segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Aulas de Claudio Ulpiano.


Aula: "Pensamento e liberdade em Espinoza". Link para assistir a aula: http://vimeo.com/10348233 

Aula: "Em busca do tempo puro". Link para assistir a aula: http://vimeo.com/21885204


Aula: "A experiência transcendental". Link para assistir a aula: http://vimeo.com/23291759




quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O HOMEM-ÁRVORE* (Texto de Antonin Artaud)




(Carta a Pierre Loeb)

Antonin Artaud

O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,
mas de vontade
e árvore de vontade que anda,
voltará.
Existiu, e voltará.
Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,
ingestão, assimilação,
incubação, excreção,
o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam
ao domínio da vontade decisora,
a vontade que em cada instante decide de si;
porque assim era a árvore humana que anda,
uma vontade que decide a cada instante de si,
sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege.
Do que somos e queremos na verdade pouco resta,
um pó ínfimo sobrenada, e o resto, Pierre Loeb, o que é?
Um organismo de engolir, pesado na sua carne,
e que defeca e em cujo campo,
como um irisado distante,
um arco-íris de reconciliação com deus,
sobrenadam,
nadam os átomos perdidos,
as idéias, acidentes e acasos no total de um corpo inteiro.
Quem foi Baudelaire?
Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?
Corpos que comeram, digeriram, dormiram,
ressonaram uma vez por noite,
cagaram entre 25 e 30 000 vezes,
e em face de 30 ou 40 000 refeições,
40 mil sonos, 40 mil roncos,
40 mil bocas acres e azedas ao despertar,
tem cada qual de apresentar 50 poemas,
o que realmente não é de mais,
e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática
está muito longe de ser mantido,
está todo ele desfeito,
mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.
Nós somos os 50 poemas,
o resto não somos nós,
mas o nada que nos veste, se ri, para começar, de nós.
Um organismo de engolir vive de nós a seguir.
Ora, este nada nada é,
não é qualquer coisa mas alguns.
Quero dizer alguns homens.
Animais sem vontade nem pensamento próprio,
ou seja, sem dor própria,
que em si não aceitam vontade de uma dor própria
e para forma de viver mais não encontraram que falsificar a humanidade.
E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos,
fizeram este alambique de merda,
esta barrica de destilação fecal,
causa de peste e de todas as doenças
e deste lado de híbrida fraqueza,
de tara congênita, que caracteriza o homem nato.
Um dia o homem era virulento,
só era nervos elétricos,
chamas de um fósforo perpetuamente aceso,
mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram,
os animais, essas deficiências de um magnetismo inato,
essa cova de oco entre dois foles de força
que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa,
e a vida mágica do homem caiu,
caiu do seu rochedo com ímã
e a inspiração que era o fundo
passou a ser o acaso, o acidente, a raridade, a excelência,
talvez excelência
mas à frente de um tal acervo de horrores,
que mais valia nunca ter nascido.
Não era o estado de paraíso,
era o estado-manobra, - operário,
o trabalho sem rebarbas, sem perdas,
numa indescritível raridade.
Mas esse estado por que não continuou?
Pelas razões que levam o organismo de animal,
que foi feito para e por animais
e desde há séculos lhe aconteceu, a explodir.
Exatamente pelas mesmas razões.
Mais fatais umas do que outras.
Mais fatal a explosão do organismo dos animais
que a do trabalho único
no esforço dessa vontade única
e muito impossível de encontrar.
Porque realmente o homem-árvore,
o homem sem função nem órgãos que lhe justifiquem a humanidade,
esse homem prosseguiu sob a capa do ilusório do outro,
a capa ilusória do outro,
prosseguiu na sua vontade mas oculta,
sem compromissos nem contacto com o outro.
E quem caiu foi quem quis cercá-lo e imitá-lo
mas logo depois com muita força,
estilo bomba,
irá revelar a sua inanidade.
Porque devia criar-se um crivo
entre o primeiro dos homens-árvores
e os outros,
mas aos outros foi preciso o tempo,
séculos de tempo
para os homens que tinham começado
ganharem o seu corpo
como aquele que não começou
e não parou de ganhar o seu corpo mas no vazio,
e não havia lá ninguém,
e lá não havia começo.
E então?
Então.
Então as deficiências nasceram
entre o homem e o labor árido que era bloquear também o nada.
Em breve esse trabalho será concluído.
E a carapaça terá de ceder.
A carapaça do mundo presente.
Levantada sobre as mutilações digestivas
de um corpo esquartelado em dez mil guerras
e pela dor, e a doença, e a miséria,
e a penúria de gêneros, objetos e substâncias de primeira necessidade.
Os que sustentam a ordem do lucro
das instituições sociais e burguesas,
que nunca trabalharam
mas grão a grão amealharam o bem roubado
desde há bilhões de anos
e conservado em certas cavernas de forças
defendidas pela humanidade inteira,
com algumas tantas exceções
vão ver-se obrigados a gastar as energias
nessa coisa que é combater,
vão lá poder deixar de combater,
pois no fim da guerra e esta agora, apocalíptica,
que há-de vir,
está a sua cremação eterna.
Por isto mesmo eu julgo
que o conflito entre a América e a Rússia,
reforçado ele seja a bombas atômicas,
pouco vai ser
ao lado e em face do outro conflito
que vai repentinamente estalar
entre quem preserva uma digestiva humanidade, por um lado,
e por outro o homem de vontade pura
e os seus muito raros aderentes e sequazes mas com a sempiterna força por si.

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*ARTAUD, Antonin. Eu, Antonin Artaud. Lisboa: Hiena Editora, 1988, p. 105-110.


sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Francis Bacon

Homenagem de Henri Bergson a Gabriel Tarde




Instituto, Professor de Filosofia no Collège de France.


A história da filosofia ensina-nos a distinguir dois gêneros de pensadores. Existem aí aqueles que escolhem sua direção e que caminham metodicamente rumo ao seu objetivo, elevando-se de grau em grau até uma síntese querida e premeditada. Existem outros que vão, sem método aparente, aonde sua fantasia os conduz, mas cujo espírito é tão bem afinado ao uníssono das coisas que todas as suas idéias se harmonizam naturalmente entre elas. Sua reflexão, partindo de não importa onde e engajando-se em não importa que caminho, arranja-se para conduzi-las sempre ao mesmo ponto. Suas intuições, que nada têm de sistemático, organizam-se delas mesmas em síntese. Eles são filósofos sem haver procurado sê-lo, sem haver pensado nisso.
À raça desses últimos pertence Gabriel Tarde. Aquilo que primeiro surpreende nele é o imprevisto de uma fantasia que multiplica os apanhados rápidos, as visões originais e brilhantes. Mas, logo, a unidade e a profundidade de doutrina revelam-se. Um grande pensamento sustenta a obra e imprime-lhe sua direção.
Ele nos conduz, por mil caminhos diferentes, a ver, nas iniciativas individuais e na irradiação dessas iniciativas em torno delas, a verdadeira causa daquilo que se faz em uma sociedade e, mesmo, daquilo que se passa no mundo. Seduzidos pelos belos sucessos das ciências físicas, nós somos muito levados a construir as ciências sociais sobre o mesmo modelo, a colocar como princípio que a evolução das sociedades deve obedecer a leis inelutáveis, a representar-nos os eventos históricos como os resultados necessários de forças cegas, impessoais, que se comporiam entre si mecanicamente. Contra esta tendência tornada natural ao nosso espírito, toda a filosofia de Tarde protesta. Sem dúvida, as sociedades humanas são atravessadas por correntes; mas, na origem de cada corrente, existe um impulso, e o impulso vem de um homem. Sem dúvida, a evolução das sociedades é regrada por leis; mas essas leis são da mesma natureza daquelas que presidem a formação e o desenvolvimento de nosso caráter individual. Como a história de cada um de nós se explica pelas iniciativas e pelos hábitos contraídos, assim a vida das sociedades é feita de invenções que surgem aqui e ali e de modificações duráveis a que essas invenções conduzem em se fazendo adotar. Como cada um de nós — uma vez o hábito adotado — se repete e se copia a si mesmo, assim, em uma sociedade, todos os homens se imitam indefinidamente uns aos outros. A imitação é, pois, a verdadeira lei, tão universal no mundo dos espíritos quanto a gravitação o é no mundo dos corpos. Mas, diferentemente da lei da gravitação, é uma lei suave e flexível, como tudo aquilo que é humano.
Grande e importante idéia! Tarde deduziu-a de certas visões metafísicas profundas sobre a natureza do universo, elementos que o compõem e ações que esses elementos exercem uns sobre os outros. E ele aí relacionava mil considerações engenhosas sobre a estrutura de nosso espírito e sobre o funcionamento das sociedades. Mas, desta obra, onde o sociólogo, o psicólogo, o moralista, o economista e o jurista encontrarão tanto a aprender, uma lição se destaca, que se endereça a todo mundo. Mostrando-nos como a menor de nossas iniciativas pode abrir-se em conseqüências incalculáveis, como um simples gesto individual, caindo no meio social como uma pedra na água de um lago, movimenta-o inteiramente por ondas imitativas que se vão ampliando sempre, ela nos dá um sentimento agudo de nossa responsabilidade. Revelando-nos tudo aquilo que devemos a outrem, inventores em certos momentos, mas imitadores durante nossa vida inteira, ela esclarece, ela fortifica em nós o sentimento da solidariedade. Relacionando ao costume muitas coisas que se põem comumente na conta da natureza; fazendo remontar aos pensamentos individuais, às vontades individuais, a origem das transformações profundas da sociedade e da humanidade, ela nos desabitua de crer nas fatalidades históricas; ela nos convida a agir, a ter confiança em nós, a jamais desesperar do presente, a considerar tranqüilamente o amanhã. Do outro lado da inteligência à qual ela fala, está a vontade que ela atinge, estimula e fortalece.
Saudemos em Tarde o filósofo de pensamento penetrante, imaginação ousada que nos abre tantos horizontes; mas saibamo-lo contente, sobretudo, por haver realizado a mais alta ambição da filosofia, que é a de nos tornar melhores e mais fortes.

Henri Bergson

Van Gogh