domingo, 27 de novembro de 2016

Uma possível pesquisa




Por Danilo José Viana da Silva





Levando em conta as quatro dimensões dinâmicas e relacionais que Charles Tilly considera como relevantes para se auferir os níveis de democratização e desdemocratização  de um determinado Estado, penso que nos dias atuais uma pesquisa sobre a atuação dos setores estatais no que diz respeito as suas relações com as demandas dos movimentos sociais pode ser relevante para uma maior compreensão sobre a atual conjuntura política.


1.      Essa pesquisa levaria em conta a “amplitude” (TILLY, Charles. Democracia. Editora Vozes. 2013. P. 28), ou seja, permitiria se observar em que níveis uma parcela da população goza de extensos direitos em detrimento de outros cidadãos, que são “largamente excluídos dos processos políticos”, (Ibid). Nesse caso, um alto nível de democratização corresponderia a uma considerável amplitude de “inclusão política de pessoas sob a jurisdição do Estado (Ibid). E um alto nível de desdemocratização em curso poderia ser visualizado em um estado de coisas onde apenas uma pequena parcela dos cidadãos possuiria plenos direitos de cidadania e um vínculo com o Estado. Onde, por exemplo, apenas determinadas empresas poderiam ter acesso a participação política em detrimento de estudantes secundaristas, assalariados, etc.


2.      Uma pesquisa sobre a “igualdade” (Ibid) permitiria se analisar a variação dos níveis de igualdade no que diz respeito a definição e cumprimento de direitos e deveres. Em um nível alto de desdemocratização, poder-se-ia visualizar um quadro onde, por exemplo, categorias étnicas não teriam “qualquer conexão relevante com obrigações ou direitos políticos” (Ibid), a ampla igualdade prevaleceria apenas entre os cidadãos nativos ou naturalizados.


A consideração dessas duas dimensões, segundo Tilly, permitiria se levar em linha de conta os “aspectos cruciais da cidadania” (Ibid). Tratam-se, segundo o autor, de componentes essenciais da democracia. Neste caso, devem ser encarados como componentes relacionais, considerando a sua separação apenas para fins teóricos e didáticos. Mas, seria preciso se analisar duas outras dimensões características dos regimes democráticos, quais sejam, a “proteção” e o “caráter vinculante”.


3.      Uma pesquisa sobre a “proteção” (Op. cit. p. 29) permitiria se observar os níveis de proteção que os agentes estatais produzem contra as suas ações arbitrárias. Em um nível extremo, observar-se-ia um quadro onde “os agentes do Estado usam constantemente seu poder para punir inimigos pessoais e para premiar seus amigos; em outro, todos os cidadãos gozam de um processo público e correto.” (Ibid). Um nível alto de desdemocratização poderia ser exemplificado em um quadro onde, por exemplo, um magistrado orientaria policiais a usarem táticas de tortura contra estudantes secundaristas que ocupam, em um protesto contra medidas do governo, uma determinada escola pública.


4.      Uma pesquisa sobre o “caráter mutuamente vinculante” (Ibid) seria relevante para se auferir os níveis de variação da relação de vínculo existente e/ou inexistente entre “os requerentes dos benefícios do Estado” com o próprio Estado. Em um nível considerável de desdemocratização, poder-se-ia observar um quadro onde os demandantes de direitos sociais e de benefícios estatais teriam que “subornar, persuadir, ameaçar ou usar a influência de terceiros para conseguir alguma coisa” (Ibid); poder-se-ia visualizar um quadro considerável de desdemocratização em uma relação praticamente inexistente de vínculo entre o Estado e as pautas defendidas por estudantes secundaristas, onde o Estado não manteria nenhum tipo de diálogo com as pautas levantadas por esse movimento. Em um considerável nível de democratização, os direitos demandados pelos cidadãos são  reconhecidos e concedidos pelos agentes do Estado.



              Essas quatro dimensões podem ser tomadas, segundo Tilly, como marcadores do “grau de democracia” de um determinado Estado. A democratização seria caracterizada como uma crescente dessas quatro dimensões, enquanto a desdemocratização por uma constante baixa dessas quatro dimensões. Uma pesquisa que levasse em conta os níveis de variação dessas dimensões no Brasil possibilitaria se analisar, com dados empíricos,  os níveis de desdemocratização por que passa o Brasil atualmente.  







                           

Fotos de estudantes secundaristas segurando cartazes em protesto ocorrido na AV. Norte de Recife-PE no dia 22/11/2016 contra a "reforma" do ensino e contra a PEC55 propostas pelo governo Temer. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Sobre meditações pascalianas de Pierre Bourdieu



Por Danilo José Viana da Silva




Através da reativação sociológica da crítica pascaliana da razão autofundadora (“O que assenta na sã razão é bem mal fundado, como a estima da sabedoria”) Bourdieu faz uma análise pormenorizada de boa parte da tradição filosófica tanto moderna quanto contemporânea.


Por meio dessa análise, Bourdieu põe em prática os princípios e toda a artilharia analítica de sua sociologia reflexiva, a qual exige, como uma das mais importantes condições para o exercício da sociologia, que o próprio sociólogo empregue contra si mesmo os instrumentos de objetivação que ele emprega em seu trabalho de pesquisa.


A vigilância epistemológica contra si (uma análise da relevância da vigilância epistemológica contra si pode ser encontrada em “O racionalismo aplicado” de Gaston Bachelard, uma das mais importantes influências na sociologia do conhecimento de Bourdieu) acaba encontrando uma oportunidade considerável de exercício na medida em que a crítica pascaliana do fundamento racional da razão, como um tipo de crítica a forma de denegação de gênese histórica e social dos próprios instrumentos de reflexão racional, é empregada rigorosamente contra as determinantes sociais que contribuem para a amnésia da gênese histórica e social do próprio habitus escolástico, do próprio escolástico que existe em cada um de nós.


A sociogênese da disposição escolástica ( a qual pode ser aqui rapidamente definida como uma inclinação para construir e perceber o mundo e os seus objetos como absolutamente autônomos através de esquemas interiorizados e pensados como instrumentos absolutamente autônomos de conhecimento, e de acordo com uma disposição liberada das urgências e da alienação do tempo necessário para o exercício da apropriação cultural, da imprevisibilidade de uma vida instável econômica e social, de uma condição de existência relativamente favorável à “escolha” dos produtos e modos de ação reconhecidos como marcadores de distinção cultural, verdadeira condição para se ascender a predileção e as “escolhas” desinteressadas – tomadas como efeitos de um dom inato e, portanto, dessocializado –  pelos mais nobres objetos de reflexão e apreciação ) acaba contribuindo para se produzir instrumentos eficazes contra os erros escolásticos, os quais tendem a “pôr a razão onde ela nunca esteve”, diria Pascal, verdadeiro princípio de erro que só pode ser rigorosamente combatido pondo os instrumentos da razão contra ela mesma, através de um rigoroso exercício de uma autoanálise sociológica, uma das condições indispensáveis, segundo Bourdieu, não apenas para o progresso das ciências sociais, mas também para uma atuação política mais eficaz.


Obra importante para o exercício da crítica ao fetichismo cultural, exemplo expresso e não devidamente questionado de um dos efeitos mais dissimulados no mundo intelectual da dominação simbólica, que tem como uma de suas características o fato de os dominados contribuírem inconscientemente para a sua própria dominação.


Obra importante para se pensar também em como a sociogênese da produção do que hoje no mundo intelectual é tomado como evidente, justamente por fazer parte da doxa constitutiva e fora do espaço do questionável pela própria filosofia questionadora,  justamente por ser um dos fundamentos tácitos e amplamente aceitos como evidentes nos mais diversos jogos intelectuais, pode contribuir para a efetivação do que Bourdieu chama de “Realpolitik da razão” e para o fortalecimento dos instrumentos de combate contra os princípios do erro escolástico que existem em cada um de nós, em nosso mais profundo âmago.


Levando em conta que, como definia Bachelard, “a verdade é uma ilusão bem fundamentada”, e de que o erro é parte constitutiva e ativa da produção de conhecimento, o exercício da vigilância epistemológica não se baseia em uma ilusão fundada em um ritual de expurgo ou de exorcismo do erro e da ilusão, mas uma importante ferramenta empregada por Bourdieu para o exercício de uma verdadeira sociologia do conhecimento sociológico, para um constante, interminável e incansável combate às labaredas de fogo do erro (Canguilhem, um dos discípulos mais conhecidos de Bachelard, afirma que ”o erro não é fumaça, mas fogo que ressurge sempre”) que a todo o instante tendem a determinar significativamente o desenrolar do árduo e ingrato exercício de pesquisa.


No caso da sociologia, assim como Bachelard afirmava que para que o progresso do conhecimento científico, no caso especifico da Química, seria preciso que o químico lutasse constantemente contra o alquimista que existe em seu interior, em seu mais profundo âmago, Bourdieu sustenta que o sociólogo deve combater sem cessar o sociólogo espontâneo e os princípios do erro escolástico que existem em seu mais profundo âmago, sem tréguas.


Um rigoroso trabalho de sociogênese do habitus escolástico e do homo academicus que vive em nós, e de crítica à ilusão de liberdade altaneira que o fetichismo da cultura intelectual pode propiciar contribuindo para os mais diversos sobrevoos intelectuais sobre o mundo social.



Uma importante contribuição ao exercício de autoanálise do espaço de ação e de construção intelectual do mundo. Como Bourdieu fala em entrevista a Roger Chartier, “tudo o que é a mistificação produzida pelos intelectuais é algo que depende de nós. Eis por que a crítica da ilusão intelectual, que é de nossa alçada – mas não é, de modo algum, ‘o todo’ da ação política - , é, sem dúvida, o mais importante daquilo que podemos fazer.” (BOURDIEU, Pierre e CHARTIER, Roger. O sociólogo e o historiador. Editoria Autêntica. 2012. P. 43)                 

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Assar castanhas: um saber não escolar.




Por Danilo José Viana da Silva


        Uma das últimas e mais agradáveis experiências pelas quais passei foi sentir o cheiro de castanha de caju sendo assada. Esse cheiro me fez relembrar os vários momentos de aprendizagem não escolástica com a minha falecida avó no sitio  que para mim (um garoto de dez anos) constituía o melhor de todos os mundos possíveis, onde ela morava com o meu avô. 

        Ela me ensinou como assar uma “cacada de castanhas”, não como os professores da escola, mas como um tipo de artesã que no momento de transmitir os seus conhecimentos práticos, o faz através do gesto, da prática de uma espécie muito particular de conhecimento que só pode ser adquirido através da constante prática. As lembranças que subitamente esse cheiro me proporcionou me fez lembrar a forma como Proust pensava no quanto pode ser inútil tentarmos reviver o passado através de uma atividade intelectual. Como ele mesmo escreve, “é trabalho baldado procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência serão inúteis. Está escondido, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que esse objeto material nos daria), que estamos longe de suspeitar.”  (PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann. ) 


          Aquele cheiro me fez reviver subitamente todo um conjunto de experiências pelas quais passei no sitio de minha avó e que existiam em estado recalcado, que “haviam perdido a força de expansão que lhes teria permitido alcançar a consciência”, diria Proust, por todo um processo de aprendizagem escolar e acadêmico que me treinou gradativamente em seus jogos, com suas provas e exercícios gratuitos que contribuíram para me afastar cada vez mais das experiências do “gosto”, do “sabor” de se comer uma manga no pé, do “prazer” em procurar pelo cheiro uma jaca madura (a caça vale tanto quanto a lebre, diria Pascal) para subir na jaqueira e retirá-la sem a ajuda de nenhuma faca para depois descer com o seu talo entre os meus dentes, da “alegria” de constatar que, ao assar uma “cacada de castanhas” de caju, não tinha queimado uma grande quantidade delas... 


        E também me fez reviver, o cheiro, sempre o cheiro, as broncas amorosas da minha avó quando via que eu quebrava as cascas das castanhas e imediatamente as comia: isso fazia com que as suas esperanças de que eu conseguisse juntar um certo pecúlio de castanhas descascadas para fazer um possível pé de moleque fossem frustradas. 


          Esse cheiro me fez lembrar das minhas várias habilidades em subir em árvores, em ter o devido cuidado com as casas de marimbondos, com os cavalos do cão, serpentes... enfim, de todo um conjunto de conhecimentos práticos (e que só podem ser adquiridos pela constante prática) dos quais tinha me esquecido. Não ignoro o quanto  a experiência escolástica e acadêmica dos exercícios gratuitos contribuiu bastante para esse processo de esquecimento desse tipo de conhecimento inacessível pela inteligência escolar e acadêmica.                 

sábado, 5 de novembro de 2016

A força das palavras e o kairos



Arte: Honoré Daumier


Por Danilo José Viana da Silva



Considerando que uma das características das lutas que se desenrolam no campo jurídico corresponde ao fato de que “no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial” (BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: O poder simbólico. P. 213) não se pode ignorar os efeitos práticos que essa apropriação do corpus textual jurídico pode engendrar.


Diferentemente das lutas que se desenrolam para para se determinar o sentido das palavras nos campos filosófico e literário, por exemplo, nos campo jurídico  e político o efeito de se jogar com o sentido das palavras que fazem parte do corpus textual jurídico exerce frequentemente efeitos sociais e políticos bem reais sobre uma  considerável parcela  da população (um dos fortes indícios disso pode ser encontrado nos mais variados sentidos, inclusive sobre os seus efeitos, que os mais diversos entrevistados pela "mídia livre" deram da palavra "Impeachment"nas manifestações pro-impeachment.


Assim como o poeta na sociedade Cabila poderia, como lembra Mouloud Mammeri, jogar com o sentido das palavras do "corpus da tamusni"1 visando efeitos práticos, o jogo ao mesmo tempo jurídico e político - o que demonstra o baixo nível de autonomia do campo jurídico -  com a palavra  "impeachment" contida no corpus jurídico tende a mostrar uma das dimensões das lutas simbólicas, qual seja, a luta para determinar, no momento oportuno, o "sentido" da palavra autorizada no e pelo jogo.



É assim que os textos jurídicos podem ser ajustados em conformidade com os interesses dos intérpretes: diante do Kairos como "o momento oportuno, aquele que é preciso aproveitar para falar sobre algo"2 pode-se jogar com os termos jurídicos, jogar com a própria polissemia (chegando até mesmo a os contradizer) do corpus textual para a realização dos mais diversos interesses particulares, econômicos, políticos dos envolvidos... sem falar nos efeitos sociais e políticos que esse jogo pode propiciar, tal como o jogo jurídico e politico que se realizou com a palavra "impeachment", juntamente com toda a atuação dos ministros do SFT no que diz respeito ao seu jogo com as palavras dos textos jurídicos, chegando até mesmo a as contradizer.


As lutas simbólicas são, em grande parte, lutas pela apropriação de palavras autorizadas e reconhecidas por toda uma tradição jurídica, mas com efeitos bem reais que não estão restritos ao campo jurídico. 



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1. Dialogo sobre a poesia cabília: entrevista de Mouloud Mammeri a Pierre Bourdieu. In.: Revista de sociologia e politica. n. 26: 61-81. JN. 2006. p. 72

2. (Dialogo sobre a poesia cabília: entrevista de Mouloud Mammeri a Pierre Bourdieu. In.: Revista de sociologia e politica. n. 26: 61-81. JN. 2006. p. 73


Uma ditadura sobre os pobres.



Por Danilo José Viana da Silva



O projeto de desmonte do que ainda resta de um semi Estado social no Brasil representado pela PEC 241 (agora renomeada para PEC 55 na votação pelo Senado) corresponde a um dos mais expressivos exemplos de que o Brasil a cada dia que passa adota as vestimentas engomadas do que Wacquant denomina de Estado liberal-paternalista: “liberal e permissivo no topo, em relação às corporações e à classes superiores, e paternalista e autoritário na base, em relação àqueles que se acham imprensados entre a reestruturação do emprego e o recuo da proteção social.” (WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Editora Revan, 2007. P. 35) 


Essa proposta, assim como praticamente toda a atuação desse governo antipobre, apresenta-se como um tipo de traição explícita de toda a parcela do eleitorado que esperava uma maior atuação e investimentos nos setores relacionados a uma política de proteção social (como saúde, escola, previdência etc). 


Trata-se de uma forma de institucionalização e propagação de uma verdadeira guerra contra os pobres por um período de 20 anos. Levando em conta as funções que o Estado penal tende a exercer quando há uma considerável atrofia do Estado social, as condições para uma maior intensificação de uma verdadeira ditadura sobre os pobres estão sendo instauradas por essa roupagem brasileira do Éden neoliberal, o qual conta com a ajuda do STF para contribuir para que o Brasil consiga subir mais uma posição no pódio da escalada mundial do hiperencarceramento, e com a grande ajuda de uma das composições mais reacionárias do Congresso Nacional desde 1964. As camadas mais pobres ficam, no final das contas, com menos que os restos dos pratos do pomposo banquete promovido pelo atual governo.       



segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Uma cosmologia pentecostal à brasileira.



Arte: "Alegoria do Bom Governo" de Ambrogio Lorenzetti

Por Danilo José Viana da Silva



Em um momento em que parece haver uma intensificação dos movimentos e das ações sociais em prol dos direitos das minorias e dos estigmatizados socialmente, observa-se um tipo de reação, de intensificação das forças reacionárias apoiadas no gospel pentecostal da teologia da prosperidade. O fato de a vereadora mais bem votada em Recife ser uma representante das pautas pentecostais contra, por exemplo, as lutas travadas pelos movimentos feministas, e a vitória eleitoral de Marcelo Crivella para o posto de prefeito do Rio de Janeiro, podem ser vistos como exemplos patentes dessa reação conjunta e eficiente. 

Mas, para que esse efeito de reação não fique reduzido a imagem dos pináculos do mundo político, é preciso mencionar que no interior de Pernambuco, em alguns municípios, temas e músicas pentecostais há muito são utilizados nas propagandas eleitorais como formas de transfiguração dos projetos de poder que, via de regra, viabilizam vantagens para uma ou outra das famílias na luta pelo poder político municipal. Essa tonalidade pentecostal da campanha eleitoral acaba contribuindo para que os candidatos passem uma imagem para a população de que o poder político corresponde a uma continuação do poder de Deus na terra. 

Não se pode esquecer também a imagem do poder político que esses lideres acabam veiculando: o poder  político é tomado como um tipo de ordem mundana e terrena que corresponde, na verdade, a uma continuação da ordem divina e celestial. Através de toda uma ordem escalonada e hierárquica onde, no ápice haveria Deus e a ordem celestial, passando pela Igreja e a ordem hierocrática até chegar ao poder político e mundano ( um dos poderes mais baixos na ordem escalonada da cosmologia e propício a se corromper e que por isso deveria se submeter aos preceitos da Igreja), essa corrente reacionária pentecostal pode buscar suas bases ideológicas em uma imagem cosmológica do mundo. 

Na própria retórica da advogada Janaina Paschoal no processo de Impeachment pode-se observar vários elementos típicos das pregações pentecostais e  de cura das almas, tais como a entonação, a hexis corporal... Sendo assim, o próprio processo de Impeachment pôde ser justificado como uma continuação da vontade de Deus na terra e a Constituição Federal pôde ser tomada como um “livro sagrado que o PT não assinou”, pois atrelado a toda essa cosmologia está todo um processo de demonização do PT e da esquerda reconhecida como defensora dos direitos das minorias. Observa-se o quanto os próprios partidos acabam sendo reconstruídos a partir de esquemas religiosos com enfoque na mística pentecostal. Observa-se o quanto as próprias pautas que não se enquadram nos esquemas do gospel pentecostal podem ser tomadas como um tipo de encarnação do demônio na terra. É sintomático que, por exemplo, um dos mais conhecidos e polêmicos porta-vozes nacionais dessa ideologia tenha chegado a comemorar a vitória eleitoral de Crivella como uma vitória contra “o capeta”. 

A ordem social terrena é tomada como uma continuação da ordem divina como, diria Weber, uma “Teodiceia da sorte dos dominantes”, e, como tal, o que acontece no mundo pode ser transfigurado pela mística pentecostal. Neste ritual, como em muitos outros, a histeria pode ser vista como parte componente. A parcela de autonomia do campo político, que requer que os problemas políticos sejam tratados de acordo com os esquemas constitutivos do habitus político, está em xeque, e isso não é de hoje. A reconstrução teológica das relações de concorrência política pode ser visto como uma forma consideravelmente eficiente de dissimulação da dominação política e econômica que não se mostra enquanto tal, mas enquanto continuação da vontade de Deus na cadeia do Ser.          

sábado, 29 de outubro de 2016

Sobre "Melancolia do Poder" de Vladimir Safatle.



Por Danilo José Viana da Silva


Muito interessante, debate louvável. Porém, gostaria apenas de fazer alguns questionamentos que as vezes, por conta do conforto escolástico que a vida acadêmica pode nos propiciar, são ignorados ou esquecidos:   Quais são as condições sociais de produção dessa potência afirmativa da imaginação? Em outras palavras, será que essa potência é pensada de forma equivalente ao bom senso que, segundo Descartes, “é a coisa mais bem distribuída do mundo”? 

Quando se pergunta sobre as condições sociais de produção da imaginação, da resistência política e da tomada de consciência, o que acaba entrando em jogo é justamente a questão referente a quais probabilidades de as pessoas que vivem em um contexto de miséria e pobreza extremas (tal como aquelas retratadas no documentário “Garapa” https://www.youtube.com/watch?v=Cz76iw4r2_I ) chegarem ao nível de uma imaginação polítcia que pressupõe uma certa inclinação e cultura políticas para a resistência em contraposição a resignação. 

Em outras palavras, como ficaria o caso daqueles e daquelas que, historicamente retratados em diversas obras literárias e artísticas, tais como “Vidas Secas” de Graciliano Ramos e nas obras de Portinari, derrotados pelo sol escaldante e moralmente humilhados em uma situação de aguda desigualdade econômica e social, e que, sem expectativas nem sobre o presente ou sobre o futuro, foram desapossados das oportunidades de fazer parte da própria atuação efetiva na política? Como ficaria a condição dos mutilados socialmente e simbolicamente, daquelas pessoas submetidas, pela situação degradante em que vivem, a um estado de invisibilidade cívica”? 

Esse problema nos leva também a perguntar o seguinte: para quem esse discurso é realizado? Para aqueles e aquelas que, pelo fato de terem um acesso considerável a uma educação e a um capital cultural e social para a luta política, em contraposição a resignação, podem efetivar essa resistência? Quais as condições sociais da “experiência da intervenção política” e da “indignação política”? 

Como explicar a situação de todos e todas que, por não poderem perder uma “crença” que nunca tiveram, justamente pelo fato de estarem desapossadas das condições de acesso a cultura política necessária para se acreditar na política, estão relegadas a uma vida mutilada e que sofrem os efeitos do que o próprio Safatle chega a chamar, no debate, de “princípio de exclusão brutal”? Se pensarmos de acordo com a relação gangorra entre os conceitos de ‘Saída’ e ‘Voz’ desenvolvidos por Hirschman, como explicar a falta de opções de ‘Saída’ para todos aqueles e aquelas que dependem dos serviços públicos de saúde e educação, e como explicar que, mesmo diante da eminente aprovação da PEC 241, as camadas mais pobres e estigmatizadas ainda não exerceram com vigor, diante do perigo eminente, a ‘Voz’, a resistência e exigência de melhores serviços públicos? Quais as condições sociais de produção da ‘Voz’, da resistência política? 

Para aqueles e aquelas que, por viverem em situações degradantes, dependem de uma prestação maior e mais eficiente dos serviços públicos  de saúde, educação  e assistência, a opção pela ‘Saída’, ou seja, a opção por não utilizar mais esses serviços tendo em vista a sua prestação degradante, pode ter como efeitos a desnutrição, a fome e a morte.            

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Sobre os contrafogos





Por Danilo José Viana da Silva



Leituras relevantes para os dias atuais. Mostram o quanto um conhecimento mais aprofundado sobre o mundo social pode contribuir para uma  maior compreensão de como se constitui a complexa estrutura de relações de força que fundamenta a dominação econômica e simbólica em tempos de invasão neoliberal de desmonte das políticas sociais de inclusão e de precarização do trabalho, e o quando o conhecimento dessas intricadas relações que caracterizam as artimanhas da razão imperialista pode contribuir para uma ação mais eficiente contra ela.  

Bourdieu destrincha as artimanhas e os ingredientes que constituem o conhecimento pseudocientífico dos mais diversos propagadores do senso comum neoliberal que, mediante uma retórica cientificista de dessocialização da economia, pretendem fazer passar suas velas neoconservadoras por lanternas sociológicas; as mais variadas e complexas relações entre os agentes do campo jornalístico e como eles contribuem para esse tipo de dominação, juntamente com as filosofias de supermercado produzidas pelos filósofos-jornalistas; como a vulgata neoliberal, constituída por termos como “globalização”, flexibilização”, “pluralismo”, etc, corresponde a uma das facetas de dissimulação dos projetos de precarização dos direitos sociais; como a atuação dos mais diversos agentes do campo político e econômico contribui para a implantação “novidadeira” de um projeto de menos Estado no setor econômico e empresarial e de mais Estado policial e repressor para as camadas mais pobres. 

Enfim, demonstrando o nível de complexidade de todo um conjunto de relações que contribuem para o sucesso da invasão neoconservadora travestida de ordem evidente do mundo no campo do poder, onde os mais diversos representantes dos campos político, econômico, jornalístico e universitário atuam com vigor em prol do fortalecimento da “Mão direita” do Estado e do enfraquecimento de sua “mão esquerda”, Bourdieu sustenta que um movimento ação conjunto, que englobaria tanto intelectuais não aprisionados em suas torres de marfim acadêmicas quanto militantes engajados, poderia se afirmar como um contra-poder eficaz.      

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Efeitos de homologia


Por Danilo José Viana da Silva



Um dos consideráveis indícios de como o capital jurídico em seu estado objetivado em suportes materiais (o que quer dizer que a sua percepção é tributária de determinadas categorias cognitivas de construção do mundo – o capital jurídico em sua forma incorporada -  a partir das quais os objetos podem significar algo em contraposição a insignificância) tende a exercer um efeito de transfiguração das lutas de classe entre dominantes e dominados corresponde ao contraste entre o estado de determinados núcleos da Defensoria Pública estadual e o mármore opulento dos escritórios de advocacia especializados em direito empresarial.













É nesse aspecto que se pode sustentar uma relação de homologia entre as relações entre dominantes e dominados no espaço social com as relações entre as disciplinas jurídicas, as instituições do campo jurídico e as relações de oferta e demanda de determinados serviços jurídicos e o quanto eles podem estar direcionados aos interesses de determinadas categorias de clientes.

Um dos efeitos simbólicos do direito consiste justamente em sua capacidade de, a partir de sua lógica própria, retraduzir as relações de força econômicas e políticas que exercem efeitos nas relações de concorrência reguladas no campo jurídico. As mais diversas relações entre oferta e procura de determinados serviços jurídicos correspondem a exemplos consideráveis de como as lutas de classe existem em formas eufemizadas pelo trabalho de formalização jurídica.

No caso das imagens, tratando-se de uma instituição incumbida da defesa dos direitos dos considerados juridicamente como hipossuficientes e de um escritório especializado na defesa dos direitos e demandas dos dominantes economicamente, as relações entre as ofertas de determinados serviços jurídicos e determinadas categorias de clientes tende a exercer um efeito de homologia entre as relações no campo jurídico e as lutas de classe no espaço social. A oferta de determinados produtos e serviços jurídicos está relacionada com os interesses de determinadas categorias de clientes e as posições que eles ocupam no espaço social.

É assim que, como lembra Bourdieu, “à procura jurídica deve ser imputada menos a transações conscientes do que a mecanismos estruturais tais como a homologia entre as diferentes categorias de produtores ou vendedores de serviços jurídicos e as diferentes categorias de clientes.” (BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: O poder simbólico. P. 251). 

À medida que o campo jurídico possui uma fraca autonomia que se traduz em sua pouca capacidade de retraduzir, mediante a sua lógica própria, as pressões do mundo econômico e político, ele pode desempenhar um papel relevante para reproduzir a ordem simbólica e social.                              


segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Sobre a vulgata planetária do governo anti-pobre





Por Danilo José Viana da Silva




Um dos termos mais característicos da vulgata global neoliberal de desmonte dos programas sociais é “Flexibilização”. Ele corresponde a um indicador das tomadas de posição no campo político dos mais variados governos que adotam, com a ajuda de toda uma rede interligada de agentes que se apresentam com a bandeira da “novidade”, um projeto de precarização do trabalho. Através da considerável flacidez desses termos, os projetos mais nefastos para toda a classe de trabalhadores assalariados podem ser eufemizados e adocicados de acordo com uma vulgada global. 

São  “termos isolados e aparentemente técnicos como ‘flexibilité’ [flexibilização] (...) que, por encapsularem e silenciosamente comunicarem toda uma filosofia de organização individual e social, adaptam-se bem a funcionar como verdadeiras senhas e lemas políticos (nesse caso, a necessidade de redução e difamação do Estado, a redução da proteção social e a aceitação da difusão do trabalho assalariado precário como um destino, ou melhor, uma benção).” (BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. A astúcia da razão imperialista. In.: O mistério do ministério. Ed. Revan. P. 211-212) 

Eles funcionam como parte da Meca simbólica a partir da qual o projeto de imposição do trabalho precário pode ser implementado docemente; eles correspondem, assim como os termos “simplificação do direito do trabalho”, a verdadeiros chavões que dissimulam, ainda que mal, todo esse projeto de política cuja remodelação do Estado está baseada em uma política de endurecimento da legislação penal e policial (juntamente com as investidas bélicas do atual Ministro da Justiça que já sinalizou a necessidade de se investir menos em “pesquisa e mais em armas”), com a precarização do trabalho, com a redução dos investimentos em educação (com sinalização do atual Ministério da Educação de cortes de cerca de 45% dos investimentos direcionados as Universidades Federais e com a suspensão de várias bolsas de estudo tanto do PIBIC quanto de Mestrado e Doutorado, juntamente com a mais recente sinalização do atual governo no sentido de suspender  políticas que visavam reduzir os índices de analfabetismo).

 Tudo isso muito bem recheado com os mais diversos escândalos que,  decorrentes dos mais diversos vazamentos que frequentemente pipocam nas mídias virtuais e televisivas onde conversas entre um senador e ex-ministro com o ex-presidente da Transpetro,  apontam claramente que esse acordo travestido de Impeachment entre os mais diversos regentes dos mundos econômico, midiático, jurídico e político visa  ( além da realização dos seus próprios interesses custe o que custar)  o “estancamento da Sangria”, como fala um dos interlocutores, representada pelas investigações e divulgações dos esquemas de corrupção dos personagens do Congresso Nacional. Essa reconfiguração do campo do poder nada tem a opor a um verdadeiro projeto que tende a contribuir para a intensificação da insegurança objetiva e subjetiva das camadas mais pobres. 

Com a imposição de uma imagem do assalariado como um empresário dinâmico de suas próprias conquistas, verdadeira versão self made man à brasileira. Trata-se de um projeto que ataca amplamente os setores, ainda que fragilizados, das políticas de proteção social. São tempos nada engraçados. De fato, “não há motivos para rir”, como diz Bourdieu a Günter Grass em um debate sobre “a invasão conservadora.”                        


terça-feira, 16 de agosto de 2016

Maupeou e os juristas





Por Danilo José Viana da Silva



No prelúdio da Revolução, um dos parlamentares franceses que acabou gerando um considerável desconforto para os juristas foi René de Maupeou. Em um momento onde coexistiam dois princípios opostos de transmissão dos privilégios, quais sejam, o “princípio hereditário” e o “princípio baseado no mérito”, no capital cultural, e regulado pelo direito, uma das contradições dos juristas corresponde ao fato de terem sustentado a necessidade de instauração do princípio meritocrático no que diz respeito a distribuição dos ofícios e dos privilégios nobiliárquicos, entretanto no que concerne aos seus próprios privilégios eles se posicionavam ao lado do principio dinástico, ou seja, do princípio da hereditariedade. 

Como lembra Bourdieu a respeito, “como detentores de um capital cultural que os opõe aos nobres, os juristas estão do lado do mérito, do lado do que foi adquirido, por oposição ao inato, ao dom etc. ; no entanto, começam a pensar em suas aquisições como uma espécie de inato devendo ser transmitido e, portanto, já estão numa contradição.” (BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. Companhia das Letras. 2014. P. 419) E o grande desconforto que Maupeou criou para os juristas foi querer aplicar, com sua reforma, “um princípio não dinástico para os juristas que eram críticos do poder dinástico, o que desencadeou uma revolta da nobreza de toga.” (BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. P. 420). 

Os juristas (na medida em que estavam do lado do procedimento baseado no mérito e no adquirido em oposição ao inato e ao sangue no que diz respeito a forma de distribuição dos cargos e dos privilégios, mas ao se tratar dos seus próprios privilégios eles se posicionavam ao lado da hereditariedade, do inato) acabaram ocupando uma posição contraditória e ambígua, posicionando-se ao lado do poder dinástico como forma de reprodução da distribuição de seus privilégios, mas contra o poder dinástico e a favor do mérito e do adquirido de acordo com a razão jurídica que eles contribuíram para construir em se tratando da forma de distribuição de privilégios que não são os seus. Para garantir os seus interesses se posicionavam ao lado do poder dinástico e a favor do rei, mas quando não era para garanti-los posicionavam-se ao lado do direito e da razão de Estado.                  



domingo, 14 de agosto de 2016

Sobre Direito e violência simbólica









Imagem do quadro "Les Gens de Justice" de Honoré Daumier.



Por Danilo José Viana da Silva



           Uma das características do exercício da violência simbólica é o fato de ela se exercer com a cumplicidade, em grande medida inconsciente, daqueles que a ela estão sujeitos; ou, nas palavras de Bourdieu, ela se caracteriza pelo fato de ela “não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto maior quanto mais inconsciente, e até mesmo mais sutilmente extorquida – daqueles que a suportam.”(BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: O poder simbólico. Ed. Bertrand Brasil. 1998. P. 243). 


          E quando se trata do efeito de violência simbólica para o qual o direito contribui (não apenas como um efeito de sua linguagem característica que tende a contribuir para excluir os profanos das lutas reguladas pelo direito, mas também por uma hexis corporal específica, um modo específico de se vestir que pode ser tomado como uma extensão do efeito de formalização, além de exercer um efeito de homologia com os gostos mais distintos da cultura dominante) não se pode deixar de lado os mais variados efeitos consideravelmente violentos em que os mais distantes ou desapossados da cultura dominante e legítima, principalmente nos municípios do interior de Pernambuco, acabam sofrendo. Onde, por exemplo, como me contou certa vez uma advogada, uma senhora lhe confessou que realizou uma oração aos pés da cama antes de entrar em contanto com ela para solicitar os seus serviços, ou, como em um caso em que uma senhora providenciou que se fizesse uma moldura de uma simples peça judicial redigida por um advogado sobre um de seus direitos.


           Esses e vários outros casos podem ser vistos como exemplos onde as práticas de formalização e de codificação jurídicas realizadas por um corpo profissional tendem a contribuir, assim como a racionalização dos textos sagrados pelo corpo de sacerdote na sociologia da religião de Weber, para a reprodução da crença na autoridade dos textos jurídicos não apenas por parte dos juristas, mas também, como lembra Bourdieu, “para fundamentar a adesão dos profanos aos próprios fundamentos da ideologia profissional do corpo de juristas, a saber, a crença na neutralidade e na autonomia do direito e dos juristas.”(BOURDIEU. Op. Cit. P. 244).


         Os constrangimentos e receios sofridos por parte dos profanos diante das mais diversas expressões dessa forma de capital ao mesmo tempo simbólico e cultural que é o capital jurídico (seja por parte do corpo de juristas ou por parte das arquiteturas opulentas dos prédios onde se dá o trabalho ora acadêmico ora forense de formalização e inculcação jurídica – sejam as faculdades de direito ou os Tribunais – corresponde a um exemplo do efeito de violência simbólica baseada no desconhecimento do arbitrário fundador do direito.           


sábado, 7 de maio de 2016

Sobre o espírito de disciplina




“Muitas vezes já se zombou do trabalho desempenhado pelo empregado que realiza sempre os mesmos movimentos; mas ele não é mais do que a caricatura, a forma exagerada de uma existência que todos nós compartilhamos em alguma medida.”  (DURKHEIM, Émile. A educação moral. Ed. Vozes, 2008. P. 136)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Sobre a piedosa hipocrisia jurídica





Por Danilo José Viana da Silva




A piedosa hipocrisia como “uma homenagem que o vício tributa a virtude” (BOURDIEU, Pierre. Os juristas: os guardiões da hipocrisia coletiva.) denota a crença, consideravelmente compartilhada pelos envolvidos nas lutas jurídicas, na eficácia simbólica do direito como um produto absolutamente autônomo as pressões políticas, econômicas...ou seja, na crença no campo jurídico e nos seus produtos como entidades transhistóricas.


Neste sentido, a eufemização dos interesses particulares de seus envolvidos – o que inclui também todo um conjunto de entidades, instituições e órgãos, tais como a OAB, o MP, Poder Judiciário  -   pode ser tanto mais eficaz simbolicamente quanto mais capital simbólico eles possuírem (uma das possibilidades – não a única – de medição do nível de capital simbólico de um agente integrante do campo é a consideração do capital simbólico atrelado a posição que ele ocupa em seu interior).


Levando isso em conta, um agente do campo jurídico que goza de um considerável volume de capital de reconhecimento entre seus pares pode jogar com as regras do jogo de uma maneira equivalente ao modo como, na sociedade Cabila, como lembra Mouloud Mammeri fazendo referência a crença compartilhada por essa sociedade, o amusnaw pode transgredir a regra “visto que podia observá-la com perfeição, (e) porque vê mais longe.”(Diálogo sobre a poesia cabília: entrevista de Mouloud Mammeri a Pierre Bourdieu. In.: Revista de sociologia e política. n. 26: 61-81. JN. 2006. P. 67).

Os interesses políticos e econômicos dos juristas que, sem o trabalho de transfiguração jurídica, seriam reconhecidos como “mesquinhos”, “oportunistas”, é realizado em nome da crença nos produtos jurídicos tomados como universais transhistóricos, como entidades puras.


É assim que os agentes do campo jurídico podem jogar com as regras do jogo para a realização de seus interesses particulares e ao mesmo tempo prestar homenagens ao universal. É assim que eles podem jogar com as regras do jogo com a aparência de jogar segundo as regras, ou, como lembra Bourdieu, “a piedosa hipocrisia jurídica é uma homenagem que os interesses específicos dos juristas tributam à virtude jurídica.” (BOURDIEU, Pierre. Op. Cit.)