelado a toda essa cosmologia está todo um processo de demonização do PT e da esquerda reconhecida como defensora dos direitos das minorias. Observa-se o quanto os próprios partidos acabam sendo reconstruídos a partir de esquemas religiosos com enfoque na mística pentecostal. Observa-se o quanto as próprias pautas que não se enquadram nos esquemas do gospel pentecostal podem ser tomadas como um tipo de encarnação do demônio na terra. É sintomático que, por exemplo, um dos mais conhecidos e polêmicos porta-vozes nacionais dessa ideologia tenha chegado a comemorar a vitória eleitoral de Crivella como uma vitória contra “o capeta”. 

A ordem social terrena é tomada como uma continuação da ordem divina como, diria Weber, uma “Teodiceia da sorte dos dominantes”, e, como tal, o que acontece no mundo pode ser transfigurado pela mística pentecostal. Neste ritual, como em muitos outros, a histeria pode ser vista como parte componente. A parcela de autonomia do campo político, que requer que os problemas políticos sejam tratados de acordo com os esquemas constitutivos do habitus político, está em xeque, e isso não é de hoje. A reconstrução teológica das relações de concorrência política pode ser visto como uma forma consideravelmente eficiente de dissimulação da dominação política e econômica que não se mostra enquanto tal, mas enquanto continuação da vontade de Deus na cadeia do Ser.          

sábado, 29 de outubro de 2016

Sobre "Melancolia do Poder" de Vladimir Safatle.



Por Danilo José Viana da Silva


Muito interessante, debate louvável. Porém, gostaria apenas de fazer alguns questionamentos que as vezes, por conta do conforto escolástico que a vida acadêmica pode nos propiciar, são ignorados ou esquecidos:   Quais são as condições sociais de produção dessa potência afirmativa da imaginação? Em outras palavras, será que essa potência é pensada de forma equivalente ao bom senso que, segundo Descartes, “é a coisa mais bem distribuída do mundo”? 

Quando se pergunta sobre as condições sociais de produção da imaginação, da resistência política e da tomada de consciência, o que acaba entrando em jogo é justamente a questão referente a quais probabilidades de as pessoas que vivem em um contexto de miséria e pobreza extremas (tal como aquelas retratadas no documentário “Garapa” https://www.youtube.com/watch?v=Cz76iw4r2_I ) chegarem ao nível de uma imaginação polítcia que pressupõe uma certa inclinação e cultura políticas para a resistência em contraposição a resignação. 

Em outras palavras, como ficaria o caso daqueles e daquelas que, historicamente retratados em diversas obras literárias e artísticas, tais como “Vidas Secas” de Graciliano Ramos e nas obras de Portinari, derrotados pelo sol escaldante e moralmente humilhados em uma situação de aguda desigualdade econômica e social, e que, sem expectativas nem sobre o presente ou sobre o futuro, foram desapossados das oportunidades de fazer parte da própria atuação efetiva na política? Como ficaria a condição dos mutilados socialmente e simbolicamente, daquelas pessoas submetidas, pela situação degradante em que vivem, a um estado de invisibilidade cívica”? 

Esse problema nos leva também a perguntar o seguinte: para quem esse discurso é realizado? Para aqueles e aquelas que, pelo fato de terem um acesso considerável a uma educação e a um capital cultural e social para a luta política, em contraposição a resignação, podem efetivar essa resistência? Quais as condições sociais da “experiência da intervenção política” e da “indignação política”? 

Como explicar a situação de todos e todas que, por não poderem perder uma “crença” que nunca tiveram, justamente pelo fato de estarem desapossadas das condições de acesso a cultura política necessária para se acreditar na política, estão relegadas a uma vida mutilada e que sofrem os efeitos do que o próprio Safatle chega a chamar, no debate, de “princípio de exclusão brutal”? Se pensarmos de acordo com a relação gangorra entre os conceitos de ‘Saída’ e ‘Voz’ desenvolvidos por Hirschman, como explicar a falta de opções de ‘Saída’ para todos aqueles e aquelas que dependem dos serviços públicos de saúde e educação, e como explicar que, mesmo diante da eminente aprovação da PEC 241, as camadas mais pobres e estigmatizadas ainda não exerceram com vigor, diante do perigo eminente, a ‘Voz’, a resistência e exigência de melhores serviços públicos? Quais as condições sociais de produção da ‘Voz’, da resistência política? 

Para aqueles e aquelas que, por viverem em situações degradantes, dependem de uma prestação maior e mais eficiente dos serviços públicos  de saúde, educação  e assistência, a opção pela ‘Saída’, ou seja, a opção por não utilizar mais esses serviços tendo em vista a sua prestação degradante, pode ter como efeitos a desnutrição, a fome e a morte.