Por Danilo José Viana da silva
“Compreende o
processo? O rastelo começa a escrever; quando o primeiro esboço de inscrição
nas costas está pronto, a camada de algodão rola, fazendo o corpo virar de lado
lentamente, a fim de dar mais espaço para o rastelo. Nesse ínterim as partes
feridas pela escrita entram em contato com o algodão, o qual, por ser um
produto de tipo especial, estanca instantaneamente o sangramento e prepara o
corpo para novo aprofundamento de escrita.”1
O habitus - enquanto um sistema de disposições para agir e para
perceber e apreciar o mundo social - é um produto de toda uma trajetória de
vida, de todo um processo de inscrição de determinados pressupostos nos corpos.
Ele (o habitus) é produto da
interiorização não consciente de determinada estrutura social.
Neste caso, a disposição escolástica
é produto de um longo processo histórico de inscrição e de esquecimento, de
negação de sua própria gênese histórica e das condições sociais de
possibilidades desse esquecimento. A disposição escolástica está ligada ao grau
de “liberdade” em relação as urgências, as necessidades econômicas e as demais
constrições relacionadas a vida ordinária.
Ainda que possa
ser vivido como algo livre e eletivo, a independência perante quaisquer
determinações vai sendo adquirida e exercida por conta de uma distância efetiva
em relação à necessidade econômica e social (estando, por conseguinte,
estreitamente vinculada à ocupação de posições privilegiadas na hierarquia
sexual e social). 2
Bom, então uma das características
mais importantes da disposição escolástica é justamente essa espécie de
retirada do mundo, de neutralização das urgências, e a ignorância ou recalque
dos pressupostos relacionados com essa disposição. E o grau dessa neutralização
e da sensação de liberdade por ela propiciada vai depender da posição ocupada
em determinado campo, bem como do sistema de distribuição não igualitária de capital cultural, simbólico, econômico...
correspondente a hierarquia entre as posições no interior dos campos e a
reprodução das relações de força que estão na base da sociedade.
Para os já familiarizados com a obra
de Bourdieu, a disposição escolástica é típica dos campos mais eruditos e
escolásticos, tais como o campo filosófico, o científico, o teológico, o
jurídico, o artístico... Neste caso, a autonomia de tais campos (os quais são
produtos históricos e do processo de neutralização das urgências, das pressões
exercidas pelas necessidades econômicas e sociais) encontra um de seus
princípios de explicação no escolástico recalque das pressões externas.
A ilusão da absoluta autonomia dos campos vem encontrar uma
de suas explicações na disposição escolástica: o esquecimento da gênese histórica
dos campos e de como ele é produto de lutas históricas, de como essa história
encontra-se objetivada nas estruturas, nas hierarquias e nas posições, por
exemplo, e a relação dialética entre essa história objetivada e a história
incorporada por um agente que ocupa ou pretende ocupar uma posição no campo.
Mas, o motivo pelo qual escrevemos
este texto superficial é justamente a disposição escolástica exigida pela
lógica de determinados campos burocráticos. A posição de recepcionista (deixando de lado, por hora, toda a importante
questão da dominação masculina e da divisão sexual do trabalho) pode ser
tomada, talvez, como um bom exemplo para entendermos o quanto essa disposição
está inscrita e é exigida tácita e/ou expressamente por determinadas instituições
e/ou empresas.
A inserção no mundo do trabalho pode
ter a aparência apenas de urgência, de uma constrição relacionada a vida
ordinária, mas até mesmo a inserção nesse mundo pode ser vista ( a depender,
por exemplo, do nível de autonomia do mercado no qual determinado agente
pretende ou ocupa uma posição, bem como desta) como uma inserção em um universo
escolástico.
A disposição
escolástica, adquirida sobretudo na experiência escolar pode perpetuar-se mesmo
quando as condições de seu exercício desapareceram quase por completo (com a
inserção no mundo do trabalho). 3
Sabe-se que os campos onde as
condições mais favoráveis às tomadas de posição escolásticas correspondem aos
campos mais eruditos. Entretanto, o afastamento, a negação das urgências, das
tristezas, dos problemas cotidianos é uma característica das exigências
impostas pelos mercados de trabalho considerados como não-eruditos. Não é por
acaso que citamos o exemplo da recepcionista, pois a lógica do mercado onde ela
ocupa uma posição exige que ela esteja “feliz”, “de bem com a vida”, “bem
humorada” para receber todos aqueles que ela recebe.
Ou seja, independentemente das
dificuldades diárias fora do ambiente de trabalho, das brigas familiares e de
diversos problemas cotidianos, ela deve demonstrar “boa aparência”. E a
submissão ou não à essa exigência vem encontrar um de seus princípios de
explicação na relação entre essa exigência, a qual é mais histórica do que
imaginamos, e a história de vida do agente relacionada a um determinado habitus de classe, o qual corresponde a
uma “forma incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela
impõe;” 4 Bourdieu
preocupou-se em investigar as condições sociais de possibilidade da aceitação,
da submissão dos dominados aos esquemas de percepção e apreciação dominantes do
mundo social. Ele levou em conta como os dominados, sem saber, contribuem para
a sua própria dominação, bem como a dificuldade de se lutar contra essa
dominação, pois ela se dá em um nível abaixo do nível da consciência.
Os trabalhadores
vivem sob esse tipo de pressão invisível e, assim, adaptam-se muito mais à sua
situação do que podemos supor. Modificar isso é muito difícil, especialmente
hoje em dia. Com o mecanismo da violência simbólica, a dominação tende a assumir
a forma de um meio de opressão mais eficaz e, nesse sentido, mais brutal. 5
E essa brutalidade e eficácia se dão
justamente pelo fato do poder simbólico corresponder a um poder invisível cuja
condição de exercício se dá em um plano abaixo da consciência: simplesmente, os
que o exercem não sabem que o exercem, e os que exercem também são dele
vítimas: “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode
ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos
ou mesmo que o exercem.” 6
E o processo e nível de inscrição
nos corpos (o que, de fato, vai depender de um habitus de classe, das condições sociais de possibilidades dessa
inscrição) da lógica do mercado é uma das características da aceitação tácita
ou expressa da relação de ajustamento ou não entre as exigências do campo e o habitus de classe de determinado agente.
A relação entre as
disposições e as posições nem sempre assume a forma do ajustamento quase
milagroso, e fadado por isso a passar
despercebido, que se observa quando os habitus são o produto de estruturas
estáveis, as mesmas nas quais eles se atualizam: nesse caso, sendo os agentes
levados a viver num mundo que não é radicalmente distinto daquele que modelou
seu habitus primário, a sintonia logo se estabelece entre a posição e as
disposições daquele que a ocupa, entre herança e o herdeiro, entre o cargo e
seu detentor. 7
A adequação entre os agentes e as posições, bem como os
esquemas de percepção e apreciação adquiridos durante um longo processo de
inculcação e inscrição escolar, é um dos
princípios de explicação da ilusio e do
efeito de concertação sem maestro ou de conluio
não voluntário que faz, por exemplo, uma instituição funcionar: é justamente a
concordância
entre o que a
história fez deles e o que ela lhes pede para fazer, concordância essa que pode
exprimir-se no sentimento de estar bem “no seu lugar”, de fazer o que se tem
que fazer, e de o fazer com gosto – no sentido objetivo e subjetivo – ou na
convicção resignada de não poder fazer outra coisa, o que também é uma maneira,
menos feliz certamente, de se sentir destinado para o que se faz. 8
Mas, a concordância nunca é total e
absoluta, até porque as relações entre as posições no interior dos campos, bem
como as relações entre os campos, não são imutáveis. As modificações, as crises
no interior dos campos frequentemente geram desacordos entre as posições e os habitus, principalmente quando estes (os
habitus) foram adquiridos,
incorporados, em um período em que a posição era, por exemplo, digna de
admiração, de prestígio... Esse desacordo é justamente um dos efeitos do
desajustamento entre as expectativas e as condições de suas realizações. “Em
conseqüência, pode ocorrer que, segundo o paradigma de Dom Quixote, as
disposições estejam em desacordo com o campo e com as “expectativas coletivas.”
9
O caso da posição de recepcionista (posição que está
relacionada com a própria lógica da divisão sexual do trabalho) corresponde a
um bem exemplo de como a negação, o recalque das urgências, dos problemas
cotidianos é visto como condição para o bom desempenho do trabalho. É a
aceitação e a incorporação de uma disposição escolástica as condições para ela
desempenhar o seu trabalho “da forma que deve ser feito” e “com gosto.” Mesmo
que isso implique “uma submissão corporal, uma submissão inconsciente, que pode
apontar para um bocado de tensão internalizada, um bocado de sofrimento
corporal.” 10
E, como Bourdieu lembrou várias
vezes, afirmar uma “tomada de consciência” como a condição para se livrar da
dominação simbólica é projetar a consciência de um intelectual em um operário,
principalmente naquele que não teve as mínimas condições de acesso ao capital
cultural para tal (diferentemente de como acontece com aqueles que tiveram
acesso a cultura dominante antes mesmo de ingressar na escola) e a inclinação
necessária para tal. Lutar contra a
dominação simbólica é algo muito mais difícil do que imaginamos, sobretudo pelo
fato da grande possibilidade de, na ilusão de estarmos combatendo-a, acabarmos
fortalecendo-a.
Foto de Pierre Bourdieu.
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1.
KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. Trad. Modesto Carone.
– São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P. 43-44
2. BOURDIEU, Pierre. Meditações
Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007.
P. 25-26
3.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 25
4. BOURDIEU, Pierre. A
Distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto
Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 97
5. BOURDIEU, Pierre e
EAGLETON, Terry. A doxa e a vida
cotidiana: uma entrevista.
In.: Um mapa da ideologia. Org.
Slavoj Zizek. Trad. Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contraponto. 1996. P. 270
6. BOURDIEU, Pierre. Sobre
o poder simbólico. In.: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz –
2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 7-8
7.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 192
8. BOURDIEU, Pierre. História
reificada e incorporada. In.: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz –
2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 87
9.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 196
10.
BOURDIEU, Pierre e EAGLETON, Terry. Op. cit. p. 277