quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Efeitos de homologia


Por Danilo José Viana da Silva



Um dos consideráveis indícios de como o capital jurídico em seu estado objetivado em suportes materiais (o que quer dizer que a sua percepção é tributária de determinadas categorias cognitivas de construção do mundo – o capital jurídico em sua forma incorporada -  a partir das quais os objetos podem significar algo em contraposição a insignificância) tende a exercer um efeito de transfiguração das lutas de classe entre dominantes e dominados corresponde ao contraste entre o estado de determinados núcleos da Defensoria Pública estadual e o mármore opulento dos escritórios de advocacia especializados em direito empresarial.













É nesse aspecto que se pode sustentar uma relação de homologia entre as relações entre dominantes e dominados no espaço social com as relações entre as disciplinas jurídicas, as instituições do campo jurídico e as relações de oferta e demanda de determinados serviços jurídicos e o quanto eles podem estar direcionados aos interesses de determinadas categorias de clientes.

Um dos efeitos simbólicos do direito consiste justamente em sua capacidade de, a partir de sua lógica própria, retraduzir as relações de força econômicas e políticas que exercem efeitos nas relações de concorrência reguladas no campo jurídico. As mais diversas relações entre oferta e procura de determinados serviços jurídicos correspondem a exemplos consideráveis de como as lutas de classe existem em formas eufemizadas pelo trabalho de formalização jurídica.

No caso das imagens, tratando-se de uma instituição incumbida da defesa dos direitos dos considerados juridicamente como hipossuficientes e de um escritório especializado na defesa dos direitos e demandas dos dominantes economicamente, as relações entre as ofertas de determinados serviços jurídicos e determinadas categorias de clientes tende a exercer um efeito de homologia entre as relações no campo jurídico e as lutas de classe no espaço social. A oferta de determinados produtos e serviços jurídicos está relacionada com os interesses de determinadas categorias de clientes e as posições que eles ocupam no espaço social.

É assim que, como lembra Bourdieu, “à procura jurídica deve ser imputada menos a transações conscientes do que a mecanismos estruturais tais como a homologia entre as diferentes categorias de produtores ou vendedores de serviços jurídicos e as diferentes categorias de clientes.” (BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: O poder simbólico. P. 251). 

À medida que o campo jurídico possui uma fraca autonomia que se traduz em sua pouca capacidade de retraduzir, mediante a sua lógica própria, as pressões do mundo econômico e político, ele pode desempenhar um papel relevante para reproduzir a ordem simbólica e social.                              


segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Sobre a vulgata planetária do governo anti-pobre





Por Danilo José Viana da Silva




Um dos termos mais característicos da vulgata global neoliberal de desmonte dos programas sociais é “Flexibilização”. Ele corresponde a um indicador das tomadas de posição no campo político dos mais variados governos que adotam, com a ajuda de toda uma rede interligada de agentes que se apresentam com a bandeira da “novidade”, um projeto de precarização do trabalho. Através da considerável flacidez desses termos, os projetos mais nefastos para toda a classe de trabalhadores assalariados podem ser eufemizados e adocicados de acordo com uma vulgada global. 

São  “termos isolados e aparentemente técnicos como ‘flexibilité’ [flexibilização] (...) que, por encapsularem e silenciosamente comunicarem toda uma filosofia de organização individual e social, adaptam-se bem a funcionar como verdadeiras senhas e lemas políticos (nesse caso, a necessidade de redução e difamação do Estado, a redução da proteção social e a aceitação da difusão do trabalho assalariado precário como um destino, ou melhor, uma benção).” (BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. A astúcia da razão imperialista. In.: O mistério do ministério. Ed. Revan. P. 211-212) 

Eles funcionam como parte da Meca simbólica a partir da qual o projeto de imposição do trabalho precário pode ser implementado docemente; eles correspondem, assim como os termos “simplificação do direito do trabalho”, a verdadeiros chavões que dissimulam, ainda que mal, todo esse projeto de política cuja remodelação do Estado está baseada em uma política de endurecimento da legislação penal e policial (juntamente com as investidas bélicas do atual Ministro da Justiça que já sinalizou a necessidade de se investir menos em “pesquisa e mais em armas”), com a precarização do trabalho, com a redução dos investimentos em educação (com sinalização do atual Ministério da Educação de cortes de cerca de 45% dos investimentos direcionados as Universidades Federais e com a suspensão de várias bolsas de estudo tanto do PIBIC quanto de Mestrado e Doutorado, juntamente com a mais recente sinalização do atual governo no sentido de suspender  políticas que visavam reduzir os índices de analfabetismo).

 Tudo isso muito bem recheado com os mais diversos escândalos que,  decorrentes dos mais diversos vazamentos que frequentemente pipocam nas mídias virtuais e televisivas onde conversas entre um senador e ex-ministro com o ex-presidente da Transpetro,  apontam claramente que esse acordo travestido de Impeachment entre os mais diversos regentes dos mundos econômico, midiático, jurídico e político visa  ( além da realização dos seus próprios interesses custe o que custar)  o “estancamento da Sangria”, como fala um dos interlocutores, representada pelas investigações e divulgações dos esquemas de corrupção dos personagens do Congresso Nacional. Essa reconfiguração do campo do poder nada tem a opor a um verdadeiro projeto que tende a contribuir para a intensificação da insegurança objetiva e subjetiva das camadas mais pobres. 

Com a imposição de uma imagem do assalariado como um empresário dinâmico de suas próprias conquistas, verdadeira versão self made man à brasileira. Trata-se de um projeto que ataca amplamente os setores, ainda que fragilizados, das políticas de proteção social. São tempos nada engraçados. De fato, “não há motivos para rir”, como diz Bourdieu a Günter Grass em um debate sobre “a invasão conservadora.”                        


terça-feira, 16 de agosto de 2016

Maupeou e os juristas





Por Danilo José Viana da Silva



No prelúdio da Revolução, um dos parlamentares franceses que acabou gerando um considerável desconforto para os juristas foi René de Maupeou. Em um momento onde coexistiam dois princípios opostos de transmissão dos privilégios, quais sejam, o “princípio hereditário” e o “princípio baseado no mérito”, no capital cultural, e regulado pelo direito, uma das contradições dos juristas corresponde ao fato de terem sustentado a necessidade de instauração do princípio meritocrático no que diz respeito a distribuição dos ofícios e dos privilégios nobiliárquicos, entretanto no que concerne aos seus próprios privilégios eles se posicionavam ao lado do principio dinástico, ou seja, do princípio da hereditariedade. 

Como lembra Bourdieu a respeito, “como detentores de um capital cultural que os opõe aos nobres, os juristas estão do lado do mérito, do lado do que foi adquirido, por oposição ao inato, ao dom etc. ; no entanto, começam a pensar em suas aquisições como uma espécie de inato devendo ser transmitido e, portanto, já estão numa contradição.” (BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. Companhia das Letras. 2014. P. 419) E o grande desconforto que Maupeou criou para os juristas foi querer aplicar, com sua reforma, “um princípio não dinástico para os juristas que eram críticos do poder dinástico, o que desencadeou uma revolta da nobreza de toga.” (BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. P. 420). 

Os juristas (na medida em que estavam do lado do procedimento baseado no mérito e no adquirido em oposição ao inato e ao sangue no que diz respeito a forma de distribuição dos cargos e dos privilégios, mas ao se tratar dos seus próprios privilégios eles se posicionavam ao lado da hereditariedade, do inato) acabaram ocupando uma posição contraditória e ambígua, posicionando-se ao lado do poder dinástico como forma de reprodução da distribuição de seus privilégios, mas contra o poder dinástico e a favor do mérito e do adquirido de acordo com a razão jurídica que eles contribuíram para construir em se tratando da forma de distribuição de privilégios que não são os seus. Para garantir os seus interesses se posicionavam ao lado do poder dinástico e a favor do rei, mas quando não era para garanti-los posicionavam-se ao lado do direito e da razão de Estado.                  



domingo, 14 de agosto de 2016

Sobre Direito e violência simbólica









Imagem do quadro "Les Gens de Justice" de Honoré Daumier.



Por Danilo José Viana da Silva



           Uma das características do exercício da violência simbólica é o fato de ela se exercer com a cumplicidade, em grande medida inconsciente, daqueles que a ela estão sujeitos; ou, nas palavras de Bourdieu, ela se caracteriza pelo fato de ela “não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto maior quanto mais inconsciente, e até mesmo mais sutilmente extorquida – daqueles que a suportam.”(BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: O poder simbólico. Ed. Bertrand Brasil. 1998. P. 243). 


          E quando se trata do efeito de violência simbólica para o qual o direito contribui (não apenas como um efeito de sua linguagem característica que tende a contribuir para excluir os profanos das lutas reguladas pelo direito, mas também por uma hexis corporal específica, um modo específico de se vestir que pode ser tomado como uma extensão do efeito de formalização, além de exercer um efeito de homologia com os gostos mais distintos da cultura dominante) não se pode deixar de lado os mais variados efeitos consideravelmente violentos em que os mais distantes ou desapossados da cultura dominante e legítima, principalmente nos municípios do interior de Pernambuco, acabam sofrendo. Onde, por exemplo, como me contou certa vez uma advogada, uma senhora lhe confessou que realizou uma oração aos pés da cama antes de entrar em contanto com ela para solicitar os seus serviços, ou, como em um caso em que uma senhora providenciou que se fizesse uma moldura de uma simples peça judicial redigida por um advogado sobre um de seus direitos.


           Esses e vários outros casos podem ser vistos como exemplos onde as práticas de formalização e de codificação jurídicas realizadas por um corpo profissional tendem a contribuir, assim como a racionalização dos textos sagrados pelo corpo de sacerdote na sociologia da religião de Weber, para a reprodução da crença na autoridade dos textos jurídicos não apenas por parte dos juristas, mas também, como lembra Bourdieu, “para fundamentar a adesão dos profanos aos próprios fundamentos da ideologia profissional do corpo de juristas, a saber, a crença na neutralidade e na autonomia do direito e dos juristas.”(BOURDIEU. Op. Cit. P. 244).


         Os constrangimentos e receios sofridos por parte dos profanos diante das mais diversas expressões dessa forma de capital ao mesmo tempo simbólico e cultural que é o capital jurídico (seja por parte do corpo de juristas ou por parte das arquiteturas opulentas dos prédios onde se dá o trabalho ora acadêmico ora forense de formalização e inculcação jurídica – sejam as faculdades de direito ou os Tribunais – corresponde a um exemplo do efeito de violência simbólica baseada no desconhecimento do arbitrário fundador do direito.