quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Pierre Bourdieu: disposição escolástica e inserção no mundo do trabalho.








Por Danilo José Viana da silva



“Compreende o processo? O rastelo começa a escrever; quando o primeiro esboço de inscrição nas costas está pronto, a camada de algodão rola, fazendo o corpo virar de lado lentamente, a fim de dar mais espaço para o rastelo. Nesse ínterim as partes feridas pela escrita entram em contato com o algodão, o qual, por ser um produto de tipo especial, estanca instantaneamente o sangramento e prepara o corpo para novo aprofundamento de escrita.”1


            O habitus - enquanto um sistema de disposições para agir e para perceber e apreciar o mundo social - é um produto de toda uma trajetória de vida, de todo um processo de inscrição de determinados pressupostos nos corpos. Ele (o habitus) é produto da interiorização não consciente de determinada estrutura social.
            Neste caso, a disposição escolástica é produto de um longo processo histórico de inscrição e de esquecimento, de negação de sua própria gênese histórica e das condições sociais de possibilidades desse esquecimento. A disposição escolástica está ligada ao grau de “liberdade” em relação as urgências, as necessidades econômicas e as demais constrições relacionadas a vida ordinária.


                       
Ainda que possa ser vivido como algo livre e eletivo, a independência perante quaisquer determinações vai sendo adquirida e exercida por conta de uma distância efetiva em relação à necessidade econômica e social (estando, por conseguinte, estreitamente vinculada à ocupação de posições privilegiadas na hierarquia sexual e social). 2      


            Bom, então uma das características mais importantes da disposição escolástica é justamente essa espécie de retirada do mundo, de neutralização das urgências, e a ignorância ou recalque dos pressupostos relacionados com essa disposição. E o grau dessa neutralização e da sensação de liberdade por ela propiciada vai depender da posição ocupada em determinado campo, bem como do sistema de distribuição não igualitária de capital cultural, simbólico, econômico... correspondente a hierarquia entre as posições no interior dos campos e a reprodução das relações de força que estão na base da sociedade. 
            Para os já familiarizados com a obra de Bourdieu, a disposição escolástica é típica dos campos mais eruditos e escolásticos, tais como o campo filosófico, o científico, o teológico, o jurídico, o artístico... Neste caso, a autonomia de tais campos (os quais são produtos históricos e do processo de neutralização das urgências, das pressões exercidas pelas necessidades econômicas e sociais) encontra um de seus princípios de explicação no escolástico recalque das pressões externas.
A ilusão da absoluta autonomia dos campos vem encontrar uma de suas explicações na disposição escolástica: o esquecimento da gênese histórica dos campos e de como ele é produto de lutas históricas, de como essa história encontra-se objetivada nas estruturas, nas hierarquias e nas posições, por exemplo, e a relação dialética entre essa história objetivada e a história incorporada por um agente que ocupa ou pretende ocupar uma posição no campo.
            Mas, o motivo pelo qual escrevemos este texto superficial é justamente a disposição escolástica exigida pela lógica de determinados campos burocráticos. A posição de recepcionista (deixando de lado, por hora, toda a importante questão da dominação masculina e da divisão sexual do trabalho) pode ser tomada, talvez, como um bom exemplo para entendermos o quanto essa disposição está inscrita e é exigida tácita e/ou expressamente por determinadas instituições e/ou empresas.
            A inserção no mundo do trabalho pode ter a aparência apenas de urgência, de uma constrição relacionada a vida ordinária, mas até mesmo a inserção nesse mundo pode ser vista ( a depender, por exemplo, do nível de autonomia do mercado no qual determinado agente pretende ou ocupa uma posição, bem como desta) como uma inserção em um universo escolástico.



A disposição escolástica, adquirida sobretudo na experiência escolar pode perpetuar-se mesmo quando as condições de seu exercício desapareceram quase por completo (com a inserção no mundo do trabalho). 3  
    

            Sabe-se que os campos onde as condições mais favoráveis às tomadas de posição escolásticas correspondem aos campos mais eruditos. Entretanto, o afastamento, a negação das urgências, das tristezas, dos problemas cotidianos é uma característica das exigências impostas pelos mercados de trabalho considerados como não-eruditos. Não é por acaso que citamos o exemplo da recepcionista, pois a lógica do mercado onde ela ocupa uma posição exige que ela esteja “feliz”, “de bem com a vida”, “bem humorada” para receber todos aqueles que ela recebe.
            Ou seja, independentemente das dificuldades diárias fora do ambiente de trabalho, das brigas familiares e de diversos problemas cotidianos, ela deve demonstrar “boa aparência”. E a submissão ou não à essa exigência vem encontrar um de seus princípios de explicação na relação entre essa exigência, a qual é mais histórica do que imaginamos, e a história de vida do agente relacionada a um determinado habitus de classe, o qual corresponde a uma “forma incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela impõe;” 4     Bourdieu preocupou-se em investigar as condições sociais de possibilidade da aceitação, da submissão dos dominados aos esquemas de percepção e apreciação dominantes do mundo social. Ele levou em conta como os dominados, sem saber, contribuem para a sua própria dominação, bem como a dificuldade de se lutar contra essa dominação, pois ela se dá em um nível abaixo do nível da consciência.



Os trabalhadores vivem sob esse tipo de pressão invisível e, assim, adaptam-se muito mais à sua situação do que podemos supor. Modificar isso é muito difícil, especialmente hoje em dia. Com o mecanismo da violência simbólica, a dominação tende a assumir a forma de um meio de opressão mais eficaz e, nesse sentido, mais brutal. 5 


            E essa brutalidade e eficácia se dão justamente pelo fato do poder simbólico corresponder a um poder invisível cuja condição de exercício se dá em um plano abaixo da consciência: simplesmente, os que o exercem não sabem que o exercem, e os que exercem também são dele vítimas: “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” 6 
            E o processo e nível de inscrição nos corpos (o que, de fato, vai depender de um habitus de classe, das condições sociais de possibilidades dessa inscrição) da lógica do mercado é uma das características da aceitação tácita ou expressa da relação de ajustamento ou não entre as exigências do campo e o habitus de classe de determinado agente.


A relação entre as disposições e as posições nem sempre assume a forma do ajustamento quase milagroso, e  fadado por isso a passar despercebido, que se observa quando os habitus são o produto de estruturas estáveis, as mesmas nas quais eles se atualizam: nesse caso, sendo os agentes levados a viver num mundo que não é radicalmente distinto daquele que modelou seu habitus primário, a sintonia logo se estabelece entre a posição e as disposições daquele que a ocupa, entre herança e o herdeiro, entre o cargo e seu detentor. 7 


            A adequação  entre os agentes e as posições, bem como os esquemas de percepção e apreciação adquiridos durante um longo processo de inculcação e inscrição  escolar, é um dos princípios de explicação da ilusio   e do efeito de concertação sem maestro ou de conluio não voluntário que faz, por exemplo, uma instituição funcionar: é justamente a concordância



entre o que a história fez deles e o que ela lhes pede para fazer, concordância essa que pode exprimir-se no sentimento de estar bem “no seu lugar”, de fazer o que se tem que fazer, e de o fazer com gosto – no sentido objetivo e subjetivo – ou na convicção resignada de não poder fazer outra coisa, o que também é uma maneira, menos feliz certamente, de se sentir destinado para o que se faz. 8      


            Mas, a concordância nunca é total e absoluta, até porque as relações entre as posições no interior dos campos, bem como as relações entre os campos, não são imutáveis. As modificações, as crises no interior dos campos frequentemente geram desacordos entre as posições e os habitus, principalmente quando estes (os habitus) foram adquiridos, incorporados, em um período em que a posição era, por exemplo, digna de admiração, de prestígio... Esse desacordo é justamente um dos efeitos do desajustamento entre as expectativas e as condições de suas realizações. “Em conseqüência, pode ocorrer que, segundo o paradigma de Dom Quixote, as disposições estejam em desacordo com o campo e com as “expectativas coletivas.” 9
            O caso da posição de recepcionista (posição que está relacionada com a própria lógica da divisão sexual do trabalho) corresponde a um bem exemplo de como a negação, o recalque das urgências, dos problemas cotidianos é visto como condição para o bom desempenho do trabalho. É a aceitação e a incorporação de uma disposição escolástica as condições para ela desempenhar o seu trabalho “da forma que deve ser feito” e “com gosto.” Mesmo que isso implique “uma submissão corporal, uma submissão inconsciente, que pode apontar para um bocado de tensão internalizada, um bocado de sofrimento corporal.” 10 
            E, como Bourdieu lembrou várias vezes, afirmar uma “tomada de consciência” como a condição para se livrar da dominação simbólica é projetar a consciência de um intelectual em um operário, principalmente naquele que não teve as mínimas condições de acesso ao capital cultural para tal (diferentemente de como acontece com aqueles que tiveram acesso a cultura dominante antes mesmo de ingressar na escola) e a inclinação necessária para tal.  Lutar contra a dominação simbólica é algo muito mais difícil do que imaginamos, sobretudo pelo fato da grande possibilidade de, na ilusão de estarmos combatendo-a, acabarmos fortalecendo-a.






Foto de Pierre Bourdieu.


                                                           
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1.    KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. Trad. Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 1998. P. 43-44
2.  BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 25-26
3.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 25
4.  BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 97
5.  BOURDIEU, Pierre e EAGLETON, Terry. A doxa e a vida cotidiana: uma entrevista. In.: Um mapa da ideologia. Org. Slavoj Zizek. Trad. Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contraponto. 1996. P. 270
6.  BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In.:  O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 7-8
7.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 192
8.  BOURDIEU, Pierre. História reificada e incorporada. In.:  O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 87
9.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 196
10.  BOURDIEU, Pierre e EAGLETON, Terry. Op. cit. p. 277