terça-feira, 16 de julho de 2013

Pierre Bourdieu: algumas divagações sobre O processo de Kafka e a manipulação do tempo





Por Danilo José Viana da Silva


         Em Meditação pascalianas Bourdieu realiza algumas interpretações bastante interessantes sobre O processo de Kafka. No presente e superficial texto iremos apenas tratar da problemática relativa ao poder de manipulação do tempo dos outros (um dos efeitos da dominação simbólica). Tendo ciência de que a sociologia reflexiva de Bourdieu corresponde, em grande parte, a uma ruptura com a sociologia espontânea, na qual a utilização das mais diferentes obras acaba reproduzindo “um empreendimento análogo ao dos teólogos ou canonistas da Idade Média que reuniam em suas enormes Sumas o conjunto dos argumentos e questões legadas pelas “autoridades” (...) 1, é relevante, assim pensamos, lembrar que o  fato do citado sociólogo lançar mão de O processo de Kafka tem como um de seus mais importantes fundamentos uma linha teórica que permite “escapar do ecletismo puro e simples.”2  
            Em outras palavras, ele retoma O processo para, em certa medida, retomar, em Meditações pascalianas, algumas problemáticas que já foram tratadas em sua sociologia. É justamente para se pensar um dos efeitos da dominação simbólica, ou seja, a dominação do tempo dos outros exercida pelos dominantes em determinado campo, que a citada obra de Kafka é retomada em determinado momento.  
            O poder sobre o tempo dos outros e sobre a administração de posições no interior do campo universitário foi analisado por Bourdieu em Homo Academicus. Esse poder sobre o tempo dos outros (o qual não deve ser tomado como um poder exercido de forma plenamente consciente para a realização de tal dominação, pois corresponde a um efeito do habitus enquanto sentido do jogo incorporado, enquanto ethos incorporado, enquanto regra feita corpo)

supõe talvez antes de tudo uma arte de manipular o tempo dos outros, ou mais precisamente, o ritmo de sua carreira, de seu curso, de acelerar ou de adiar realizações tão diferentes quanto o sucesso nos concursos ou nos exames, a defesa de tese, a publicação de artigos ou de obras, a nomeação nos postos universitários, etc. E, em contrapartida, essa arte, que também é um das dimensões do poder, com freqüência só se exerce com cumplicidade mais ou menos consciente do impetrante, mantido assim, às vezes, até um idade bem avançada, na disposição dócil e submissa, enfim, um pouco infantil – o diretor de tese, na Alemanha, se chama Doktorvater, “pai de doutor – que caracteriza o bom aluno de todas as idades. 3   
   
            Esse poder que corresponde a uma verdadeira arte de manipular, aquém do cálculo cínico e plenamente racional ou orientado para este fim, o tempo dos outros, e que é exercido pelos detentores do poder universitário (e dos detentores das posições privilegiadas) no interior do campo universitário é um bom exemplo para se compreender as incertezas, as angústias, as ansiedades sentidas por quem está, em grande parte, entregue “ao arbítrio de um chefe”4, tal como ocorre com o próprio Josef K. Neste sentido, como lembra Bourdieu, O processo é “um modelo bastante realista dos campos de produção cultural, em que se exercem poderes os quais, a exemplo dos da ordem universitária, têm como princípio o controle sobre o tempo dos outros.” 5
            No inicio do romance K. não se preocupa de imediato com o suposto processo do qual ele era acusado, depois ele entra, pouco a pouco, no jogo que se “caracteriza por um grau muito elevado de imprevisibilidade: não se pode confiar em nada.” 6  Trata-se de um jogo onde tudo pode acontecer, onde as instituições encarregadas de velar e de reproduzir a ordem não conseguem dissimular o arbitrário que as fundamenta. O próprio tribunal é “o lugar por excelência do arbitrário, que se afirma como tal, sem sequer se dar o trabalho de se dissimular. Por exemplo, o Tribunal censura pelo atraso quando ele mesmo está sempre atrasado (...)” 7
            Diante desse poder instituído, K. pouco pode fazer contra a sua submissão, principalmente pelo fato de que aos poucos ele entra no jogo onde o próprio advogado manipula suas esperanças e as expectativas, “embalando-o com vagas esperanças e atormentando-o com ameaças imprecisas.” 8  K. experimenta uma angústia à altura do paciente de hospital , para quem o médico diz “ora uma coisa ora outra, inquietando, logo em seguida tranquilizando (...)” 9  Trata-se também de uma possibilidade de se repensar as lógicas das próprias Instituições Totais, para utilizar uma noção de Goffman 10, tais como as prisões, os conventos, os manicômios, ou, até mesmo, as escolas, as universidades, os hospitais, as instituições burocráticas, algo possível de se retomar a partir da própria obra de Kafka.
            Em O processo as situações de incerteza e de investimento são levadas ao extremo, onde “a exemplo do que se passa num regime despótico, não há mais limites ao arbitrário e a imprevisibilidade (...)” 11  Trata-se de uma situação extrema onde o poder de manipulação das aspirações enseja o investimento de todos os móveis. Para além dessa situação extrema, esse poder de manipulação só é possível, em certa medida, com a cumplicidade de suas próprias vítimas, seja no campo jurídico, no campo universitário, esse poder de manipular o tempo dos outros “só consegue se instaurar com a cumplicidade (extorquida) da vítima, e de seu investimento no jogo.” 12 Trata-se de um dos efeitos mais característicos da dominação simbólica, ou seja, o efeito brutal que corresponde ao fato de os próprios dominados tenderem a reproduzir a lógica de sua própria dominação.
            Na medida em que K. está submetido a manipulação do seu tempo, ele encontra-se em uma situação de extrema insegurança e incapacidade de atribuir sentido a sua própria vida. A apropriação da cultura dominante enquanto “a” cultura legítima (aliás, esta também é a maneira, em certo sentido, a partir da qual ela se vê), já que estamos também refletindo sobre o campo universitário, é o capital mediante o qual os dominados são condenados “a viver num tempo orientado pelos outros (...)” 13
            No caso do campo universitário isso é compreensível na medida em que os que ocupam posições dominantes em seu interior possuem diplomas universitários, os quais, segundo Bourdieu, correspondem a verdadeiros “títulos de nobreza cultural”14 com  eficácia simbólica suficiente atribuída pelo Estado para fazer existir aquilo que está enunciado no próprio diploma em conformidade com o seu próprio enunciado (eis um dos efeitos performativos dos títulos universitários).

Portanto, na definição tácita do diploma, ao assegurar formalmente uma competência específica (...), está inscrito que ele garante realmente a posse de uma “cultura geral”, tanto mais ampla e extensa quanto mais prestigioso for esse documento; e, inversamente, que é impossível exigir qualquer garantia real sobre o que ele garante formal e realmente, ou, se preferirmos, sobre o grau que é a garantia do que ele garante. 15  

            Diferentemente dos autodidatas e dos desprovidos dos diplomas, os quais devem a todo o tempo mostrar, dar provas de sua cultura, os que possuem os diplomas consagrados pelo Estado possuem a garantia estatutária, não apenas universitária, da cultura legítima e não estão sujeitos a contingência relacionada a necessidade de ter que por a prova o seu capital cultural formalmente garantido (Um típico exemplo onde, a partir dos efeitos do capital simbólico, a essência precede a existência, pois independentemente das constrições da existência, a cultura garantida daquele que possui o título define o próprio possuidor, ele é o que o diploma enuncia e garante, independentemente da contingência existencial).
Na medida em que esses títulos de nobreza cultural asseguram um poder sobre o destino dos dominados no interior do campo universitário, tais títulos permitem se jogar com a angústia dos outros e impulsionar, juntamente com a lógica da concorrência entre os pares, os mais diversos investimentos no jogo universitário, por exemplo; fazendo com que os próprios dominados ajudem a reproduzir a própria lógica a partir da qual eles são dominados.                                      
                                                                           
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1.      BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 39
2.      BOURDIEU, Pierre. Fieldwork in Philosophy. In.: Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da Silveira e Denise Moreno  Pegorim. – São Paulo: Brasiliense, 2004. P. 42
  1. BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Trad. Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Rev. Tec.: Maria Tereza de Queiroz Piacentini. – Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. P. 122
4.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 280
5.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Ibid
6.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Ibid
7.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 281
8.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Ibid
9.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 282
10.  Sobre as Instituições Totais ver GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Trad. Dante Moreira Leite. – São Paulo: Perspectiva
11.   BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Ibid
12.  BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Ibid
13.  BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 290
14.  BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 27
15.  BOURDIEU, Pierre. A Distinção. P. 28-29