quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Sobre meditações pascalianas de Pierre Bourdieu



Por Danilo José Viana da Silva




Através da reativação sociológica da crítica pascaliana da razão autofundadora (“O que assenta na sã razão é bem mal fundado, como a estima da sabedoria”) Bourdieu faz uma análise pormenorizada de boa parte da tradição filosófica tanto moderna quanto contemporânea.


Por meio dessa análise, Bourdieu põe em prática os princípios e toda a artilharia analítica de sua sociologia reflexiva, a qual exige, como uma das mais importantes condições para o exercício da sociologia, que o próprio sociólogo empregue contra si mesmo os instrumentos de objetivação que ele emprega em seu trabalho de pesquisa.


A vigilância epistemológica contra si (uma análise da relevância da vigilância epistemológica contra si pode ser encontrada em “O racionalismo aplicado” de Gaston Bachelard, uma das mais importantes influências na sociologia do conhecimento de Bourdieu) acaba encontrando uma oportunidade considerável de exercício na medida em que a crítica pascaliana do fundamento racional da razão, como um tipo de crítica a forma de denegação de gênese histórica e social dos próprios instrumentos de reflexão racional, é empregada rigorosamente contra as determinantes sociais que contribuem para a amnésia da gênese histórica e social do próprio habitus escolástico, do próprio escolástico que existe em cada um de nós.


A sociogênese da disposição escolástica ( a qual pode ser aqui rapidamente definida como uma inclinação para construir e perceber o mundo e os seus objetos como absolutamente autônomos através de esquemas interiorizados e pensados como instrumentos absolutamente autônomos de conhecimento, e de acordo com uma disposição liberada das urgências e da alienação do tempo necessário para o exercício da apropriação cultural, da imprevisibilidade de uma vida instável econômica e social, de uma condição de existência relativamente favorável à “escolha” dos produtos e modos de ação reconhecidos como marcadores de distinção cultural, verdadeira condição para se ascender a predileção e as “escolhas” desinteressadas – tomadas como efeitos de um dom inato e, portanto, dessocializado –  pelos mais nobres objetos de reflexão e apreciação ) acaba contribuindo para se produzir instrumentos eficazes contra os erros escolásticos, os quais tendem a “pôr a razão onde ela nunca esteve”, diria Pascal, verdadeiro princípio de erro que só pode ser rigorosamente combatido pondo os instrumentos da razão contra ela mesma, através de um rigoroso exercício de uma autoanálise sociológica, uma das condições indispensáveis, segundo Bourdieu, não apenas para o progresso das ciências sociais, mas também para uma atuação política mais eficaz.


Obra importante para o exercício da crítica ao fetichismo cultural, exemplo expresso e não devidamente questionado de um dos efeitos mais dissimulados no mundo intelectual da dominação simbólica, que tem como uma de suas características o fato de os dominados contribuírem inconscientemente para a sua própria dominação.


Obra importante para se pensar também em como a sociogênese da produção do que hoje no mundo intelectual é tomado como evidente, justamente por fazer parte da doxa constitutiva e fora do espaço do questionável pela própria filosofia questionadora,  justamente por ser um dos fundamentos tácitos e amplamente aceitos como evidentes nos mais diversos jogos intelectuais, pode contribuir para a efetivação do que Bourdieu chama de “Realpolitik da razão” e para o fortalecimento dos instrumentos de combate contra os princípios do erro escolástico que existem em cada um de nós, em nosso mais profundo âmago.


Levando em conta que, como definia Bachelard, “a verdade é uma ilusão bem fundamentada”, e de que o erro é parte constitutiva e ativa da produção de conhecimento, o exercício da vigilância epistemológica não se baseia em uma ilusão fundada em um ritual de expurgo ou de exorcismo do erro e da ilusão, mas uma importante ferramenta empregada por Bourdieu para o exercício de uma verdadeira sociologia do conhecimento sociológico, para um constante, interminável e incansável combate às labaredas de fogo do erro (Canguilhem, um dos discípulos mais conhecidos de Bachelard, afirma que ”o erro não é fumaça, mas fogo que ressurge sempre”) que a todo o instante tendem a determinar significativamente o desenrolar do árduo e ingrato exercício de pesquisa.


No caso da sociologia, assim como Bachelard afirmava que para que o progresso do conhecimento científico, no caso especifico da Química, seria preciso que o químico lutasse constantemente contra o alquimista que existe em seu interior, em seu mais profundo âmago, Bourdieu sustenta que o sociólogo deve combater sem cessar o sociólogo espontâneo e os princípios do erro escolástico que existem em seu mais profundo âmago, sem tréguas.


Um rigoroso trabalho de sociogênese do habitus escolástico e do homo academicus que vive em nós, e de crítica à ilusão de liberdade altaneira que o fetichismo da cultura intelectual pode propiciar contribuindo para os mais diversos sobrevoos intelectuais sobre o mundo social.



Uma importante contribuição ao exercício de autoanálise do espaço de ação e de construção intelectual do mundo. Como Bourdieu fala em entrevista a Roger Chartier, “tudo o que é a mistificação produzida pelos intelectuais é algo que depende de nós. Eis por que a crítica da ilusão intelectual, que é de nossa alçada – mas não é, de modo algum, ‘o todo’ da ação política - , é, sem dúvida, o mais importante daquilo que podemos fazer.” (BOURDIEU, Pierre e CHARTIER, Roger. O sociólogo e o historiador. Editoria Autêntica. 2012. P. 43)