segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Sobre um persistente par de oposição ou como a sociologia reflexiva permite superá-lo





Foto: "BUSY" LOUIE em sessão de sparring com Ashante



Por Danilo José Viana da Silva



Introdução


Um dos pares de oposições mais persistentes e combatidos pela sociologia de Pierre Bourdieu corresponde a falsa oposição entre teoria e prática. Tomando como ponto de partida o fato de que qualquer prática científica digna desse nome corresponde a uma ruptura com o senso comum, essa oposição fundamenta não apenas as estruturas subjetivas de percepção e construção cognitiva do mundo, mas também as estruturas objetivas do mundo social: tome-se como exemplo os procedimentos para a aquisição da Cartenira Nacional de Habilitação no Brasil, em que os pretendentes são avaliados em uma primeira fase dita “teórica” e outra, separada da primeira, dita “prática”.

      Assim, tendo ciência do quanto essa oposição fundamenta tanto objetivamente quanto subjetivamente a vida social, a sociologia de Pierre Bourdieu corresponde a uma exigência de uma reflexão crítica sobre os instrumentos de construção da problemática e do objeto que também  correspondem a uma das formas mediante as quais essa oposição dicotômica pode se afirmar na prática da pesquisa em ciências sociais. Neste caso, tal sociologia realiza uma espécie de dupla ruptura: ela rompe tanto com o senso comum contra o qual  o conhecimento científico se construiu, mas também rompe com o senso comum erudito que tende a reproduzir, por falta de uma reflexão mais apurada sobre os instrumentos e as disposições que empregam para construir o real, a aludida oposição.

Levando-se em conta a ruptura com essa oposição que a noção de habitus enquanto senso prático - quer dizer, enquanto um conjunto de princípios adquiridos via socialização e produtores de práticas que não podem ser tomadas como meras execuções de uma regra sob pena de se destruir a verdade das práticas que a pesquisa científica deve levar em conta -  pôde engendrar, o presente texto também aborda alguns aliados de Bourdieu nesse trabalho de reflexão para se desvencilhar dessas falsas oposições, tal como o filósofo Charles S. Peirce, bem como alguns relevantes desdobramentos que a noção de habitus pôde engendrar na etnografia  do universo pugilístico realizada por Loïc Wacquant.


1. A persistência do par de oposição entre teoria e prática


Como exemplo de como a oposição entre teoria e prática estrutura objetivamente o mundo social, o que tende a contribuir para a sua reprodução mediante o trabalho de inculcação mental realizado pelo próprio mundo social, pode-se mencionar o processo de avaliação para a aquisição da Carteira Nacional de Habilitação no Brasil.

Estruturado entre duas fases distintas e separadas, uma dita “teórica” e outra dita “prática”, esse procedimento de institucionalização dessa oposição dicotômica tende a contribuir para a sua reprodução mediante a  contribuição  do trabalho de inculcação mental e escolar possibilitado pelas aulas ditas “teóricas” e “práticas.”

É neste sentido que essa oposição existe tanto exteriormente, reificada nas estruturas institucionais e nos processos de avaliação reconhecidos pelo Estado como obrigatórios para todos aqueles que pretendem dirigir um automóvel de forma regular, quanto no interior dos próprios agente sociais, mediante as categorias cognitivas adquiridas via socialização.

              A divisão entre a fase chamada “teórica” e a fase chamada “prática” pode ser tomada como um exemplo, entre outros, de que esses pares de opostos historicamente constituídos estruturam a um só tempo tanto a realidade social, quanto os esquemas incorporados de percepção e apreciação do mundo. À medida que esses pares constituem os próprios métodos de avaliação institucionalizados, tal como no exemplo das duas fases, eles acabam contribuindo para potencializar o efeito de reprodução das estruturas sociais e simbólicas.

O exemplo citado pode ser tomado como um dos casos mais expressos e paradigmáticos da oposição entre teoria e prática. Esta oposição é atuante em diversos universos de práticas específicas, tal como no próprio universo intelectual. E uma das formas pelas quais ela engendra os seus efeitos corresponde justamente as distinções entre conhecimento puro, entendido como um tipo de conhecimento que contém apenas a forma a partir da qual determinado objeto é conhecido, e o conhecimento prático ou aplicado, ou então, através da oposição entre ação e pensamento.

Essa oposição (teoria e prática), como lembra Bourdieu, encontra-se


Profundamente inscrita no inconsciente escolástico, essa oposição domina todo o pensamento. Funciona como um princípio absoluto de divisão, ela impede se descubra por exemplo que, como lembra Dewey, a prática adaptada (falar uma língua ou andar de bicicleta) constitui um conhecimento e encerra inclusive uma forma bastante particular de reflexão.1



Neste caso, a aludida oposição corresponde a um considerável obstáculo a pesquisa científica em sociologia, pois ela impede que se leve em conta as práticas reconhecidas como mais elementares e um tipo de reflexão que está abaixo do nível da consciência.

Pelo fato de tal oposição contribuir para a redução do pensamento apenas  a razão raciocinante, ao pensamento racional e consciente, ela acaba ignorando o quanto a ação, ou quanto determinada prática, está implicada em um tipo de reflexão que não se reduz a razão raciocinante.   Ela contribui para ignorar as práticas que, assim como os lances improvisados em um jogo de futebol, não têm a razão como princípio, mas que nem por isso deixam de ser razoáveis.

Uma das contribuições mais relevantes do pragmatismo de Charles S. Peirce para a sociologia reflexiva desenvolvida por Bourdieu corresponde justamente a crítica a tal par de oposição. Como lembra Peirce, “a função global do pensamento consiste em produzir hábitos de acção.”2 Sendo, segundo Peirce, a função principal do pensamento a produção da crença, de um senso comum, de uma crença enquanto um estado de apaziguamento mental, e sendo a função da crença “a criação de um hábito,”3 é só a custa da reprodução de uma verdadeira falácia que a ação pode ser desvinculada do pensamento. Em Peirce eles estão profundamente imbricados a ponto de a relação entre pensamento e ação não está sujeita ao voluntarismo. Todo hábito, toda ação, é produto da ação do pensamento que produz uma determinada crença, um determinado senso.
Além de tratar o pensamento como uma ação efetiva, ele não fica reduzido a razão raciocinante ou a teoria. Segundo Peirce, o pensamento jamais pode ser tão somente visto como uma reflexão consciente e acadêmica. Quando se desconsidera essas considerações, as práticas de determinados agentes podem ser mutiladas por uma forma de construção dessas práticas que ignora completamente a reflexão inconsciente (não acadêmica, não teórica) que está imbricada na própria prática.

À medida que uma reflexão sobre os perigos propiciados pela persistência desse par de oposição (teoria e prática) é ignorada, as condições de pesquisa cumprem os mais sugestivos preceitos para se ignorar a própria “pluralidade das formas de “inteligência,”4 além de contribuir para impedir, como lembra Bourdieu, que “se produza um conhecimento adequado do conhecimento prático”5 sem cair em “um certo populismo irracionalista e reacionário”6 que a “exaltação da prática e da tradição”7 tende a fortalecer.

            É o desconhecimento do desconhecimento dos efeitos perniciosos que essa oposição pode engendrar para as ciências sociais que permite a desconsideração da


Lógica de todas as ações  que são  razoáveis sem ser   produto de um plano razoável; habitadas por um espécie de finalidade objetiva sem serem conscientemente organizadas em relação a um fim explicitamente constituído; inteligíveis e coerentes sem serem originárias de uma intenção de coerência e de uma decisão deliberada.8 


              É preciso lembrar a importância de se por em xeque os pares de oposições mais persistentes (tendo em vista o fato de estarem profundamente arraigados no inconsciente social) para a pesquisa etnográfica. Neste caso, pode-se mencionar a pesquisa etnográfica desenvolvida por Wacquant nos gyns dos guetos de Chicago. Como lembra Wacquant


Tornar-se boxeador é apropriar-se, por impregnação progressiva, de um conjunto de mecanismos corporais e de esquemas mentais tão estreitamente imbricados que eles apagam a distinção entre o físico e o espiritual, ente o que emerge das capacidades atléticas e o que diz respeito às faculdades morais e à vontade. O boxeador é uma engrenagem viva de corpo e de espírito que despreza a fronteira entre razão e paixão, que explode a oposição ente ação e a representação (...)9


              Quando o pensamento é reduzido a uma mera atividade contemplativa e destemporalizante da teoria, do saber teórico e consciente, as condições de pesquisa se tornam férteis para a reprodução de um obstáculo a pesquisa etnográfica. Esse obstáculo impede que se compreenda que a prática do boxe, como lembra Wacquant, está completamente imbricada com uma forma bastante específica de reflexão que nada tem a ver com a reflexão consciente e racional.

              A própria prática do boxe pode ser vista como uma ação que não pode passar pela consciência discursiva. Cada ação é resultado da incorporação progressiva de um conjunto de saberes não codificados expressamente, mas que se fazem corpo no próprio pugilista. Neste caso, como sustenta Wacquant, o boxe corresponde “a um saber prático composto de esquemas imanentes a prática.”10 O boxe, assim, corresponde a uma prática que está completamente imbricada em um saber. O corpo do pugilista corresponde a um típico exemplo de um saber realizado, incorporado. O boxeador é uma regra feita corpo. Quer dizer que só o treinamento constante e árduo “permite que se adquira esse domínio prático das regras do pugilismo, o qual exatamente dispensa que essas regras se constituam como tal na consciência.”11

A oposição entre ação e pensamento (teoria e prática) cientificamente não faz nenhum sentido, ela corresponde a um verdadeiro obstáculo cuja superação pode ser tomada como uma das condições para o progresso da pesquisa em ciências sociais. Quando se trata de pensar processos de compreensão pelo corpo, de “compreensão do corpo,”12 pensamento e ação estão tão profundamente imbricados que a reprodução da oposição entre teoria e prática possui todos os pré-requisitos para a destruição da própria especificidade das práticas que uma pesquisa que se pretende rigorosa deveria construir. A prática do boxe, tal como nas pesquisas desenvolvidas por Wacquant, corresponde a um conjunto de regras em estado incorporado (habitus), ou seja, não faz nenhum sentido pensar em regras que existiriam no exterior dos agentes e que só seriam realizadas a partir de um ato consciente.

Assim, pensar em habitus pugilístico é pensar em um ethos feito corpo; em uma regra feita corpo; em um conjunto de esquemas de percepção e, ao mesmo tempo, produtor de práticas. O habitus pugilístico corresponde a um efeito “de um trabalho de aperfeiçoamento do corpo e do espírito.”13  Um e outro são aperfeiçoados simultaneamente.

Se o progresso das ciências sociais tem como uma de suas condições a ruptura com ao seu desenvolvimento (tal como o aludido par de oposição), isso ocorre, em grande parte, porque ela faz, como lembra Bourdieu em sua aula inaugural no Collège de France, “recuar a tentação da magia, essa hybris da ignorância ignorante de si mesma e que, caçada na relação com a mundo natural, sobrevive na relação com o mundo social.”14

Neste sentido, tratar, por exemplo, as práticas dos juristas como meras execuções de regras corresponde a um procedimento comparável aquele com o qual, segundo Pascal, os geômetras tentavam racionalizar segundo o método geométrico as práticas mais sutis e menos codificáveis pela razão raciocinante. Como ele lembra,

os geômetras querem tratar geometricamente essas coisas sutis e tornam-se ridículos, procurando começar pelas definições e em seguida pelos princípios, o que não é a maneira de proceder nessa espécie de raciocínio. 15      
             

  À medida que as relações de força no interior do microcosmo jurídico são reduzidas a meras relações comunicativas entre agentes intercambiáveis, as condições de pesquisa se tornam propícias para a mutilação, mediante princípios estéreis, dessas relações. As “relações de comunicação por excelência – são também relações de poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre locutores ou seus respectivos grupos.”16    

A ruptura com o economicismo que tende a reduzir essas relações a buscas racionais e conscientes para a maximização  do lucro monetário, assim como a ruptura com o culturalismo que, como uma espécie de extremo oposto do economicismo, tende a reproduzir uma visão encantada da cultura onde os agentes seriam reduzidos a meros maximizadores de conhecimento, reduzindo este a um tipo de conhecimento purificado de tudo o que pode estar relacionado ao poder, corresponde a uma exigência da sociologia do campo jurídico desenvolvida por Bourdieu.






Conclusão   


Correspondendo a um par de oposição que fundamenta inconscientemente tantos as estruturas objetivas do mundo social quanto as estruturas subjetivas, a falsa oposição entre teoria e prática corresponde a um obstáculo epistemológico para o desenvolvimento da pesquisa em ciências sociais.

Na medida em que ela fundamenta alguns pares de oposições que são constitutivos de tomadas de posições no campo das ciências sociais, tais como as tomadas de posição a favor da sociologia empirista em contraposição a sociologia teórica, a oposição entre teoria e prática corresponde mais a um entrave do que uma ferramenta verdadeiramente útil ao progresso das ciências sociais. É neste sentido que a vigilância epistemológica deve maximizar os seus instrumentos no combate a esses pares de oposições que, inconscientemente, contribuem para a construção de problemas e de objetos que só tem a ver com problemas e objetos verdadeiramente científicos pelo fato de se autointitularem científicos. 

Por desconsiderar a importância de uma reflexão mais apurada sobre os efeitos mais perniciosos que esse par de oposição pode engendrar, a pesquisa em ciências sociais acaba cumprindo os requesitos para a destruição da lógica da prática que nada tem a ver com a lógica destemporalizante que tende a reduzir as ações dos agentes a execuções de regras ou a meros reflexos de estruturas.

É neste sentido que a noção de habitus enquanto sentido do jogo incorporado desenvolvida por Pierre Bourdieu, assim como a noção de campo, corresponde a um relevante instrumento que exige que se leve em conta justamente aquilo contra o que a própria sociologia teve que se constituir.

Em outras palavras, ela exige que o sociólogo leve em conta a racionalidade específica que orienta as práticas dos agentes em determinado campo sem reduzi-las aos esquemas puramente formais de construção do objeto e das práticas.  

E esse tipo de exigência leva a um questionamento dos instrumentos de construção científica das práticas dos agentes. Como um consistente exemplo da importância da noção de habitus para as ciências sociais, abordou-se a pesquisa etnográfica desenvolvida por Loïc Wacquant nos gyns de Chicago. A aludida noção possibilitou se construir a prática pugilística não como mera execução de uma regra exterior aos agentes envolvidos, mas como uma espécie de senso prático incorporado via socialização.

O que exigiu que fosse levando em conta o processo de inculcação e de incorporação de uma lógica do jogo cujos princípios são imanentes a própria prática. Em outros termos, isso exigiu que fosse levando em conta as condições sociais de aquisição dos princípios do universo pugilístico, como o constante e progressivo envolvimento com a prática do boxe é indispensável para se adquirir, abaixo do nível da consciência, o capital corporal necessário para praticá-lo com alguma chance de sucesso. 
   
Assim, os golpes e os movimentos característicos do boxe só podem ser reduzidos a atos plenamente conscientes e calculados com a condição de se destruir a própria lógica das práticas do boxe, onde pensamento e ação estão tão imbricados em um único ato que não faria nenhum sentido atribuir à lógica da prática, neste caso, a cumprimentos de regras que se dariam em um estado plenamente consciente, como se a prática fosse meras execuções conscientes de regras não incorporadas. É neste sentido que a relação entre teoria e prática não se sujeita ao voluntarismo característico da filosofia da consciência.


____________________    
  1. BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 98
2.      PEIRCE, Charles S. Como tornar nossas ideias claras. Trad. António Fidalgo. Universidade da Beira Interior. P. 11
3.      PEIRCE, Charles S. Op. Cit. P. 9
4.      BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. P. 99
5.      BOURDIEU, Pierre. Ibid
6.      BOURDIEU, Pierre. Ibid
7.      BOURDIEU, Pierre. Ibid
  1. BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Trad. Maria Ferreira. 2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. P. 85
  2. WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Trad. Angela Ramalho. – Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. P. 34
  3. WACQUANT, Loïc. Op. Cit. P. 79
  4. WACQUANT, Loïc. Op. Cit. P. 89
  5. WACQUANT, Loïc. Ibid
  6. WACQUANT, Loïc. Ibid
  7. BOURDIEU, Pierre. Lições da aula: aula inaugural no Collège de France em 23 de abril de 1982. Trad. Egon de Oliveira Rangel. 2ª ed. Editora Ática: 2001. P. 35
  8. PASCAL, Blaise. Pensamentos sobre o espírito e sobre o estilo. In.: Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. – 2ª ed. – São Paulo: Abril Cultural. 1979. P. 38
  9. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer – 2ª ed. 1ª reimp. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. P. 24




terça-feira, 5 de maio de 2015

Sobre a rigidez epistemocrática como um obstáculo à luta contra a nova vulgata.


Arte de Mariano Amaral: Terceirização e Tragédias sociais.







Por Danilo José Viana da Silva




“Combater tal política e defender as aquisições mais progressistas do passado significa parecer arcaico. Situação ainda mais paradoxal quando se é levado a defender coisas que de resto quer se transformar, como o serviço público e o Estado nacional, que ninguém pensa em conservar como está ou os sindicatos ou mesmo a escola pública, que é preciso continuar a submeter à crítica mais impiedosa”
                                       (BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2.RJ: Jorge Zahar ED, 2001. P. 41-42)




            A situação atual exige a tomada de atitudes paradoxais, tal como lembra a epígrafe de Bourdieu: exige a defesa de coisas que em um estado normal não deveriam ser defendidas tais como estão, pois precisam ser transformadas.

            Entre essas coisas, estão as grandes conquistas históricas, tais como os direitos trabalhistas e os serviços públicos (consideravelmente precarizados) que estão sendo postos em xeque pelo pacote de políticas neoliberais de precarização do trabalho assalariado e de institucionalização da insegurança ao mesmo tempo subjetiva e objetiva que está sendo aprovado por uma das facetas mais conservadoras do nosso Congresso Nacional.

            Além da defesa desses direitos trabalhistas, por menos eficazes que eles ainda sejam em nosso país, há ainda a luta contra a redução da maioridade penal. Sendo a redução da maioridade um dos componentes desse pacote de políticas neoliberais de penalização da miséria.

            Como lembra um dos maiores pesquisadores sobre o problema, uma das características  da penalidade neoliberal é que ela corresponde a um


regime que pode ser qualificado de “liberal-paternalista”, já que é liberal e permissivo no topo, em relação às corporações e às classes superiores, e paternalista e autoritário na base, em relação àqueles que se acham imprensados entre a reestruturação do emprego e o recuo da proteção social ou a sua conversão em instrumento de vigilância e disciplina.” 1 


            O tratamento de mão de ferro dado àqueles menores que são reconhecidos socialmente como párias sociais, totalmente abandonados por um Estado que a cada dia reduz o seu papel social, corresponde a uma das características das políticas neoliberais made in USA  de “combate” a criminalidade.

            Esta política de precarização dos direitos e de redução da maioridade penal, cega para o combate efetivo as causas da criminalidade  e atuante apenas no combate repressivo e policial no que tange as suas consequências, acaba potencializando ainda mais as condições para o aumento da criminalidade.

            Na medida em que o Estado reduz drasticamente a sua esfera de proteção social com a precarização dos direitos trabalhistas, ele caminha para a institucionalização da insegurança ao mesmo tempo subjetiva e objetiva: essa política de precarização, por se caracterizar pela elevação do risco e da insegurança aos trabalhadores, está baseada no “mito da transformação de todos os assalariados em pequenos empresários dinâmicos.”2  

            Por se caracterizar por uma considerável insegurança estrutural, cultuada pelos papas do neoconservadorismo como uma virtude, em que  instabilidade e flexibilidade são a regra, os assalariados acabam sendo vítimas desprotegidas dessa ilusão propiciada pela filosofia do “faça você mesmo” e do “self help (herdada da crença calvinista de que Deus ajuda aqueles que ajudam a si próprios).”3    

            A política de precarização dos direitos trabalhistas, com todos os seus efeitos de institucionalização da insegurança, acaba contribuindo para a produção de um verdadeiro desajustamento entre as expectativas subjetivas e as suas condições objetivas de realização; onde os assalariados, sem as menores condições de amortecer os efeitos nefastos da hipermobilidade do capital atrelada às políticas de desestruturação do Estado social e de maximização do Estado penal, estão entregues a um “sistema de instabilidade crônica”4  que tem todos os pré-requisitos para a instauração e maximização do precariado, sem falar nas consequências  e custos sociais daí advindos, tais como o “alcoolismo, droga, delinquência, acidentes de trabalho, etc.”5  

            Neste caso, as lutas contra esse pacote de precarização dos direitos trabalhistas e contra a redução da maioridade penal deveriam ser realizadas em conjunto, tendo em vista o fortalecimento e a contribuição a um verdadeiro movimento que conseguiria transpor as barreiras da torre de marfim acadêmica.

            Entretanto, um dos efeitos mais perversos das divisões estruturadas ao mesmo tempo nas coisas (nos manuais doutrinários de direito penal, ou, por exemplo, na instituição de disciplinas  divididas por um rígido muro epistemocrático) e nos cérebros (mediante o emprego de categorias cognitivas de construção de problemas conforme os rígidos limites institucionais impostos como virtude e que, na verdade, mostram “como virtudes pequeno-burguesas de “prudência”, de “seriedade”, de honestidade”, etc., (...) poderiam outrossim exercer-se na gestão de uma contabilidade comercial ou num emprego administrativo, se convertem aqui em “método científico”6) é o de impedir o exercício do pensamento relacional que poderia ser consideravelmente produtivo: pelo fato de tanto a precarização do trabalho quanto a redução da maioridade penal constituírem dois elementos da política contra os pobres e miseráveis, eles possuem as pré-condições para a instauração da insegurança individual e coletiva e para o próprio aumento da criminalidade, além de contribuir para a maximização da superlotação carcerária, verdadeira política de depósito dos párias urbanos. 

            À medida que a rígida distinção entre disciplinas (entre, por exemplo, direito penal, criminologia e direito do trabalho, nos cursos de direito) dificulta uma reflexão mais completa e relacional desse problema, com a desculpa positivista e epistemocrática ( que tem como uma de suas características a confusão entre rigor e rigidez) de que cada uma delas possui o seu “objeto” bem delimitado e circunscrito, as críticas dos estudiosos da justiça criminal mais voltados para a esquerda acabam se parecendo com verdadeiros disparos de balas de festim. O mesmo pode-se dizer dos estudiosos dos  direitos trabalhistas que ignoram completamente os efeitos nefastos da redução da maioridade penal.

            Levando em conta as formas  como as lutas de classe estão presentes no interior do campo jurídico, onde os juristas lutam em prol da maximização do capital jurídico, essas lutas de classe aparecem de forma eufemizada a partir da distinção entre, por exemplo, os juristas mais inclinados a “justiça do povo” e da classe trabalhadora, e os juristas “militantes” do direito empresarial, mais relacionados aos interesses do polo dominante no interior do campo econômico.

            É neste sentido, ou seja, à medida que as lutas de classe são constantemente transfiguradas por um processo de racionalização jurídica, que a luta não apenas acadêmica em prol da defesa dos direitos trabalhistas  ou contra a redução da maioridade pode aparentar,  para, por exemplo, os juristas mais voltados para os interesses dos dominantes economicamente, uma causa pouco “nobre”.

            É neste sentido  que a rigidez epistemocrática do direito (verdadeiro limite de fronteira) pode representar um forte obstáculo a uma possível contribuição na luta contra o avanço neoliberal de precarização do trabalho e de penalização da pobreza: se elas precisam ser pensadas em conjunto, justamente pelo fato de atingirem com maior violência as populações mais pobres, elas também precisam ser combatidas em conjunto, e esse combate jamais deve se limitar aos meros debates acadêmicos.

            É preciso lembrar uma citação de Wacquant a respeito: “Estudantes do bem-estar social e da justiça criminal se unam, vocês não têm nada a perder, exceto suas amarras conceituais.” 7   A rigidez epistemocrática, reduzindo cada um em sua torre de marfim limitada, aprisiona cada scholar em sua redoma escolástica.     
      
                                    


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1.      WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. Trad. Sérgio Lamarão. – RJ: Revan, 2003, 3ª ed. p. 35
2.      BOURDIEU,  Pierre. Contrafogos 2. Trad. André Telles. – RJ: Jorge Zahar Ed, 2001. P. 51
3.      BOURDIEU,  Pierre. Contrafogos 2. P. 31
4.      BOURDIEU,  Pierre. Contrafogos 2. P. 51
5.      BOURDIEU,  Pierre. Contrafogos 2. P. 57
6.      BOURDIEU, Pierre. INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA REFLEXIVA. In: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 41-31
7.      WACQUANT, Loïc. A política punitiva da marginalidade: revisitando a fusão entre workfare e prisonfare. Trad. Julia Alexim. (entrevista)   



terça-feira, 21 de abril de 2015

O Castelo de Kafka e a Violência invisível



Por Danilo José Viana da Silva


A invisibilidade das pressões desencorajadoras dos ambientes mais burocráticos sentidas pelos imigrantes ou por todos aqueles para os quais foram negadas as oportunidades de acesso aos modos de pensamento mais formais (os esquemas de percepção e construção cognitiva do mundo burocrático) corresponde a algo consideravelmente violento. Não é sem explicação o fato de que, quando em contato com os ambientes mais formais (quando, por exemplo, há a necessidade de se converter um simples “pedido” em um “requerimento” construído em uma linguagem protocolar, ou quando há a necessidade de se pronunciar frente a uma autoridade) os desapossados das condições de acesso as propriedades pertinentes (o capital cultural, por exemplo) em uma determinada sociedade sentem muitas vezes um efeito fortemente constrangedor (o que Bourdieu denomina de efeito de Violência Simbólica).  

A situação em que se encontra K. em “O Castelo” (lembrando que K. não é apenas um agrimensor, mas também um ESTRANGEIRO) reflete bem esse efeito de violência silenciosa, essa, como lembra Kafka, “força do ambiente desencorajador, o hábito das decepções, a força das influências imperceptíveis de cada instante – tudo isso ele de qualquer modo temia” (KAFKA, Franz. O Castelo. Trad. Modesto Carone. Companhia das Letras. 2000. P. 43-44) e que mesmo tendo ciência da extrema dificuldade de combatê-las ele ainda sustenta que “era preciso ousar lutar”.( KAFKA, Franz. O Castelo. P. 44). 

         Lutar, mesmo sabendo da ínfima possibilidade de sucesso para todos aqueles que mais sofrem os efeitos dessa violência opaca e muitas vezes imperceptível para todos aqueles que incorporaram a sua lógica e que contribuem, mesmo que inconscientemente, para a sua efetividade. Um dos pontos que podemos encontrar em Kafka, não apenas em “O Castelo”, é justamente o relativo as condições de todos os imigrantes, os estrangeiros, de todos os reconhecidos socialmente como párias, de todos aqueles para os quais parece que todos os caminhos “teriam permanecido não só fechados para sempre, mas também invisíveis.” (KAFKA, Franz. O Castelo. P. 43).       
       



       

domingo, 19 de abril de 2015

Uma exposição sobre as noções de campo jurídico e de habitus na sociologia de Pierre Bourdieu





Por Danilo José Viana da Silva
(Artigo originalmente publicado no IV Congresso  ABraSd de 2013 na Faculdade de Direito do Recife)


Introdução:

         A investigação a respeito das noções de campo jurídico e de habitus precisa levar em conta a necessidade a partir da qual Bourdieu precisou construí-las. Na medida em que se procede dessa maneira, pode-se investigar de uma forma mais proveitosa os obstáculos epistemológicos que as noções de campo e de habitus puderam superar, bem como o quanto tais noções são importantes para a realização do trabalho de construção do objeto.


         O trabalho de construção do objeto corresponde a um dos aspectos mais relevantes da e na sociologia de Pierre Bourdieu, na medida em que tal trabalho rompe com a sociologia espontânea e com as abdicações do empirismo e da epistemologia sensualista.


         O trabalho de construção do objeto além de romper com a ilusão do objeto isolado do conjunto de relações que o produz,  evita-se  identificar as coisas da lógica  com a lógica das coisas, identificação esta que fundamenta implícita ou explicitamente a denegação do ofício de sociólogo, denegação que, em grande parte, fundamenta a tomada espontânea do objeto já dado e a pesquisa científica enquanto cópia do real.

 1.1  Breve esclarecimento sobre a sociologia do campo jurídico


É necessário levar em conta o fato de o texto intitulado de “A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico” 1 conter apenas alguns elementos, não todos, da sociologia do campo jurídico. Noções importantes como as de capital jurídico são brevemente citadas no mencionado texto, mas as condições sociais e históricas de produção de tal capital não são nele esboçadas.


Deve-se lembrar que, para Bourdieu, um dos mais importantes trabalhos do sociólogo é justamente o trabalho de historicização e, portanto, de desnaturalização. “O que quer dizer que, ao historicizar, a sociologia desnaturaliza, desfataliza.” 2  Bourdieu, com o trabalho de historicização, também leva em conta o próprio trabalho de historicização do próprio processo social de naturalização (e da amnésia de tal processo histórico) das realidades históricas, trata-se, então, de uma dupla historicização.

A noção de capital jurídico, (espécie de capital ao mesmo tempo simbólico e cultural) bem como tal capital foi historicamente construído através de diversas lutas simbólicas no decorrer da história (o que denota o fato de a eficácia desse capital depender do passivo simbólico acumulado através das lutas históricas a partir das quais ele se fez) é mais trabalhada por Bourdieu em outros textos, tais como em “O novo capital” e em “Espíritos de Estado” 3

Diversos outros elementos construídos por Bourdieu, e que podem se utilizados para a construção de uma sociologia do campo jurídico, estão espalhados por vários trabalhos do citado sociólogo. Todavia, neste texto, as atenções serão mais voltadas para as noções de campo jurídico e de habitus.


1.2 Sobre a noção de campo jurídico


         Antes da realização de uma investigação sobre a noção de campo jurídico na sociologia de Bourdieu, faz-se necessário explicar alguns  dos mais   importantes   problemas a partir dos quais tal noção teve de ser construída: faz-se necessário a         explicação  de  alguns obstáculos  epistemológicos  cuja  ruptura  foi possível  mediante  a  construção da aludida noção.

         A noção de campo além de corresponder a um relevante instrumento de construção do objeto, (na medida em que exige que se leve em conta o conjunto de relações, o espaço dos possíveis do qual ele é um possível realizado) também possibilita a ruptura com dois dos mais persistentes obstáculos epistemológicos: a análise internalista e a externalista. A noção de campo “serviu primeiro para indicar uma direção à pesquisa, definida negativamente como recusa à alternativa da interpretação interna e da explicação externa (...)” 4   Por interpretação internalista pode-se entender a afirmação do princípio  de transformação do direito (já que estamos tratando do campo jurídico) como algo interno ao próprio direito.

         O internalismo é uma das características mais importantes da disposição escolástica, a qual corresponde, em grande parte, a uma postura liberta das urgências, da necessidade e das demais constrições da vida ordinária. O internalismo corresponde  a um das características mais importantes da ilusão da absoluta autonomia de determinado campo frente as pressões externas (pressões políticas, econômicas, etc.):


            Existe uma contrapartida à autonomia dos campos escolásticos e um custo pela ruptura social favorecida pela ruptura econômica. Ainda que possa ser vivido como algo livre e eletivo, a independência perante quaisquer determinações vai sendo adquirida e exercida por conta de uma distância efetiva em relação à necessidade econômica e social. 5


A interpretação internalista corresponde a uma das características mais importantes da disposição escolástica na medida em que, estabelecendo o princípio de transformação do direito como uma dinâmica interna ao próprio direito, reproduz a ilusão do campo jurídico como um espaço absolutamente autônomo frente as pressões econômicas e sociais, frente as demais constrições da vida ordinária.
         O internalismo é reproduzido pelos juristas na medida em que contam a história do direito como um desenrolar interno dos conceitos jurídicos: 


A ciência jurídica tal como a concebem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do desenvolvimento interno do seus conceitos e dos seus métodos apreende o direito como um sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua dinâmica interna.6  


            A disposição escolástica (enquanto disposição para agir e perceber o mundo de determinada maneira) é caracterizada pela ilusão da absoluta autonomia frente as pressões externas:


A reivindicação da autonomia absoluta do pensamento e da acção jurídicos afirma-se na constituição em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente liberto do peso social, e a tentativa de Kelsen para criar uma <<teoria pura do direito>> não passa do limite ultra-consequente de esforço de todo o corpo dos juristas para construir um corpo dos juristas para construir um corpo de doutrinas e de regras completamente independentes dos constrangimentos e das pressões sociais, tendo nele mesmo o seu próprio fundamento. 7


         Em outras palavras, para Bourdieu, o que Kelsen realiza é a ilusão da análise internalista, segundo a qual o princípio de transformação do direito estaria nele mesmo, ou seja, as produções do direito seriam explicadas por um processo de produção que se daria do vértice à base da pirâmide normativa, e da base para o vértice seria explicado o processo de execução das normas jurídicas. Todo o processo de produção do direito estaria nele mesmo e seria explicado por ele mesmo independentemente de qualquer constrição política, econômica, social, etc.

         Essa análise (a análise internalista que Kelsen realiza ao desenvolver a sua teoria pura) corresponde a um dos mais expressivos exemplos da razão escolástica no direito, na medida em que ela (a teoria pura) é caracterizada pela denegação das urgências, das constrições  econômicas,  políticas e sociais que  são  bastante  comuns na vida ordinária. E é justamente essa denegação das constrições externas uma das características mais marcantes da razão escolástica, na sociologia de Bourdieu.
                                                                                                                                                
O conhecimento puro é o conhecimento que contém apenas a forma a partir da qual o objeto (neste caso, o direito) é conhecido. E é dessa máxima kantiana que Kelsen procede no desenvolvimento de sua teoria pura, onde a dicotomia entre teoria e prática encontra-se travestida pela velha divisão entre o conhecimento puro e o conhecimento sensível, aplicado. A construção de uma teoria pura possibilita a reprodução da ilusão de liberdade perante as constrições econômicas e sociais.

A afirmação do princípio de transformação do direito enquanto uma dinâmica interna tem como um de seus efeitos a denegação das constrições externas e a reprodução da ilusão do campo jurídico como  um  microcosmo  social  absolutamente autônomo.

O segundo obstáculo epistemológico corresponde justamente ao extremo oposto, ou seja, ao externalismo. Por externalismo ou explicação apenas e tão somente externa deve-se entender a afirmação do direito como uma mera superestrutura efeito da infraestrutura econômica. Tal obstáculo é mais frequentemente cometido pelas análises marxistas do direito.

         Neste caso, quando a ciência jurídica não reproduz a análise internalista, “é para se ver no direito e na jurisprudência um reflexo direto das relações de força existentes, em que se exprimem as determinações dos dominantes (...)” 8  O externalismo explica as transformações do direito como apenas efeitos de um curto-circuito. Neste sentido, as regras específicas que regulamentam as relações no interior do campo jurídico praticamente não existiriam: o direito seria fruto de um reflexo direto das pressões econômicas e não teria nenhuma autonomia, nenhuma característica diferenciadora.

         É justamente para romper com estes dois obstáculos epistemológicos, assim como para romper com tal dicotomia (interno/externo) que a noção de campo jurídico, enquanto um microcosmo social relativamente autônomo (não absolutamente), é construído. Por campo jurídico deve-se entender o seguinte:


O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de  competência   ao  mesmo  tempo  social   e técnica  que   consiste  essencialmente  na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. É com esta condição que se podem dar as razões quer da autonomia relativa do direito, quer do efeito propriamente simbólico de desconhecimento, que resulta da sua autonomia absoluta em relação às pressões externas. 9 
                  

        O campo jurídico, bem como os demais, corresponde a uma estrutura de relações de força, a um microcosmo social relativamente autônomo. Com isso, Bourdieu considera o capital específico (em nosso caso, o capital jurídico) de determinado campo “como fator explicativo das práticas” 10 que ocorrem em seu interior; a noção de campo também leva em conta os efeitos externos que o campo jurídico sofre juntamente com os efeitos externos que ele engendra como, por exemplo, os efeitos de conservação e de reprodução da ordem social e simbólica. Em outras palavras, a noção de campo possibilita se levar em conta tanto a lógica interna específica do campo, quanto os efeitos externos que o campo sofre.

       Quando Bourdieu leva em conta as regras específicas do jogo no interior do campo jurídico ele está também chamando atenção para a parcela de autonomia que tal campo conseguiu conquistar como um passivo adquirido através das lutas históricas. Ou seja, o capital jurídico e o campo jurídico correspondem a construções históricas:

           
Apoiando-se sobre os interesses específicos dos juristas (exemplo típico de interesse pelo universal), vinculados ao Estado e que, como veremos, criam todo tipo de teorias legitimadoras, de acordo com as quais o rei representa o interesse comum e deve a todos segurança e justiça, a realeza restringe a competência das jurisdições feudais (e faz o mesmo com as jurisdições eclesiásticas: limitando, por exemplo, o direito de asilo da Igreja). O processo de concentração do capital jurídico acompanha o processo de diferenciação que resulta na constituição de um campo jurídico autônomo. 11  



             A construção do campo jurídico é inseparável do processo histórico de produção do capital jurídico pelo corpo de juristas, os quais construíram o universal necessário à constituição do Estado, e este, por sua vez, foi necessário para que os juristas fossem   constituídos por eles mesmos como tais, ou seja, como juristas, como homens de Estado, como parte da nobreza de Estado. Em outras palavras,


é preciso analisar a gênese e a estrutura desse universo de agentes do Estado, particularmente os juristas, que se constituíram em nobreza de Estado ao instituí-lo e, especialmente, ao produzir o discurso performativo sobre o  Estado que, sob a aparência de dizer o que ele é, fez o Estado ao dizer o que ele deveria ser (...) 12



            Bourdieu leva em conta os interesses particulares desses agentes estatais (os juristas) – tendo e vista o fato de uma das características mais importantes do poder simbólico corresponder justamente ao fato dela está apoiada no efeito de universalização de uma visão de mundo particular – e como eles universalizaram tais interesses particulares mediante todo um trabalho social de racionalização e de construção do mundo social, conforme atesta a eficácia do caráter performativo (na medida em que faz existir aquilo que é enunciado e em conformidade com o enunciado da palavra pública) da retórica posta em prática pelos juristas. O próprio efeito performativo tem como pressuposto a crença na autoridade da palavra autorizada, cuja eficácia se explica, em grande parte, pela magia social (a qual é ignorada como tal) fundada no universal que foi historicamente construído fora da ordem do cálculo.   

                  A visão do Estado corresponde a um universal historicamente construído e ignorado como tal. E os juristas tiveram um importante papel no processo histórico de construção do universal mediante o longo processo de construção social e de codificação das


categorias oficiais, de acordo com as quais são estruturadas tanto as populações quanto os espíritos, é o Estado, através de todo um trabalho de codificação que combina efeitos econômicos e sociais bem concretos (como as alocações familiares), visando privilegiar uma certa forma de organização e encorajar, por todos os meios, materiais e simbólicos, o “conformismo lógico” e o “conformismo moral”, como adesão a um sistema de formas de apreensão e de construção do mundo, do qual essa forma de organização, essa categoria, é sem dúvida o ponto central. 13       



          O que também equivale a levar não apenas em conta o trabalho social e histórico de construção (abaixo do nível da consciência) do universal mediante um  longo processo de racionalização e de construção do mundo mediante a palavra autorizada, mas também o  próprio trabalho social e histórico de dissimulação não consciente de tal trabalho e como ele engendra o efeito de amnésia da própria gênese histórica e social da própria construção do universal e da eficácia simbólica dos atos Estatais.  (tais como os efeitos dos diplomas universitários, verdadeiros títulos de nobreza cultural oficializados pelo Estado, os quais possuem o efeito de atribuir uma espécie de novo estatuto ontológico àqueles que os possuem). Como ele mesmo lembra, “a gênese implica a amnésia da gênese (...)” 14

A noção de campo jurídico, além de possibilitar a ruptura com os obstáculos representados pelas interpretações internalistas (internalismo) e pelas explicações externalistas (externalismo), também corresponde a um relevante instrumento de construção do objeto, na medida em que exige que se pensem as relações de força sem as quais o objeto nem mesmo chegaria a existir, ou melhor, ele corresponde a uma exigência do pensamento relacional que encontramos na sociologia de Bourdieu.


A noção de campo é, em certo sentido, uma estenografia conceptual de um modo de construção do objeto que vai comandar  - ou orientar – todas as opções práticas da pesquisa. Ela funciona como um sinal que lembra o que há que fazer, a saber, verificar que o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial das suas propriedades. 15



            Na medida em que o campo corresponde a uma estrutura de relações teoricamente construída onde agentes investidos de determinada competência (o capital jurídico, em nosso caso) praticam determinado jogo onde lutam para conservar ou transformar a estrutura de distribuição de determinados capitais em determinado campo. Ele também corresponde a uma exigência do pensamento relacional: é preciso pensar os diferentes microcosmos sociais, bem como as suas próprias relações com outros, em termos de relações diferenciais de tomadas de posição e o potencial de ganho que tais tomadas podem representar em determinado período de tempo                                                                                                                                                                           
         Neste caso, a construção do objeto, segundo Bourdieu, jamais pode deixar de lado todo um conjunto de relações em que tal objeto foi produzido e adquiriu determinadas propriedades. Ele leva em conta tanto as relações entre as posições estruturadas no interior de determinado campo (tratando-se do campo jurídico, poderíamos citar os exemplos das posições de Juiz, de Promotor, de advogado, professor de direito...) quanto as relações entre os diferentes campos, tais como as relações entre o campo jurídico e o campo político, para citar apenas um exemplo.

         A construção do objeto corresponde a uma das mais importantes exigências contra a sociologia espontânea na medida em que está apoiada na recusa da passividade requerida por aquilo que Bachelard chama de empirismo vulgar. Assim, “é preciso que o pensamento construtivo reconheça sua própria necessidade.” 16   Na medida em que o sociólogo se priva do trabalho de construção do objeto ele estará facilmente sujeito a ratificar os conhecimentos mais elementares do cotidiano, tais como a


necessidade de sentir o objeto, esse apetite dos objetos, essa curiosidade indeterminada não correspondem ainda – sob pretexto algum -  a um estado de espírito científico. Se uma paisagem é estado de espírito romântico, uma porção de ouro é espírito de avareza, a luz será estado de espírito em êxtase. 17 


         O próprio Durkheim, como lembra Marcel Mauss, lembrava a necessidade de se construir um objeto provisório como instrumento de ruptura com as prenoções típicas da sociologia espontânea. 18  É justamente a necessidade de se construir o objeto  de forma controlada que possibilita uma ruptura com o empirismo que toma o resultado da pesquisa como copia do real, que toma um fato como já dado e pronto onde “não é preciso compreendê-lo, basta vê-lo.” 19       

                                                                                                                                  A noção de campo, ao corresponder também a uma ferramenta para a construção do objeto como um caso particular do possível, jamais deixa de lado o sistema de relações sem o qual ele não existiria como tal. A noção de campo possibilita uma verdadeira ruptura com aquilo que Bachelard denomina de experiência primeira. Lembrando que


o sociólogo nunca  conseguirá acabar com a sociologia espontânea e deve se impor uma polêmica incessante contra as evidências ofuscantes que proporcionam, sem grandes esforços, a ilusão do saber imediato e de sua riqueza insuperável. 20        


         Um dos motivos pelos quais a sociologia espontânea retira sua “riqueza insuperável” vem encontrar uma de suas mais consistentes explicações no fato de ela nada mais fazer do que ratificar com um rótulo de cientificidade as prenoções do senso comum capazes de inspirar as mais diversas inclinações, tal como a de que cada um também é um pouco sociólogo. 

No interior de determinado campo o agente investido de determinada competência jamais pode ser tomado isoladamente, pois a posição que ele ocupa no interior do campo nada seria sem as relações que a produziram e sem o espaço diferencial que constitui a estrutura do campo. Assim, a noção de campo possibilita a ruptura com a ilusão do objeto isolado e delimitado, retirado de seu espaço de relações sem o qual ele nada seria.


1.3  Sobre a noção de habitus


         Como lembra Bourdieu, o “habitus é ao mesmo tempo um sistema de esquemas de produção de práticas e um sistema de esquemas de percepção e apreciação das práticas.”21 O habitus é fruto de toda uma trajetória social mediante a qual determinados esquemas de percepção e apreciação do mundo social foram inculcados abaixo  do  nível  da consciência.    
                                                                       
Isso equivale a pensar o habitus como uma disposição para agir relacionada aos efeitos de determinados constrangimentos relativos a uma determinada estrutura social, de uma determinada classe. Neste sentido, o habitus corresponde também a uma “forma incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ele impõe; (...)” 22  ele corresponde a um efeito durável de todo um processo de  inscrição de determinados pressupostos nos corpos, um efeito da interiorização de uma determinada estrutura social e de uma determinada condição de classe. Assim, tal noção corresponde a um princípio unificador de toda uma trajetória ao mesmo tempo individual e social. Bem como a um principio gerador de práticas e de esquemas de percepção que são acionados em determinadas circunstâncias.

A noção de habitus possibilita a ruptura com a dicotomia entre indivíduo/sociedade 23 na medida em que ele diz respeito a incorporação de determinada estrutura social. A “noção de habitus exprime sobretudo a recusa a toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo, etc.” 24 

As práticas engendradas por determinado habitus vêm encontrar as suas explicações em  uma   dimensão abaixo do nível da consciência ou da inconsciência. Tais práticas estão orientadas pelo sentido do jogo, onde há tanto uma parcela de indeterminação, portanto, de incerteza, quanto de determinação que possibilita àquele que já incorporou o sentido do jogo antecipar determinadas jogadas de forma razoável. A noção de  habitus também está relacionada a necessidade de se pensar a lógica da prática, a qual não corresponde a uma lógica plenamente consciente e racionalmente orientada para determinado fim.     
 
         Tal lógica da prática que a noção em estudo possibilita se pensar rompe com o determinismo mecânico que toma os agentes como meros efeitos das estruturas. Tal noção (a de habitus) permite


compreender a lógica de todas as ações que são razoáveis sem ser produto de um plano razoável; habitadas por uma espécie de finalidade objetiva sem serem conscientemente organizadas em relação a um fim explicitamente constituído; inteligíveis e coerentes sem serem originárias de uma intenção de coerência e de uma decisão deliberada; ajustadas ao futuro sem ser o produto de um projeto ou de um plano. 25     

                    
         A noção de habitus leva em conta tanto e ao mesmo tempo a história coletiva de determinada estrutura social onde determinado agente pretende ou ocupa uma posição, quanto a historia individual de um agente. Neste caso, Bourdieu pensa o habitus enquanto aquilo que medeia a relação entre a história objetivada nas estruturas objetivas, nas estruturas de relações, quanto a história incorporada em determinado agente.

         O campo jurídico não nasceu do nada, ele é produto de toda uma história de lutas simbólicas, como já se denotou aqui. Pensar em campo jurídico é também pensar em uma historia objetivada na estrutura de relações entre posições. E, como tal, determinado campo exige determinada competência (o capital jurídico, em nosso caso) para poder jogar o seu jogo com certa margem de sucesso, bem como também exige determinado habitus de classe condizentes com uma postura global e com o  universal  manuseado através de uma retórica da neutralidade ( o que também está relacionado a determinada hexis corporal que corresponde a um efeito da incorporação de determinadas crenças amortecidas). E é justamente esse conjunto de propriedades que fundamenta o desvio entre a visão de mundo dos juristas e dos profanos.


Este desvio, que é fundamento de um desapossamento, resulta do facto de, através da própria estrutura do campo e do sistema de princípios de visão e de divisão que está inscrito na sua lei fundamental, na sua constituição, se impor um sistema de exigências cujo coração é a adoção de uma postura global, visível sobretudo em matéria de linguagem. 26 
  
                                                                                                                                                                
ethos exigido pelas instituições judiciais corresponde ao ethos de determinada classe, o que possibilita um durável efeito de concertação sem maestro ou de conluio involuntário entre aqueles cujas visões de mundo e os interesses são, em grade parte, equivalentes.


A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões do mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagônicas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para os justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes. 27  


         O habitus possibilita se pensar a relação entre estruturas mentais decorrente de toda uma trajetória de vida (estruturas estruturadas) e as estruturas sociais produtos de toda uma história coletiva (estruturas estruturantes), e como uma reproduz a outra. É justamente essa relação que possibilitou Bourdieu romper com a dicotomia entre subjetivismo e objetivismo, pois esse círculo de reprodução social leva em conta a necessária relação entre as estruturas subjetivas (produtos da imposição e da incorporação de determinada estrutura social) como as estruturas objetivas (conservadas, reativadas ou transformadas pelas estruturas mentais – subjetivas – que elas – as estruturas objetivas – produziram mediante um longo e durável processo de imposição de determinados esquemas de percepção e apreciação nas mentes.

         E dessa relação entre esquemas mentais e estruturas objetivas (e como uma reproduz a outra) é possível se pensar o encontro entre duas histórias: a história incorporada por um agente e a história objetivada nas estruturas e nas posições. A partir dessa relação é possível se pensar um efeito de homologia entre, por exemplo, o campo jurídico e o campo do poder, e afirmar o quanto as lutas simbólicas no interior do respectivo campo estão relacionadas as relações de força entre diferentes classes sociais: tais relações estão presentes de forma sublimada – eis um dos efeitos do processo de racionalização e codificação das relações de força – nas lutas simbólicas entre as diferentes disciplinas jurídicas, por exemplo.       
                                                                                                                                                               
         As relações entre a história objetivada em determinado campo e a história incorporada por determinado agente são mediadas pelo habitus: neste caso, o agente, a depender dos esquemas de percepção e apreciação por ele adquirido e relacionado a determinada classe, poderá aceitar mais passivamente ou não o ethos exigido pelo campo jurídico enquanto uma estrutura de relações que possui uma história. As relações entre essas duas histórias não é mecânica, pois há uma dialética entre estas duas histórias (as relações de subversão que visam transformar o sistema de distribuição vigente em determinado campo correspondem a bons exemplos). É justamente aí onde Bourdieu não reproduz um dos maiores erros do estruturalismo, o qual consistiu em tomar os agentes como meros epifenômenos da estruturas sociais. 

          Assim, como bem lembra Bourdieu,


os efeitos da dialéctica entre as propensões inscritas nos habitus e nas exigências implicadas na definição do posto não são menores, embora sejam menos aparentes, nos sectores mais regulados e rígidos da estrutura social, como as profissões mais antigas e as mais codificadas da função pública. É assim que algumas das características mais marcadas da conduta dos pequenos funcionários, quer se trata da tendência para o formalismo, feiticismo da pontualidade ou da rigidez em relação ao regulamento, ao invés de ser produto mecânico da organização burocrática, são a manifestação, na lógica de uma situação particularmente favorável à sua passagem ao acto, de um sistema de atitudes que se manifesta também fora da situação burocrática e que bastaria para predispor os membros da pequena burguesia às virtudes exigias pela ordem burocrática e enaltecidas pela ideologia do << serviço público >>, probidade, minúcia, rigorismo e propensão para a indignação moral. 28    



Conclusão:  

         As noções de campo jurídico e de habitus são bastante relevantes para se compreender a relação entre as estruturas objetivas e as estruturas mentais, ou seja, subjetivas, e como uma tende a reproduzir a outra. Os próprios atos de transformação no interior dos campos jamais são totalmente libertos dos limites imanentes a determinado campo, pois este também corresponde a um espaço de possíveis objetivados a partir  dos  quais há a possibilidade   do agente que já incorporou o sentido do jogo antever de forma  “razoável” (jamais plenamente racional)  algumas jogadas. Neste sentido, os atos de transformação também ajudam a conservar o campo, muitas vezes os atos transformadores são efeitos do próprio amor pelo jogo, da própria preocupação com ele, de que vale a pena jogá-lo.  Eis a pertinência da analogia com o jogo frequentemente feita por Bourdieu.                                                                                                                                             
O habitus permite se pensar o quanto um lance em determinado jogo corresponde a um exemplo do passado reativado no presente (na medida em que denota, no ato presente, a ativação do senso do jogo incorporado durante toda uma trajetória feita a partir, no e pelo jogo), bem como esse passado reativado no presente está relacionado ao por vir, ao momento oportuno. 

         Na medida em que o campo jurídico corresponde a um produto histórico (a necessidade de historicizar, na sociologia de Bourdieu, está relacionada com o necessário trabalho de desnaturalização, pois o natural é justamente aquilo que não pode ser questionado, aquilo cuja legitimidade jamais pode ser posta em xeque) e que o agente que em tal campo ocupa ou pretende ocupar uma posição (a de juiz, de promotor, de advogado, de professor de direito, etc.) também possui toda uma trajetória de vida  a partir da qual determinados pressupostos foram nele inscritos, é levar em conta o fato de que pensar a relação entre determinada estrutura de relações e determinado agente corresponde também a pensar no encontro entre duas histórias.        
                
         Mostrou-se o quanto a noção de campo jurídico corresponde tanto a um importante instrumento a partir do qual Bourdieu pôde romper com dois dos mais persistentes obstáculos epistemológicos reproduzidos pela ciência jurídica (a interpretação internalista) e pelos críticos do direito (como a explicação externalista levada a cabo por toda uma gama de teorias marxistas do direito, incluindo o estruturalismo de Althusser).

Pois, afinal, tal noção possibilita se pensar as regras internas do campo sem ignorar as pressões externas que ele (o campo) sofre e exerce. Bem como o quanto a noção de campo corresponde a um relevante instrumento de construção do objeto, pois exige que se pense em termos de relações: possibilitando também a potencializarão do próprio raciocínio analógico entre os campos, e o quanto tal raciocínio pode ajudar a compreender e a explicar algumas lógicas análogas presentes em diferentes campos, levando em conta as suas especificidades.
                                                                                                                                                                       
Tentou-se denotar o quanto a noção de habitus é relevante para se romper a dicotomia entre indivíduo/sociedade, pois pensar em agente também corresponde a pensar uma determinada estrutura social que tacitamente ou não impôs determinados pressupostos possibilitando a constituição e a incorporação abaixo do nível da consciência de um sistema de esquemas gerador de práticas e de esquemas de percepção e apreciação do mundo social. 

A relação entre determinado campo e determinado habitus, (relação que possibilita uma explicação sobre as razões pelas quais determinadas tendências são mais bem vistas e vindas do que outras em determinadas circunstâncias e em determinados mercados, aliás, um campo também é, em certa medida um mercado de bens simbólicos  - o que equivale a pensar sobre os efeitos da violência simbólica, seja esta institucionalizada ou não, pois as lutas no interior dos campos não são reguladas apenas por regras expressas, mas também tácitas) também possibilitou se romper com a dicotomia entre subjetivismo/objetivismo pois as estruturas objetivas re-produzem as estruturas subjetivas sem as quais ela não teria vida, ou seja, uma reproduz a outra: estruturas estruturantes reproduzem as estruturas estruturadas e vice-versa. O que possibilita e explica em grande parte a reprodução da ordem simbólica e social.

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1.    Este texto pode ser encontrado em BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998. P. 209-254.
  1. BOURDIEU, Pierre. Fieldwork in Philosophy. In.: Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da Silveira e Denise Moreno  Pegorim. – São Paulo: Brasiliense, 2004. P. 27
  2. Tais textos podem ser encontrados em BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996, Nas P. 35 e P. 91 respectivamente.
  3. BOURDIEU, Pierre. A gênese dos conceitos. in.: O poder simbólico. P. 64
5.     BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. P. 25-26
6.     BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: O poder simbólico. P. 209
  1. BOURDIEU, Pierre. A força do direito. Ibid.
  2. BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: Op. Cit. P. 210
9.     BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: Op. Cit. P. 212
  1. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 107
11.  BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. In. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996. P. 109
  1. BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado. In. Op. Cit. P. 121
  2. BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado. In. Op. Cit. P. 134
  3. BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Trad. Maria Ferreira. 2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. P. 83
15.   BOURDIEU, Pierre. Introdução a uma sociologia reflexiva. In,: O poder simbólico. P. 27
16.  BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 36
17.  BACHELARD, Gaston.  Op. Cit. P. 116
18.  A problemática referente a necessidade de uma definição provisória do objeto como instrumento de ruptura com as prenoções do senso comum pode ser encontrada em MAUSS, Marcel. A prece, in.: Ensaios de sociologia. Trad. Luiz João Gaio e J. Guinsburg, Editora Perspectiva – SP, 1981. P. 250-253, 263-264
19     BACHELARD, Gaston.  Op. Cit. P. 37
20    BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 23
21    BOURDIEU, Pierre. Espaço social e poder simbólico.  In.: Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da Silveira e Denise Moreno  Pegorim. – São Paulo: Brasiliense, 2004. P. 158
22    BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 97
23     Muito embora Norbert Elias, em 1939, também tenha rompido com tal dicotomia em A sociedade dos indivíduos, foi somente com a sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu que foi possível a construção de uma noção (a noção de habitus) que leve em conta também os efeitos da dominação simbólica relacionados as relações entre os mais diferentes habitus, por exemplo.
24     BOURDIEU, Pierre. A gênese dos conceitos. In,: O poder simbólico. P. 60
25    BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Trad. Maria Ferreira. 2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. P. 85
26     BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: Op. Cit. P. 226
27    BOURDIEU, Pierre. A força do direito. In.: Op. Cit. P. 242
28    BOURDIEU, Pierre. História reificada e incorporada. In.:  O poder simbólico. P. 93





Referências:

BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983.
BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2011.
______. Coisas Ditas. Trad. Cássia R. da Silveira e Denise Moreno  Pegorim. – São Paulo: Brasiliense, 2004.
______. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007.
______. O senso prático. Trad. Maria Ferreira. 2. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
______. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz – 2 ed. RJ, Bertrand Brasil, 1998
______. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996.

MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. Trad. Luiz João Gaio e J. Guinsburg, Editora Perspectiva – SP, 1981.