Por Danilo José Viana da Silva
Através da reativação sociológica da crítica pascaliana da razão
autofundadora (“O que assenta na sã razão é bem mal fundado, como a estima da
sabedoria”) Bourdieu faz uma análise pormenorizada de boa parte da tradição filosófica
tanto moderna quanto contemporânea.
Por meio dessa análise, Bourdieu põe em prática os princípios e toda a
artilharia analítica de sua sociologia reflexiva, a qual exige, como uma das
mais importantes condições para o exercício da sociologia, que o próprio sociólogo
empregue contra si mesmo os instrumentos de objetivação que ele emprega em seu
trabalho de pesquisa.
A vigilância epistemológica contra si (uma análise da relevância da vigilância
epistemológica contra si pode ser encontrada em “O racionalismo aplicado” de
Gaston Bachelard, uma das mais importantes influências na sociologia do
conhecimento de Bourdieu) acaba encontrando uma oportunidade considerável de
exercício na medida em que a crítica pascaliana do fundamento racional da
razão, como um tipo de crítica a forma de denegação de gênese histórica e
social dos próprios instrumentos de reflexão racional, é empregada
rigorosamente contra as determinantes sociais que contribuem para a amnésia da
gênese histórica e social do próprio habitus
escolástico, do próprio escolástico que existe em cada um de nós.
A sociogênese da disposição escolástica ( a qual pode ser aqui
rapidamente definida como uma inclinação para construir e perceber o mundo e os
seus objetos como absolutamente autônomos através de esquemas interiorizados e
pensados como instrumentos absolutamente autônomos de conhecimento, e de acordo
com uma disposição liberada das urgências e da alienação do tempo necessário
para o exercício da apropriação cultural, da imprevisibilidade de uma vida instável
econômica e social, de uma condição de existência relativamente favorável à “escolha”
dos produtos e modos de ação reconhecidos como marcadores de distinção
cultural, verdadeira condição para se ascender a predileção e as “escolhas”
desinteressadas – tomadas como efeitos de um dom inato e, portanto,
dessocializado – pelos mais nobres
objetos de reflexão e apreciação ) acaba contribuindo para se produzir
instrumentos eficazes contra os erros escolásticos, os quais tendem a “pôr a
razão onde ela nunca esteve”, diria Pascal, verdadeiro princípio de erro que só
pode ser rigorosamente combatido pondo os instrumentos da razão contra ela
mesma, através de um rigoroso exercício de uma autoanálise sociológica, uma das
condições indispensáveis, segundo Bourdieu, não apenas para o progresso das ciências
sociais, mas também para uma atuação política mais eficaz.
Obra importante para o exercício da crítica ao fetichismo cultural,
exemplo expresso e não devidamente questionado de um dos efeitos mais
dissimulados no mundo intelectual da dominação simbólica, que tem como uma de
suas características o fato de os dominados contribuírem inconscientemente para
a sua própria dominação.
Obra importante para se pensar também em como a sociogênese da produção
do que hoje no mundo intelectual é tomado como evidente, justamente por fazer
parte da doxa constitutiva e fora do
espaço do questionável pela própria filosofia questionadora, justamente por ser um dos fundamentos tácitos
e amplamente aceitos como evidentes nos mais diversos jogos intelectuais, pode
contribuir para a efetivação do que Bourdieu chama de “Realpolitik da razão” e para o fortalecimento dos instrumentos de
combate contra os princípios do erro escolástico que existem em cada um de
nós, em nosso mais profundo âmago.
Levando em conta que, como definia Bachelard, “a verdade é uma ilusão
bem fundamentada”, e de que o erro é parte constitutiva e ativa da produção de
conhecimento, o exercício da vigilância epistemológica não se baseia em uma
ilusão fundada em um ritual de expurgo ou de exorcismo do erro e da ilusão, mas
uma importante ferramenta empregada por Bourdieu para o exercício de uma
verdadeira sociologia do conhecimento sociológico, para um constante, interminável
e incansável combate às labaredas de fogo do erro (Canguilhem, um dos discípulos
mais conhecidos de Bachelard, afirma que ”o erro não é fumaça, mas fogo que ressurge
sempre”) que a todo o instante tendem a determinar significativamente o desenrolar
do árduo e ingrato exercício de pesquisa.
No caso da sociologia, assim como Bachelard afirmava que para que o progresso
do conhecimento científico, no caso especifico da Química, seria preciso que o
químico lutasse constantemente contra o alquimista que existe em seu interior,
em seu mais profundo âmago, Bourdieu sustenta que o sociólogo deve combater sem
cessar o sociólogo espontâneo e os princípios do erro escolástico que existem
em seu mais profundo âmago, sem tréguas.
Um rigoroso trabalho de sociogênese do habitus escolástico e do homo
academicus que vive em nós, e de crítica à ilusão de liberdade altaneira
que o fetichismo da cultura intelectual pode propiciar contribuindo para os
mais diversos sobrevoos intelectuais sobre o mundo social.
Uma importante contribuição ao exercício de autoanálise do espaço de ação
e de construção intelectual do mundo. Como Bourdieu fala em entrevista a Roger
Chartier, “tudo o que é a mistificação produzida pelos intelectuais é algo que
depende de nós. Eis por que a crítica da ilusão intelectual, que é de nossa
alçada – mas não é, de modo algum, ‘o todo’ da ação política - , é, sem dúvida,
o mais importante daquilo que podemos fazer.” (BOURDIEU, Pierre e CHARTIER,
Roger. O sociólogo e o historiador. Editoria Autêntica. 2012. P. 43)