Por Danilo José Viana da Silva
(Artigo originalmente publicado no IV Congresso ABraSd de 2013 na Faculdade de Direito do Recife)
Introdução:
A investigação a respeito das noções de
campo jurídico e de habitus precisa levar
em conta a necessidade a partir da qual Bourdieu precisou construí-las. Na
medida em que se procede dessa maneira, pode-se investigar de uma forma mais
proveitosa os obstáculos epistemológicos que as noções de campo e de habitus puderam superar, bem como o
quanto tais noções são importantes para a realização do trabalho de construção
do objeto.
O trabalho de construção do objeto
corresponde a um dos aspectos mais relevantes da e na sociologia de Pierre
Bourdieu, na medida em que tal trabalho rompe com a sociologia espontânea e com
as abdicações do empirismo e da epistemologia sensualista.
O trabalho de construção do objeto além
de romper com a ilusão do objeto isolado do conjunto de relações que o
produz, evita-se identificar as coisas da lógica com a lógica das coisas, identificação esta
que fundamenta implícita ou explicitamente a denegação do ofício de sociólogo,
denegação que, em grande parte, fundamenta a tomada espontânea do objeto já
dado e a pesquisa científica enquanto cópia do real.
1.1
Breve esclarecimento sobre a sociologia do campo jurídico
É necessário levar
em conta o fato de o texto intitulado de “A força do direito: elementos para
uma sociologia do campo jurídico” 1 conter apenas alguns elementos,
não todos, da sociologia do
campo jurídico. Noções importantes como as de capital jurídico são brevemente citadas no mencionado texto, mas as
condições sociais e históricas de produção de tal capital não são nele
esboçadas.
Deve-se lembrar
que, para Bourdieu, um dos mais importantes trabalhos do sociólogo é justamente
o trabalho de historicização e, portanto, de desnaturalização. “O que quer
dizer que, ao historicizar, a sociologia desnaturaliza, desfataliza.” 2 Bourdieu, com o trabalho de historicização,
também leva em conta o próprio trabalho de historicização do próprio processo
social de naturalização (e da amnésia de tal processo histórico) das realidades
históricas, trata-se, então, de uma dupla historicização.
A noção de capital
jurídico, (espécie de capital ao mesmo tempo simbólico e cultural) bem como tal
capital foi historicamente construído através de diversas lutas simbólicas no
decorrer da história (o que denota o fato de a eficácia desse capital depender
do passivo simbólico acumulado através das lutas históricas a partir das quais
ele se fez) é mais trabalhada por Bourdieu em outros textos, tais como em “O
novo capital” e em “Espíritos de Estado” 3
Diversos outros
elementos construídos por Bourdieu, e que podem se utilizados para a construção
de uma sociologia do campo jurídico, estão espalhados por vários trabalhos do
citado sociólogo. Todavia, neste texto, as atenções serão mais voltadas para as
noções de campo jurídico e de habitus.
1.2 Sobre a noção
de campo jurídico
Antes da realização de uma investigação
sobre a noção de campo jurídico na sociologia de Bourdieu, faz-se necessário
explicar alguns dos mais importantes
problemas a partir dos quais tal noção teve de ser construída: faz-se
necessário a explicação de
alguns obstáculos epistemológicos cuja
ruptura foi possível mediante
a construção da aludida noção.
A noção de campo além de corresponder a
um relevante instrumento de construção do objeto, (na medida em que exige que
se leve em conta o conjunto de relações, o espaço dos possíveis do qual ele é
um possível realizado) também possibilita a ruptura com dois dos mais
persistentes obstáculos epistemológicos: a
análise internalista e a
externalista. A noção de campo “serviu primeiro para indicar uma direção à
pesquisa, definida negativamente como recusa à alternativa da interpretação
interna e da explicação externa (...)” 4 Por interpretação
internalista pode-se entender a afirmação do princípio de transformação do direito (já que estamos
tratando do campo jurídico) como algo interno ao próprio direito.
O internalismo
é uma das características mais importantes da disposição escolástica, a qual
corresponde, em grande parte, a uma postura liberta das urgências, da
necessidade e das demais constrições da vida ordinária. O internalismo
corresponde a um das características
mais importantes da ilusão da absoluta autonomia de determinado campo frente as
pressões externas (pressões políticas, econômicas, etc.):
Existe uma contrapartida à autonomia
dos campos escolásticos e um custo pela ruptura social favorecida pela ruptura
econômica. Ainda que possa ser vivido como algo livre e eletivo, a
independência perante quaisquer determinações vai sendo adquirida e exercida
por conta de uma distância efetiva em relação à necessidade econômica e social.
5
A interpretação
internalista corresponde a uma das características mais importantes da
disposição escolástica na medida em que, estabelecendo o princípio de
transformação do direito como uma dinâmica interna ao próprio direito, reproduz
a ilusão do campo jurídico como um espaço absolutamente autônomo frente as
pressões econômicas e sociais, frente as demais constrições da vida ordinária.
O internalismo é reproduzido pelos
juristas na medida em que contam a história do direito como um desenrolar
interno dos conceitos jurídicos:
A ciência jurídica
tal como a concebem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que
identificam a história do direito com a história do desenvolvimento interno do
seus conceitos e dos seus métodos apreende o direito como um sistema fechado e
autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua dinâmica
interna.6
A disposição escolástica (enquanto disposição
para agir e perceber o mundo de determinada maneira) é caracterizada pela
ilusão da absoluta autonomia frente as pressões externas:
A reivindicação da
autonomia absoluta do pensamento e da acção jurídicos afirma-se na constituição
em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente liberto do peso
social, e a tentativa de Kelsen para criar uma <<teoria pura do
direito>> não passa do limite ultra-consequente de esforço de todo o
corpo dos juristas para construir um corpo dos juristas para construir um corpo
de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das
pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento. 7
Em outras palavras, para Bourdieu, o
que Kelsen realiza é a ilusão da análise
internalista, segundo a qual o princípio de transformação do direito
estaria nele mesmo, ou seja, as produções do direito seriam explicadas por um
processo de produção que se daria do vértice à base da pirâmide normativa, e da
base para o vértice seria explicado o processo de execução das normas
jurídicas. Todo o processo de produção do direito estaria nele mesmo e seria
explicado por ele mesmo independentemente de qualquer constrição política,
econômica, social, etc.
Essa análise (a análise internalista
que Kelsen realiza ao desenvolver a sua teoria pura) corresponde a um dos mais
expressivos exemplos da razão escolástica no direito, na medida em que ela (a
teoria pura) é caracterizada pela denegação das urgências, das constrições econômicas,
políticas e sociais que são bastante
comuns na vida ordinária. E é justamente essa denegação das constrições
externas uma das características mais marcantes da razão escolástica, na
sociologia de Bourdieu.
O conhecimento
puro é o conhecimento que contém apenas a forma a partir da qual o objeto
(neste caso, o direito) é conhecido. E é dessa máxima kantiana que Kelsen
procede no desenvolvimento de sua teoria pura, onde a dicotomia entre teoria e
prática encontra-se travestida pela velha divisão entre o conhecimento puro e o
conhecimento sensível, aplicado. A construção de uma teoria pura possibilita a
reprodução da ilusão de liberdade perante as constrições econômicas e sociais.
A afirmação do
princípio de transformação do direito enquanto uma dinâmica interna tem como um
de seus efeitos a denegação das constrições externas e a reprodução da ilusão
do campo jurídico como um microcosmo
social absolutamente autônomo.
O segundo
obstáculo epistemológico corresponde justamente ao extremo oposto, ou seja, ao externalismo. Por externalismo ou
explicação apenas e tão somente externa deve-se entender a afirmação do direito
como uma mera superestrutura efeito da infraestrutura econômica. Tal obstáculo
é mais frequentemente cometido pelas análises marxistas do direito.
Neste caso, quando a ciência jurídica
não reproduz a análise internalista, “é para se ver no direito e na
jurisprudência um reflexo direto das
relações de força existentes, em que se exprimem as determinações dos
dominantes (...)” 8 O
externalismo explica as transformações do direito como apenas efeitos de um curto-circuito. Neste sentido, as
regras específicas que regulamentam as relações no interior do campo jurídico
praticamente não existiriam: o direito seria fruto de um reflexo direto das
pressões econômicas e não teria nenhuma autonomia, nenhuma característica
diferenciadora.
É justamente para romper com estes dois
obstáculos epistemológicos, assim como para romper com tal dicotomia
(interno/externo) que a noção de campo jurídico, enquanto um microcosmo social relativamente autônomo (não
absolutamente), é construído. Por campo jurídico deve-se entender o seguinte:
O campo jurídico é
o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer
dizer, a boa distribuição (nomos) ou
a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência
ao mesmo tempo
social e técnica que
consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de
maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo
social. É com esta condição que se podem dar as razões quer da autonomia
relativa do direito, quer do efeito propriamente simbólico de desconhecimento,
que resulta da sua autonomia absoluta em relação às pressões externas. 9
O campo jurídico,
bem como os demais, corresponde a uma estrutura de relações de força, a um
microcosmo social relativamente autônomo. Com isso, Bourdieu considera o
capital específico (em nosso caso, o capital jurídico) de determinado campo
“como fator explicativo das práticas” 10 que ocorrem em seu
interior; a noção de campo também leva em conta os efeitos externos que o campo
jurídico sofre juntamente com os efeitos externos que ele engendra como, por
exemplo, os efeitos de conservação e de reprodução da ordem social e simbólica.
Em outras palavras, a noção de campo possibilita se levar em conta tanto a
lógica interna específica do campo, quanto os efeitos externos que o campo
sofre.
Quando
Bourdieu leva em conta as regras específicas do jogo no interior do campo
jurídico ele está também chamando atenção para a parcela de autonomia que tal
campo conseguiu conquistar como um passivo adquirido através das lutas
históricas. Ou seja, o capital jurídico e o campo jurídico correspondem a
construções históricas:
Apoiando-se sobre os interesses específicos dos juristas
(exemplo típico de interesse pelo universal), vinculados ao Estado e que, como
veremos, criam todo tipo de teorias legitimadoras, de acordo com as quais o rei
representa o interesse comum e deve a todos segurança e justiça, a realeza
restringe a competência das jurisdições feudais (e faz o mesmo com as
jurisdições eclesiásticas: limitando, por exemplo, o direito de asilo da
Igreja). O processo de concentração do
capital jurídico acompanha o processo de diferenciação
que resulta na constituição de um campo jurídico autônomo. 11
A construção do campo jurídico é inseparável
do processo histórico de produção do capital jurídico pelo corpo de juristas,
os quais construíram o universal necessário à constituição do Estado, e este,
por sua vez, foi necessário para que os juristas fossem constituídos
por eles mesmos como tais, ou seja, como juristas, como homens de Estado, como parte da
nobreza de Estado. Em outras palavras,
é preciso analisar
a gênese e a estrutura desse universo de agentes do Estado, particularmente os
juristas, que se constituíram em nobreza de Estado ao instituí-lo e,
especialmente, ao produzir o discurso performativo sobre o Estado que, sob a aparência de dizer o que
ele é, fez o Estado ao dizer o que ele deveria ser (...) 12
Bourdieu leva em conta os interesses
particulares desses agentes estatais (os juristas) – tendo e vista o fato de
uma das características mais importantes do poder simbólico corresponder
justamente ao fato dela está apoiada no efeito de universalização de uma visão
de mundo particular – e como eles universalizaram tais interesses particulares
mediante todo um trabalho social de racionalização e de construção do mundo
social, conforme atesta a eficácia do caráter performativo (na medida em que
faz existir aquilo que é enunciado e em conformidade com o enunciado da palavra
pública) da retórica posta em prática pelos juristas. O próprio efeito
performativo tem como pressuposto a crença na autoridade da palavra autorizada,
cuja eficácia se explica, em grande parte, pela magia social (a qual é ignorada
como tal) fundada no universal que foi historicamente construído fora da ordem
do cálculo.
A visão do Estado corresponde a um
universal historicamente construído e ignorado como tal. E os juristas tiveram
um importante papel no processo histórico de construção do universal mediante o
longo processo de construção social e de codificação das
categorias
oficiais, de acordo com as quais são estruturadas tanto as populações quanto os
espíritos, é o Estado, através de todo um trabalho de codificação que combina
efeitos econômicos e sociais bem concretos (como as alocações familiares),
visando privilegiar uma certa forma de organização e encorajar, por todos os
meios, materiais e simbólicos, o “conformismo lógico” e o “conformismo moral”,
como adesão a um sistema de formas de apreensão e de construção do mundo, do
qual essa forma de organização, essa categoria, é sem dúvida o ponto central. 13
O que também equivale a levar não
apenas em conta o trabalho social e histórico de construção (abaixo do nível da
consciência) do universal mediante um
longo processo de racionalização e de construção do mundo mediante a
palavra autorizada, mas também o próprio
trabalho social e histórico de dissimulação não consciente de tal trabalho e
como ele engendra o efeito de amnésia da própria gênese histórica e social da
própria construção do universal e da eficácia simbólica dos atos Estatais. (tais
como os efeitos dos diplomas universitários, verdadeiros títulos de nobreza
cultural oficializados pelo Estado, os quais possuem o efeito de atribuir uma
espécie de novo estatuto ontológico àqueles que os possuem). Como ele mesmo
lembra, “a gênese implica a amnésia da gênese (...)” 14
A noção de campo
jurídico, além de possibilitar a ruptura com os obstáculos representados pelas
interpretações internalistas (internalismo) e pelas explicações externalistas
(externalismo), também corresponde a um relevante instrumento de construção do
objeto, na medida em que exige que se pensem as relações de força sem as quais
o objeto nem mesmo chegaria a existir, ou melhor, ele corresponde a uma
exigência do pensamento relacional que encontramos na sociologia de Bourdieu.
A noção de campo
é, em certo sentido, uma estenografia conceptual de um modo de construção do
objeto que vai comandar - ou orientar –
todas as opções práticas da pesquisa. Ela funciona como um sinal que lembra o
que há que fazer, a saber, verificar que o objeto em questão não está isolado
de um conjunto de relações de que retira o essencial das suas propriedades. 15
Na medida em que o campo corresponde a uma
estrutura de relações teoricamente construída onde agentes investidos de
determinada competência (o capital jurídico, em nosso caso) praticam
determinado jogo onde lutam para conservar ou transformar a estrutura de
distribuição de determinados capitais em determinado campo. Ele também
corresponde a uma exigência do pensamento relacional: é preciso pensar os
diferentes microcosmos sociais, bem como as suas próprias relações com outros,
em termos de relações diferenciais de tomadas de posição e o potencial de ganho
que tais tomadas podem representar em determinado período de tempo
Neste caso, a construção do objeto,
segundo Bourdieu, jamais pode deixar de lado todo um conjunto de relações em
que tal objeto foi produzido e adquiriu determinadas propriedades. Ele leva em
conta tanto as relações entre as posições estruturadas no interior de
determinado campo (tratando-se do campo jurídico, poderíamos citar os exemplos
das posições de Juiz, de Promotor, de advogado, professor de direito...) quanto
as relações entre os diferentes campos, tais como as relações entre o campo
jurídico e o campo político, para citar apenas um exemplo.
A construção do objeto corresponde a
uma das mais importantes exigências contra a sociologia espontânea na medida em
que está apoiada na recusa da passividade requerida por aquilo que Bachelard
chama de empirismo vulgar. Assim, “é preciso que o pensamento construtivo
reconheça sua própria necessidade.” 16 Na medida em que o sociólogo se priva do
trabalho de construção do objeto ele estará facilmente sujeito a ratificar os
conhecimentos mais elementares do cotidiano, tais como a
necessidade de
sentir o objeto, esse apetite dos objetos, essa curiosidade indeterminada não
correspondem ainda – sob pretexto algum -
a um estado de espírito científico. Se uma paisagem é estado de espírito
romântico, uma porção de ouro é espírito de avareza, a luz será estado de
espírito em êxtase. 17
O próprio Durkheim, como lembra Marcel
Mauss, lembrava a necessidade de se construir um objeto provisório como instrumento de ruptura com as prenoções
típicas da sociologia espontânea. 18
É justamente a necessidade de se construir o objeto de forma controlada que possibilita uma
ruptura com o empirismo que toma o resultado da pesquisa como copia do real,
que toma um fato como já dado e pronto onde “não é preciso compreendê-lo, basta
vê-lo.” 19
A noção de campo, ao
corresponder também a uma ferramenta para a construção do objeto como um caso particular do possível, jamais
deixa de lado o sistema de relações sem o qual ele não existiria como tal. A
noção de campo possibilita uma verdadeira ruptura com aquilo que Bachelard
denomina de experiência primeira. Lembrando que
o sociólogo
nunca conseguirá acabar com a sociologia
espontânea e deve se impor uma polêmica incessante contra as evidências
ofuscantes que proporcionam, sem grandes esforços, a ilusão do saber imediato e
de sua riqueza insuperável. 20
Um dos motivos pelos quais a sociologia
espontânea retira sua “riqueza insuperável” vem encontrar uma de suas mais
consistentes explicações no fato de ela nada mais fazer do que ratificar com um
rótulo de cientificidade as prenoções do senso comum capazes de inspirar as
mais diversas inclinações, tal como a de que cada um também é um pouco
sociólogo.
No interior de
determinado campo o agente investido de determinada competência jamais pode ser
tomado isoladamente, pois a posição que ele ocupa no interior do campo nada
seria sem as relações que a produziram e sem o espaço diferencial que constitui
a estrutura do campo. Assim, a noção de campo possibilita a ruptura com a
ilusão do objeto isolado e delimitado, retirado de seu espaço de relações sem o
qual ele nada seria.
1.3 Sobre
a noção de habitus
Como lembra Bourdieu, o “habitus é ao mesmo tempo um sistema de
esquemas de produção de práticas e um sistema de esquemas de percepção e
apreciação das práticas.”21 O habitus
é fruto de toda uma trajetória social mediante a qual determinados esquemas
de percepção e apreciação do mundo social foram inculcados abaixo do
nível da consciência.
Isso equivale a
pensar o habitus como uma disposição
para agir relacionada aos efeitos de determinados constrangimentos relativos a
uma determinada estrutura social, de uma determinada classe. Neste sentido, o habitus corresponde também a uma “forma
incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ele impõe; (...)” 22 ele corresponde a um efeito durável de todo
um processo de inscrição de determinados
pressupostos nos corpos, um efeito da interiorização de uma determinada
estrutura social e de uma determinada condição de classe. Assim, tal noção
corresponde a um princípio unificador de toda uma trajetória ao mesmo tempo
individual e social. Bem como a um principio gerador de práticas e de esquemas
de percepção que são acionados em determinadas circunstâncias.
A noção de habitus possibilita a ruptura com a
dicotomia entre indivíduo/sociedade 23 na medida em que ele diz
respeito a incorporação de determinada estrutura social. A “noção de habitus exprime sobretudo a recusa a
toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da
consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo,
etc.” 24
As práticas
engendradas por determinado habitus vêm
encontrar as suas explicações em
uma dimensão abaixo do nível da
consciência ou da inconsciência. Tais práticas estão orientadas pelo sentido do
jogo, onde há tanto uma parcela de indeterminação, portanto, de incerteza,
quanto de determinação que possibilita àquele que já incorporou o sentido do
jogo antecipar determinadas jogadas de forma razoável. A noção de
habitus
também está relacionada a necessidade de se pensar a lógica da prática, a
qual não corresponde a uma lógica plenamente consciente e racionalmente
orientada para determinado fim.
Tal lógica da prática que a noção em
estudo possibilita se pensar rompe com o determinismo mecânico que toma os
agentes como meros efeitos das estruturas. Tal noção (a de habitus) permite
compreender a
lógica de todas as ações que são razoáveis sem ser produto de um plano
razoável; habitadas por uma espécie de finalidade objetiva sem serem
conscientemente organizadas em relação a um fim explicitamente constituído;
inteligíveis e coerentes sem serem originárias de uma intenção de coerência e
de uma decisão deliberada; ajustadas ao futuro sem ser o produto de um projeto
ou de um plano. 25
A noção de habitus leva em conta tanto e ao mesmo tempo a história coletiva de
determinada estrutura social onde determinado agente pretende ou ocupa uma
posição, quanto a historia individual de um agente. Neste caso, Bourdieu pensa
o habitus enquanto aquilo que medeia
a relação entre a história objetivada nas estruturas objetivas, nas estruturas
de relações, quanto a história incorporada em determinado agente.
O campo jurídico não nasceu do nada,
ele é produto de toda uma história de lutas simbólicas, como já se denotou
aqui. Pensar em campo jurídico é também pensar em uma historia objetivada na
estrutura de relações entre posições. E, como tal, determinado campo exige
determinada competência (o capital jurídico, em nosso caso) para poder jogar o
seu jogo com certa margem de sucesso, bem como também exige determinado habitus de classe condizentes com uma
postura global e com o universal manuseado através de uma retórica da
neutralidade ( o que também está relacionado a determinada hexis corporal que corresponde a um efeito da incorporação de
determinadas crenças amortecidas). E é justamente esse conjunto de propriedades
que fundamenta o desvio entre a visão de mundo dos juristas e dos profanos.
Este desvio, que é
fundamento de um desapossamento, resulta do facto de, através da própria
estrutura do campo e do sistema de princípios de visão e de divisão que está
inscrito na sua lei fundamental, na sua constituição, se impor um sistema de
exigências cujo coração é a adoção de uma postura global, visível sobretudo em
matéria de linguagem. 26
O ethos exigido
pelas instituições judiciais corresponde ao ethos
de determinada classe, o que possibilita um durável efeito de concertação
sem maestro ou de conluio involuntário entre aqueles cujas visões de mundo e os
interesses são, em grade parte, equivalentes.
A proximidade dos
interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus,
ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o
parentesco das visões do mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve
fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes
ou antagônicas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal
modo o etos dos agentes jurídicos que
está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados
tanto para os justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses,
aos valores e à visão do mundo dos dominantes. 27
O habitus
possibilita se pensar a relação entre estruturas mentais decorrente de toda
uma trajetória de vida (estruturas estruturadas) e as estruturas sociais
produtos de toda uma história coletiva (estruturas estruturantes), e como uma
reproduz a outra. É justamente essa relação que possibilitou Bourdieu romper
com a dicotomia entre subjetivismo e objetivismo, pois esse círculo de
reprodução social leva em conta a necessária relação entre as estruturas
subjetivas (produtos da imposição e da incorporação de determinada estrutura
social) como as estruturas objetivas (conservadas, reativadas ou transformadas
pelas estruturas mentais – subjetivas – que elas – as estruturas objetivas –
produziram mediante um longo e durável processo de imposição de determinados
esquemas de percepção e apreciação nas mentes.
E dessa relação entre esquemas mentais
e estruturas objetivas (e como uma reproduz a outra) é possível se pensar o
encontro entre duas histórias: a história incorporada por um agente e a
história objetivada nas estruturas e nas posições. A partir dessa relação é
possível se pensar um efeito de homologia entre, por exemplo, o campo jurídico
e o campo do poder, e afirmar o quanto as lutas simbólicas no interior do
respectivo campo estão relacionadas as relações de força entre diferentes
classes sociais: tais relações estão presentes de forma sublimada – eis um dos
efeitos do processo de racionalização e codificação das relações de força – nas
lutas simbólicas entre as diferentes disciplinas jurídicas, por exemplo.
As relações entre a história objetivada
em determinado campo e a história incorporada por determinado agente são
mediadas pelo habitus: neste caso, o agente, a depender dos
esquemas de percepção e apreciação por ele adquirido e relacionado a
determinada classe, poderá aceitar mais passivamente ou não o ethos exigido pelo campo jurídico
enquanto uma estrutura de relações que possui uma história. As relações entre
essas duas histórias não é mecânica, pois há uma dialética entre estas duas
histórias (as relações de subversão que visam transformar o sistema de
distribuição vigente em determinado campo correspondem a bons exemplos). É
justamente aí onde Bourdieu não reproduz um dos maiores erros do
estruturalismo, o qual consistiu em tomar os agentes como meros epifenômenos da estruturas sociais.
os efeitos da
dialéctica entre as propensões inscritas nos habitus e nas exigências implicadas na definição do posto não são
menores, embora sejam menos aparentes, nos sectores mais regulados e rígidos da
estrutura social, como as profissões mais antigas e as mais codificadas da
função pública. É assim que algumas das características mais marcadas da
conduta dos pequenos funcionários, quer se trata da tendência para o
formalismo, feiticismo da pontualidade ou da rigidez em relação ao regulamento,
ao invés de ser produto mecânico da organização burocrática, são a
manifestação, na lógica de uma situação
particularmente favorável à sua passagem ao acto, de um sistema de atitudes
que se manifesta também fora da situação burocrática e que bastaria para predispor os membros da pequena burguesia às virtudes
exigias pela ordem burocrática e enaltecidas pela ideologia do << serviço
público >>, probidade, minúcia, rigorismo e propensão para a indignação
moral. 28
Conclusão:
As noções de campo jurídico e de habitus são bastante relevantes para se
compreender a relação entre as estruturas objetivas e as estruturas mentais, ou
seja, subjetivas, e como uma tende a reproduzir a outra. Os próprios atos de
transformação no interior dos campos jamais são totalmente libertos dos limites
imanentes a determinado campo, pois este também corresponde a um espaço de
possíveis objetivados a partir dos quais há a possibilidade do agente que já incorporou o sentido do jogo
antever de forma “razoável” (jamais
plenamente racional) algumas jogadas.
Neste sentido, os atos de transformação também ajudam a conservar o campo,
muitas vezes os atos transformadores são efeitos do próprio amor pelo jogo, da
própria preocupação com ele, de que vale a pena jogá-lo. Eis a pertinência da analogia com o jogo
frequentemente feita por Bourdieu.
O habitus permite se pensar o quanto um
lance em determinado jogo corresponde a um exemplo do passado reativado no
presente (na medida em que denota, no ato presente, a ativação do senso do jogo
incorporado durante toda uma trajetória feita a partir, no e pelo jogo), bem
como esse passado reativado no presente está relacionado ao por vir, ao momento oportuno.
Na medida em que o campo jurídico
corresponde a um produto histórico (a necessidade de historicizar, na sociologia
de Bourdieu, está relacionada com o necessário trabalho de desnaturalização,
pois o natural é justamente aquilo que não pode ser questionado, aquilo cuja
legitimidade jamais pode ser posta em xeque) e que o agente que em tal campo
ocupa ou pretende ocupar uma posição (a de juiz, de promotor, de advogado, de
professor de direito, etc.) também possui toda uma trajetória de vida a partir da qual determinados pressupostos
foram nele inscritos, é levar em conta o fato de que pensar a relação entre
determinada estrutura de relações e determinado agente corresponde também a
pensar no encontro entre duas histórias.
Mostrou-se o quanto a noção de campo
jurídico corresponde tanto a um importante instrumento a partir do qual
Bourdieu pôde romper com dois dos mais persistentes obstáculos epistemológicos
reproduzidos pela ciência jurídica (a interpretação internalista) e pelos
críticos do direito (como a explicação externalista levada a cabo por toda uma
gama de teorias marxistas do direito, incluindo o estruturalismo de Althusser).
Pois, afinal, tal
noção possibilita se pensar as regras internas do campo sem ignorar as pressões
externas que ele (o campo) sofre e exerce. Bem como o quanto a noção de campo
corresponde a um relevante instrumento de construção do objeto, pois exige que
se pense em termos de relações: possibilitando também a potencializarão do
próprio raciocínio analógico entre os campos, e o quanto tal raciocínio pode
ajudar a compreender e a explicar algumas lógicas análogas presentes em
diferentes campos, levando em conta as suas especificidades.
Tentou-se denotar
o quanto a noção de habitus é
relevante para se romper a dicotomia entre indivíduo/sociedade, pois pensar em
agente também corresponde a pensar uma determinada estrutura social que
tacitamente ou não impôs determinados pressupostos possibilitando a
constituição e a incorporação abaixo do nível da consciência de um sistema de
esquemas gerador de práticas e de esquemas de percepção e apreciação do mundo
social.
____________________________________________
1.
Este texto pode
ser encontrado em BOURDIEU, Pierre. O
poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P.
209-254.
- BOURDIEU,
Pierre. Fieldwork in Philosophy. In.:
Coisas Ditas. Trad. Cássia R.
da Silveira e Denise Moreno Pegorim.
– São Paulo: Brasiliense, 2004. P. 27
- Tais textos
podem ser encontrados em BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa –
Campinas, SP. Papirus. 1996, Nas P. 35 e P. 91 respectivamente.
- BOURDIEU,
Pierre. A gênese dos conceitos. in.:
O poder simbólico. P. 64
5. BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio
Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. P. 25-26
6. BOURDIEU, Pierre. A
força do direito. In.: O poder simbólico. P. 209
- BOURDIEU,
Pierre. A força do direito. Ibid.
- BOURDIEU,
Pierre. A força do direito. In.:
Op. Cit. P. 210
9.
BOURDIEU, Pierre. A
força do direito. In.: Op. Cit. P.
212
- BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do
julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. –
Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 107
11.
BOURDIEU, Pierre. Espíritos
de Estado: gênese e estrutura do
campo burocrático. In. Razões Práticas: Sobre
a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996. P. 109
- BOURDIEU,
Pierre. Espíritos de Estado. In.
Op. Cit. P. 121
- BOURDIEU,
Pierre. Espíritos de Estado. In.
Op. Cit. P. 134
- BOURDIEU,
Pierre. O senso prático. Trad.
Maria Ferreira. 2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. P. 83
15.
BOURDIEU, Pierre. Introdução a uma sociologia
reflexiva. In,: O poder simbólico.
P. 27
16.
BACHELARD, Gaston.
Epistemologia. Trad. Nathanael C.
Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 36
17. BACHELARD,
Gaston. Op. Cit. P. 116
18.
A problemática
referente a necessidade de uma definição provisória do objeto como instrumento
de ruptura com as prenoções do senso comum pode ser encontrada em MAUSS,
Marcel. A prece, in.: Ensaios de sociologia. Trad. Luiz João
Gaio e J. Guinsburg, Editora Perspectiva – SP, 1981. P. 250-253, 263-264
19
BACHELARD, Gaston. Op.
Cit. P. 37
20
BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON,
Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na
sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007. P. 23
21
BOURDIEU, Pierre. Espaço
social e poder simbólico. In.: Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da
Silveira e Denise Moreno Pegorim. – São
Paulo: Brasiliense, 2004. P. 158
22
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do
julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto
Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 97
23
Muito embora Norbert Elias, em 1939, também
tenha rompido com tal dicotomia em A
sociedade dos indivíduos, foi somente com a sociologia reflexiva de Pierre
Bourdieu que foi possível a construção de uma noção (a noção de habitus) que leve em conta também os
efeitos da dominação simbólica relacionados as relações entre os mais
diferentes habitus, por exemplo.
24
BOURDIEU, Pierre. A gênese dos conceitos. In,:
O poder simbólico. P. 60
25
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Trad. Maria Ferreira.
2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. P. 85
26
BOURDIEU, Pierre. A
força do direito. In.: Op. Cit. P.
226
27
BOURDIEU, Pierre. A
força do direito. In.: Op. Cit. P.
242
28
BOURDIEU, Pierre. História
reificada e incorporada. In.: O
poder simbólico. P. 93
Referências:
BACHELARD, Gaston.
Epistemologia. Trad. Nathanael C.
Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983.
BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na
sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do
julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto
Alegre, RS: Zouk, 2011.
______. Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da
Silveira e Denise Moreno Pegorim. – São
Paulo: Brasiliense, 2004.
______. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio
Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007.
______. O senso prático. Trad. Maria Ferreira.
2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
______. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz
– 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998
______. Razões Práticas: Sobre a teoria da
ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996.
MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. Trad. Luiz João
Gaio e J. Guinsburg, Editora Perspectiva – SP, 1981.