Foto: Gaston Bachelard e sua filha, Suzanne Bachelard.
“Com a ciência einsteiniana começa uma sistemática revolução das noções de
base.”
(Gaston Bachelard)
Por Danilo José Viana da Silva
Em Bachelard a epistemologia não
corresponde a um questionamento baseado em uma razão absoluta, imutável e muito
segura de si mesma: na medida em que ele afirma que “a razão deve obedecer à
ciência”1 ele exige que uma epistemologia e uma filosofia da ciência
dignas desses nomes estejam a par das revoluções científicas, das produções que
atacam profundamente as noções de base da ciência vigente, atestando, assim, a
potência de um conhecimento (o conhecimento científico) jamais imutável e nunca absolutamente seguro
de suas conclusões.
Ou seja, trata-se de uma
epistemologia atenta às revoluções científicas que modificam, retificam, as
noções consideradas eternas e imutáveis pelo espírito pré-científico e bastante
seguro de si. Neste caso, a epistemologia bachelardiana não corresponde a uma
eterna receita para se pensar tudo, pois, como ele mesmo lembra, diferentemente
do empirismo vulgar e isolado, “o racionalismo conhece uma actividade
dialéctica que impõe uma extensão constante dos métodos.” 2 Assim, o racionalismo aplicado - atento aos
racionalismos regionais ligados as diversas disciplinas científicas - (
denotando a capacidade de diferenciação do conhecimento científico: “a hipótese
atômica em química e a hipótese atômica em microfísica não têm a mesma estrutura racional” 3) é
sempre um racionalismo aberto, um racionalismo a se fazer. E tal abertura é
altamente relacionada com o aspecto dialético da superação constitutiva do
conhecimento científico. Este tem como um de seus mais importantes elementos
constitutivos a sua própria superação.
Nesta esteira, o racionalismo que
encontramos na epistemologia bachelardiana corresponde a um racionalismo aberto
e setorial; trata-se de um racionalismo que formula mais questões do que
respostas prontas e acabadas, pois ele não está tão seguro de si mesmo. Eis um
dos aspectos importantes que diferencia o racionalismo aplicado do empirismo
isolado e vulgar, o qual “tem sempre mais respostas que perguntas. Tem resposta
para tudo.” 4
Bachelard sempre criticou a
inclinação da ingênua segurança na utilização de uma única filosofia para se
tratar do conhecimento científico, seja esta única filosofia o racionalismo
kantiano ( para citarmos um único exemplo), o empirismo, o realismo, a
fenomenologia... 5 Como ele
deixa claro: “uma só filosofia é, pois, insuficiente para dar conta de um
conhecimento preciso.” 6
Portanto, para dar conta desse conhecimento, Bachelard lembra que várias
filosofias (as quais são postas muitas vezes em violentas oposições com
capacidade de engendrar as mais diversas guerras acadêmico-ortodoxas) devem
ligar-se por um laço nada comum:
Se pudéssemos
então traduzir filosoficamente o duplo movimento que atualmente anima o
pensamento científico, aperceber-nos-íamos de que a alternância do a priori e do a posteriori é obrigatória,
que o empirismo e o racionalismo estão ligados, no pensamento científico, por
um estranho laço, tão forte como o que une o prazer à dor. Com efeito, um deles
triunfa dando razão ao outro: o empirismo precisa de ser compreendido: o
racionalismo precisa de ser aplicado. Um empirismo sem leis claras, sem leis
coordenadas, sem leis dedutivas, não pode ser pensado nem ensinado; um
racionalismo sem provas palpáveis, sem aplicação à realidade imediata não pode
convencer plenamente. O valor de uma lei empírica prova-se fazendo dela a base
de um raciocínio. Legitima-se um raciocínio fazendo dele a base de uma
experiência.7
Em outras palavras, na epistemologia
bachelardiana seria um erro se falar em ciências puramente dedutivas e ciências
apenas e tão somente indutivas. Bachelard mostra o quanto essa separação
corresponde a um obstáculo: para ele, a dicotomia entre juízos científicos
hipotéticos e juízos científicos categóricos corresponde a um obstáculo para se
conhecer as ciências. Neste caso, o que há, para Bachelard, são ciências
hipotético-dedutivas. Aqui, razão e experiência jamais são vistas como inimigas
uma da outra.
O racionalismo aplicado corresponde
a um racionalismo sempre a se fazer, nunca plenamente pronto e acabado. Quando
se pergunta a Bachelard se ele pode ser visto como um racionalista, ele
responde: “procuramos vir a sê-lo.” 8 A epistemologia bachelardiana é não-acabada,
pois está sempre antenada nas revoluções científicas e nas reformulações
realizadas nas bases do conhecimento científico por elas (as revoluções)
produzidas; ela está antenada com a “ciência em evolução” 9 Neste
caso, como ele lembra, “ a doutrina tradicional de uma razão absoluta e
imutável é apenas uma filosofia. É uma filosofia caduca.” 10
É contra o fixismo das filosofias
muito seguras de suas verdades que a epistemologia de Bachelard é construída. O
não-fixismo de tal epistemologia é uma de suas mais importantes
características, aliás, ele está altamente relacionado com o primado teórico do
erro, com a vigilância epistemológica, com a noção de razão polêmica, com o
racionalismo aplicado...
E a importância desse não-fixismo (o
fixismo tende a transformar a epistemologia em receita, em dogma sagrado) é
levado em conta inclusive por Bourdieu, Passeron e Chamboredon quando eles
integram a epistemologia bachelardiana na sociologia do conhecimento por eles
construída:
À tentação sempre
renascente de transformar os preceitos do método em receitas de conzinha
científica ou em engenhocas de laboratório, só podemos opor o treino constante
na vigilância epistemológica que, subordinando a utilização das técnicas e
conceitos a uma interrogação sobre as condições e limites de sua validade,
proíbe as facilidades de uma aplicação automática de procedimentos já
experimentados e ensina que toda operação, por mais rotineira ou rotinizada que
seja, deve ser repensada, tanto em si mesmo quanto em função do caso
particular. 11
A epistemologia bachelardiana é
não-fixista, não-dogmática: exige que o método dê provas de sua utilidade
racional, questiona-o. Ou seja, um “sucesso” jamais absoluto no emprego de
determinado método em determinada experiência não quer dizer que ele (o método)
seja absoluto: “A experiência não mais constitui o ponto de partida, nem mesmo
é simples guia, ela é um alvo.” 12
Trata-se de uma epistemologia que
jamais pode ser tomada como dogmática digna de reverência sagrada. As próprias
revoluções científicas atestam o não-fixismo dessa epistemologia: revoluções
que exigem dos epistemólogos novas epistemologias. Aliás, como ele mesmo
lembra, “o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão.” 13
Assim, o filósofo não está lidando com um conhecimento estacionado, estanque,
mas com um constante e contínuo processo de retificação.
________________
1.
BACHELARD,
Gaston. A filosofia do não. Trad. Joaquim José Moura Ramos. – São Paulo:
Abril Cultural, 1978. P. 87
2.
BACHELARD, Gaston.
O materialismo racional. Trad. João
Gama. – Lisboa: Edições 70. P. 260
3.
BACHELARD, Gaston.
Epistemologia. Trad. Nathanael C.
Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 105
4.
BACHELARD, Gaston.
Epistemologia. P. 48
5.
As insuficiências da fenomenologia para dar conta do
conhecimento científico contemporâneo são expressas por Bachelard quando, por
exemplo, ele trata da noção de corpúsculo na física contemporânea: BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Trad. Nathanael C.
Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 51-66
6.
BACHELARD,
Gaston. A filosofia do não. P. 29
7.
BACHELARD,
Gaston. A filosofia do não. P. 5
8. BACHELARD, Gaston. Essai sur la connaissance approchée.
Librairie philosophique J. Vrin: Paris, 1927. P. 10
9.
BACHELARD,
Gaston. A filosofia do não. P. 87
10. BACHELARD, Gaston. A filosofia do não. Ibid
11. BOURDIEU, Pierre;
CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João
de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 14
12. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. P. 66
13. BACHELARD, Gaston. Epistemologia. P. 15