sexta-feira, 27 de julho de 2012

A Casa dos Mortos

Íntegra: Tempo sem experiência – Olgária Matos





ESBOÇO DE UMA TEORIA DA PRÁTICA (POR PIERRE BOURDIEU)




Nosferatu: algumas divagações sobre a doxa e seus efeitos.








Danilo José Viana da Silva

                        



O filme Nosferatu: o vampiro da noite, dirigido em 1979 por Werner Herzog, (trata-se de uma versão diferente da de 1922) nos lembrou uma questão fundamental para a sociologia: o problema da relação entre a doxa e a ciência. Em uma das partes do filme a atriz principal, (Isabelle Adjani) Lucy, tenta explicar ao médico Dr. Van Helsing que a causa da peste que teria tomado conta da cidade era justamente o vampiro, o Conde Drácula. Mas o médico lhe diz que este tipo de coisas são superstições, e que hoje vivemos em um tempo de conhecimentos, de ciência, a qual havia refutado todas estas superstições.

A velha oposição entre ciência e senso comum, entre verdade e mito, e a “vitória” do primeiro sobre o segundo, é clara. Uma das características do objetivismo científico, por exemplo, é justamente a sua oposição ao senso comum, aliás, ele mesmo, em certo sentido, foi construído contra o senso comum. Uma das funções da ciência seria a de romper efetivamente com a doxa e com todos os “delírios”, e a linguagem objetivista iria ser posicionada contra as chamadas “linguagens delirantes” da poesia, por exemplo.

No caso do filme que pegamos para ilustrar estas divagações (a história toda se desenrola, pelo que parece, no final do século XIX ou na virada deste para o XX) podemos observar uma forte influência da ciência, das “descobertas” científicas e no seu poder para a recusa de qualquer tipo de superstições típicas do homem do campo: O homem da cidade é visto como um homem mais racional e os do campo como um  povoado ainda dominado pelas superstições, tais como a crença na existência de vampiros. O médico, Dr. Van Helsing, recusa-se a ajudar Lucy a combater o vampiro  ( o Conde Drácula) a grande causa da Peste Negra que já tinha tomado toda a cidade de Wismar.

Enfim, no final do filme, quando Lucy já havia sido vítima do vampiro e já estava morta, ( valendo lembrar que tal fato foi justamente a consequência do plano contido em um livro para eliminar o vampiro) foi que o médico, após ver Lucy morta na cama e o vampiro desacordado no chão pelo efeito dos raios do sol, acabou acreditando no que Lucy tanto lhe dizia: ou seja, a própria causa das mortes na cidade, o Conde Drácula. No final, é o próprio médico quem termina de eliminar o vampiro com uma estaca. Mas, já era tarde demais, muitas pessoas já tinham morrido.

O interessante desta parte do filme é justamente a exclusão, propiciada pela ciência, do senso comum. Como se a própria ciência, que no nosso caso seria a sociologia, fosse constituída contra a própria doxa. Uma das consequências dessa exclusão da doxa como forma de conhecimento e de construção do mundo social é justamente a construção de uma, por exemplo, sociologia do conhecimento que toma por conhecimento apenas o conhecimento teórico, o saber erudito. Eis um dos pontos fortes que sociólogos como Peter Berger tanto criticaram na sociologia do conhecimento levada a cabo por várias correntes do pensamento.

Para ele, seria necessária uma nova sociologia do conhecimento. Eis como ele a define:

A sociologia do conhecimento deve ocupar-se com tudo aquilo que é considerado “conhecimento” na sociedade. Basta este enunciado para se compreender que a focalização sobre a história intelectual é mal escolhida, ou melhor é mal escolhida quando se torna o foco central da sociologia do conhecimento. O pensamento teórico, as “idéias”, weltanschauungen não são tão importantes assim na sociedade. Embora todas as sociedades contenham estes fenômenos, são apenas parte da soma total daquilo que é considerado “conhecimento”. 1 



            Trata-se de uma redefinição da sociologia do conhecimento, esta agora não deve apenas se ocupar com o conhecimento erudito, mas também com o senso comum, com a doxa na vida cotidiana, pois ela tem uma importantíssima função na produção e reprodução do próprio mundo social.

            Muito embora não haja muita preocupação em se investigar as condições sociais de possibilidade da experiência dóxica do mundo social em Berger e Luckmann, devemos reconhecer a importância que a própria sociologia do conhecimento deve dar a experiência dóxica, ou seja, a experiência do mundo social como evidente, pois ela tem um papel muito forte na construção da realidade social.

Trata-se de um dos pontos importantes que podemos encontrar, em um ângulo bem diferente do de Peter Berger, em Bourdieu. Este não deixou de lado a importância da experiência primeira para a sociologia; algumas de suas preocupações (principalmente no que se refere a sua teoria da prática e, portanto, de um conhecimento praxiológico) são justamente as condições sociais de possibilidade da própria experiência primeira.



O conhecimento objetivista coloca a questão das condições de possibilidade da experiência primeira, revelando, assim, que essa experiência se define, fundamentalmente, pela não-colocação dessa questão, o conhecimento praxiológico inverte o conhecimento objetivista, colocando a questão das condições de possibilidade dessa questão (condições teóricas e, também, sociais) e mostra, ao mesmo tempo, que o conhecimento objetivista se define fundamentalmente, pela exclusão dessa questão: na medida em que ele se constitui contra a experiência primeira – apreensão prática do mundo social – o conhecimento objetivista se afasta da construção da teoria do conhecimento prático do mundo social e dela produz, ao menos, a falta, ao produzir conhecimento teórico do mundo social contra os pressupostos implícitos do conhecimento prático do mundo social. O conhecimento praxiológico não anula as aquisições do conhecimento objetivista, mas conserva-as e as ultrapassa, integrando o que esse conhecimento teve que excluir para obtê-las. 2



            Ou seja, a experiência prática é tomada por Bourdieu como um elemento muito importante para a sociologia. Este sociólogo chega a definir a importância da prática em sociologia como um habitus científico, ou seja, uma disposição para agir (independentemente de teoria) de determinada maneira, dada certas circunstâncias, tratando-se, então, de um tipo de

modus operandi  científico que funciona em estado prático segundo normas da ciência sem ter estas normas na sua origem: é esta espécie de sentido do jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no momento próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menos ainda a regra que permite gerar a conduta adequada. 3  



            Ao elaborar a sua teoria da prática e, portanto, de um conhecimento praxiológico do mundo social, Bourdieu irá retomar o objetivismo, mas não irá reproduzir uma de suas ingenuidades, qual seja, a consequência do não questionamento de seus próprios pressupostos: O objetivismo ao questionar as condições de possibilidade da experiência primeira não questiona os próprios pressupostos desse questionamento. O objetivismo subestimou demasiadamente a experiência prática do mundo social, afinal, ele foi constituído contra tal experiência. Neste caso, esta foi excluída, sem mais nem menos, da própria prática científica.

Se por um lado o objetivismo questiona as condições de possibilidade da experiência primeira, por outro lado ele ignora o próprio questionamento desse questionamento, ou seja, ele ignora o questionamento dos pressupostos do questionamento das condições de possibilidade da experiência primeira do mundo social. Eis uma consequência que leva a uma postura nada rigorosa de alguém que se entende por cientista social. O grande problema é que o próprio objetivismo foi produzido contra a própria experiência primeira, e, mediante tal relação, o objetivismo irá excluir a própria experiência primeira e irá combatê-la, sem ao menos refletir sobre a sua importância para as ciências sociais e para outras ciências também.

Várias são as consequências desastrosas desta exclusão: uma destas consequências é justamente o apego exagerado as regras dos protocolos burocráticos da ciência; Bourdieu, Chamboredon e Passeron lançam um exemplo muito claro de um efeito deste exagerado apego as regras científicas e à teorias sem ao menos se realizar um questionamento sobre as suas condições de utilização:



Se Uvarov tivesse dado plena liberdade ao assistente que, preocupado com a arrumação do laboratório, voltava a colocar, todas as manhãs, no seu lugar as locusta migratória de cor cinza que se misturavam com as locusta danica de cor verde, não teria percebido o fato que essas duas espécies constituíam, afinal, uma só – a locusta danica se tornava cinza quando deixava de ser solitária: não será verossímil que um grande número de técnicas tradicionais, quando são utilizadas sem controle epistemológico, destroem o fato científico à maneira do princípio da arrumação do assistente de Uvarov? O fascínio exercido pelo aparelho tecnológico, assim como o prestígio do aparato teórico, pode impedir uma justa relação aos fatos e à prova dos fatos. 4  



            Em outro aspecto de sua sociologia, Bourdieu não irá desdenhar dos efeitos e do poder da doxa na vida cotidiana. Ele irá dar bastante atenção aos mecanismos de violência simbólica; tratam-se de mecanismos muito sutis e que produzem e reproduzem relações muito difíceis de modificar:

Bourdieu: (...) em termos de dominação simbólica, a resistência é muito mais difícil, pois é algo que se absorve como o ar, algo pelo qual o sujeito não se sente pressionado; está em toda parte e em lugar nenhum, e é muito difícil escapar dela. Os trabalhadores vivem sob esse tipo de pressão invisível e, assim, adaptam-se muito mais à sua situação do que podemos supor. Modificar isso e muito difícil, especialmente hoje em dia. Com o mecanismo da violência simbólica, a dominação tende a assumir a forma de um meio de opressão mais eficaz e, nesse sentido, mais brutal. 5   



            O mecanismo de violência simbólica molda as pessoas de forma que elas não chegam nem a perceber. Aliás, como lembra Bourdieu, o próprio exercício do poder simbólico pode se dar sem que aqueles que o exerçam se dêem conta; “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” 6    Aí esta um dos pontos mais importantes da doxa: a disposição para se sujeitar e/ou exercer tal poder. Tratam-se de “atitudes para com coisas que estão abaixo do nível de consciência.” 7  

            O efeito de concertação sem maestro, ou melhor, o próprio consenso entre os agentes que ocupam posições em um determinado campo, define-se em torno da doxa. O próprio consenso, ou seja, a disposição para aceitar de pronto as regras do jogo e jogá-lo com gosto, como se o agente fosse feito para isso: Eis a doxa que pode ser encontrada em diversos campos que Bourdieu estudou: o campo jurídico, o artístico, o religioso, o pedagógico... A doxa e seus efeitos são de grande importância para a sociologia de Bourdieu, principalmente para se compreender os efeitos de dominação simbólica, a Illusion... Sem esquecer que as lutas no campo não são apenas em prol de sua conservação, mas também de sua transformação, muito embora esta (a transformação) seja menos frequente. 

            A doxa penal, por exemplo, corresponde a uma relação importantíssima para se compreender os estudos que o sociólogo Loïc Wacquant faz sobre a administração da miséria pelo cárcere implementada pela penalidade neoliberal. Para este sociólogo, os efeitos da doxa penal devem ser devidamente compreendidos, pois ela é propagada por toda uma rede midiática, acadêmica, política... em prol da maximização do Estado penal e policial e da implementação de uma verdadeira ditadura sobre os pobres e miseráveis.

            Por doxa penal podemos entender um certo paradoxo das políticas de “combate” ao crime implementadas pelo neoliberalismo:



A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. 8



            Ou seja, são justamente os efeitos da nova onda punitiva, do novo senso comum penal, ( qual seja, o próprio aumento da criminalidade mediante a intensificação de sua própria causa e a superlotação carcerária, fazendo com que os presos convivam em condições subumanas) que podemos observar. Por doxa penal, então, podemos entender uma opinião que é constantemente enunciada em forma de discurso “científico” e pomposo do mundo acadêmico que afirma que a única e eficaz maneira de se combater a criminalidade é com leis penais mais rígidas, com a maximização dos aparatos estatais de repressão, tais como o pesado investimento em policiamento, e na maior exigência de rigidez na forma de punir. E toda essa realidade está muito relacionada com a política de imposição de um mercado de trabalho desqualificado e despotencializador.

            Um dos efeitos mais perversos desta política neoliberal de “combate” ao crime é justamente a segregação dos pobres e miseráveis, enfim, a administração da miséria pelo cárcere e o aumento da criminalidade, pois a criminalidade não é combatida em suas causas.

Assim, podemos concluir que a doxa e os seus efeitos jamais podem ser desdenhados por um cientista social, ela é fundamental para se compreender a imagem de mundo que é inculcada, interiorizada e expressa pelos agentes que constituem a sociedade. Pelo menos, o erro cometido pelo médico do filme Nosferatu: o vampiro da noite não pode mais ser aceito, a doxa e seus efeitos sociais jamais podem ser ignorados. É ela que define, muitas vezes, o próprio rumo das políticas Estatais, por exemplo.

E isto não é apenas algo que deve ser levado em conta pelo sociólogo, mas também pelo filósofo: não é por acaso que Deleuze, em Diferença e Repetição, preocupou-se em pensar sobre os efeitos mais perversos que a doxa, que é por ele definida “como cogitatio natura universalis (...)” 9 engendra. Este senso comum que afirma uma natureza reta do pensamento, que presume uma boa vontade do pensador e uma disposição para o verdadeiro, é uma imagem do pensamento que Deleuze irá criticar e analisar com bastante precaução: a questão do pensamento é um problema fundamental na filosofia de Deleuze.  Sobre isto ainda iremos escrever, talvez seja um ponto para pensarmos no próximo texto.

Enfim, o que queremos dizer é que não temos mais o luxo de desdenhar do senso comum, seja em ciências sociais, seja em filosofia. Também devemos lembrar da importância que a experiência primeira tem para a sociologia, tal como vimos em Bourdieu. Não podemos, e aqui ilustro com o filme, cometer o erro do Dr. Van Helsing, o médico do filme.



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1.      BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: Tratado de Sociologia do Conhecimento. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis, Vozes, 17ª Ed. Vozes, 1985. P. 29.

2.      BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In.: Pierre Bourdieu: Sociologia. Organizador da coletânea: Renato Ortiz. Trad. Paula Montero e Alícia Auzmendi. – São Paulo: Ática, 1983. P. 47-48.

3.      BOURDIEU, Pierre. INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA. In,: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P.23

4.      BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 79-80.

5.       BOURDIEU, Pierre e EAGLETON, Terry. A doxa e a vida cotidiana: uma entrevista. In.: Um mapa da ideologia. Organização: Slavoj Zizek. Trad. Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. P. 270.

6.      BOURDIEU, Pierre. Sobre o Poder Simbólico. In,: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P.7-8.

7.      BOURDIEU, Pierre e EAGLETON, Terry. A doxa e a vida cotidiana: : uma entrevista. Ibid.

8.      WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Trad.: André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001. P. 7.

9.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. P. 192.