segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Gaston Bachelard: algumas divagações sobre uma epistemologia não-fixista.




Foto: Gaston Bachelard e sua filha, Suzanne Bachelard.



“Com a ciência einsteiniana começa uma sistemática revolução das noções de base.”
(Gaston Bachelard)

Por Danilo José Viana da Silva



            Em Bachelard a epistemologia não corresponde a um questionamento baseado em uma razão absoluta, imutável e muito segura de si mesma: na medida em que ele afirma que “a razão deve obedecer à ciência”1 ele exige que uma epistemologia e uma filosofia da ciência dignas desses nomes estejam a par das revoluções científicas, das produções que atacam profundamente as noções de base da ciência vigente, atestando, assim, a potência de um conhecimento (o conhecimento científico)  jamais imutável e nunca absolutamente seguro de suas conclusões.
            Ou seja, trata-se de uma epistemologia atenta às revoluções científicas que modificam, retificam, as noções consideradas eternas e imutáveis pelo espírito pré-científico e bastante seguro de si. Neste caso, a epistemologia bachelardiana não corresponde a uma eterna receita para se pensar tudo, pois, como ele mesmo lembra, diferentemente do empirismo vulgar e isolado, “o racionalismo conhece uma actividade dialéctica que impõe uma extensão constante dos métodos.” 2  Assim, o racionalismo aplicado - atento aos racionalismos regionais ligados as diversas disciplinas científicas - ( denotando a capacidade de diferenciação do conhecimento científico: “a hipótese atômica em química e a hipótese atômica em microfísica não têm a mesma estrutura racional3) é sempre um racionalismo aberto, um racionalismo a se fazer. E tal abertura é altamente relacionada com o aspecto dialético da superação constitutiva do conhecimento científico. Este tem como um de seus mais importantes elementos constitutivos a sua própria superação.
            Nesta esteira, o racionalismo que encontramos na epistemologia bachelardiana corresponde a um racionalismo aberto e setorial; trata-se de um racionalismo que formula mais questões do que respostas prontas e acabadas, pois ele não está tão seguro de si mesmo. Eis um dos aspectos importantes que diferencia o racionalismo aplicado do empirismo isolado e vulgar, o qual “tem sempre mais respostas que perguntas. Tem resposta para tudo.” 4 
            Bachelard sempre criticou a inclinação da ingênua segurança na utilização de uma única filosofia para se tratar do conhecimento científico, seja esta única filosofia o racionalismo kantiano ( para citarmos um único exemplo), o empirismo, o realismo, a fenomenologia... 5  Como ele deixa claro: “uma só filosofia é, pois, insuficiente para dar conta de um conhecimento preciso.” 6  Portanto, para dar conta desse conhecimento, Bachelard lembra que várias filosofias (as quais são postas muitas vezes em violentas oposições com capacidade de engendrar as mais diversas guerras acadêmico-ortodoxas) devem ligar-se por um laço nada comum:


Se pudéssemos então traduzir filosoficamente o duplo movimento que atualmente anima o pensamento científico, aperceber-nos-íamos de que a alternância do a priori e do a posteriori  é obrigatória, que o empirismo e o racionalismo estão ligados, no pensamento científico, por um estranho laço, tão forte como o que une o prazer à dor. Com efeito, um deles triunfa dando razão ao outro: o empirismo precisa de ser compreendido: o racionalismo precisa de ser aplicado. Um empirismo sem leis claras, sem leis coordenadas, sem leis dedutivas, não pode ser pensado nem ensinado; um racionalismo sem provas palpáveis, sem aplicação à realidade imediata não pode convencer plenamente. O valor de uma lei empírica prova-se fazendo dela a base de um raciocínio. Legitima-se um raciocínio fazendo dele a base de uma experiência.7  


            Em outras palavras, na epistemologia bachelardiana seria um erro se falar em ciências puramente dedutivas e ciências apenas e tão somente indutivas. Bachelard mostra o quanto essa separação corresponde a um obstáculo: para ele, a dicotomia entre juízos científicos hipotéticos e juízos científicos categóricos corresponde a um obstáculo para se conhecer as ciências. Neste caso, o que há, para Bachelard, são ciências hipotético-dedutivas. Aqui, razão e experiência jamais são vistas como inimigas uma da outra.
            O racionalismo aplicado corresponde a um racionalismo sempre a se fazer, nunca plenamente pronto e acabado. Quando se pergunta a Bachelard se ele pode ser visto como um racionalista, ele responde: “procuramos vir a sê-lo.” 8  A epistemologia bachelardiana é não-acabada, pois está sempre antenada nas revoluções científicas e nas reformulações realizadas nas bases do conhecimento científico por elas (as revoluções) produzidas; ela está antenada com a “ciência em evolução” 9 Neste caso, como ele lembra, “ a doutrina tradicional de uma razão absoluta e imutável é apenas uma filosofia. É uma filosofia caduca.” 10
            É contra o fixismo das filosofias muito seguras de suas verdades que a epistemologia de Bachelard é construída. O não-fixismo de tal epistemologia é uma de suas mais importantes características, aliás, ele está altamente relacionado com o primado teórico do erro, com a vigilância epistemológica, com a noção de razão polêmica, com o racionalismo aplicado...
            E a importância desse não-fixismo (o fixismo tende a transformar a epistemologia em receita, em dogma sagrado) é levado em conta inclusive por Bourdieu, Passeron e Chamboredon quando eles integram a epistemologia bachelardiana na sociologia do conhecimento por eles construída:


À tentação sempre renascente de transformar os preceitos do método em receitas de conzinha científica ou em engenhocas de laboratório, só podemos opor o treino constante na vigilância epistemológica que, subordinando a utilização das técnicas e conceitos a uma interrogação sobre as condições e limites de sua validade, proíbe as facilidades de uma aplicação automática de procedimentos já experimentados e ensina que toda operação, por mais rotineira ou rotinizada que seja, deve ser repensada, tanto em si mesmo quanto em função do caso particular. 11   


            A epistemologia bachelardiana é não-fixista, não-dogmática: exige que o método dê provas de sua utilidade racional, questiona-o. Ou seja, um “sucesso” jamais absoluto no emprego de determinado método em determinada experiência não quer dizer que ele (o método) seja absoluto: “A experiência não mais constitui o ponto de partida, nem mesmo é simples guia, ela é um alvo.12
            Trata-se de uma epistemologia que jamais pode ser tomada como dogmática digna de reverência sagrada. As próprias revoluções científicas atestam o não-fixismo dessa epistemologia: revoluções que exigem dos epistemólogos novas epistemologias. Aliás, como ele mesmo lembra, “o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão.” 13 Assim, o filósofo não está lidando com um conhecimento estacionado, estanque, mas com um constante e contínuo processo de retificação.      
                                     
                              
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1.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não. Trad. Joaquim José Moura Ramos. – São Paulo: Abril Cultural, 1978. P. 87
2.      BACHELARD, Gaston. O materialismo racional. Trad. João Gama. – Lisboa: Edições 70. P. 260
3.      BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 105
4.      BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. P. 48
5.      As insuficiências da fenomenologia para dar conta do conhecimento científico contemporâneo são expressas por Bachelard quando, por exemplo, ele trata da noção de corpúsculo na física contemporânea: BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 51-66
6.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não. P. 29
7.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não. P. 5
8.      BACHELARD, Gaston. Essai sur la connaissance approchée. Librairie philosophique J. Vrin: Paris, 1927. P. 10
9.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não. P. 87
10.  BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não. Ibid
11.  BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 14
12.  BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. P. 66
13.  BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. P. 15