terça-feira, 21 de agosto de 2012

Gilles Deleuze: algumas divagações sobre a doxa e a representação.





Por Danilo José Viana da Silva





“(...) é normal que a filosofia moderna, que levou muito longe a crítica da representação, recuse qualquer tentativa de falar no lugar dos outros. Cada vez que se ouve: ninguém pode negar... , todo mundo há de reconhecer que... , sabemos que vem uma mentira ou um slogan. Mesmo depois de Maio de 68 era comum, por exemplo, num programa de televisão sobre as prisões, que se fizesse falar todo mundo, o juiz, o guarda, o visitante, o homem da rua, todo mundo menos um preso ou um ex-preso.”1    



            Deleuze define a doxa, o senso comum, como a imagem de pensamento que se pressupõe a si mesma. Trata-se de um trabalho muito importante pensar sobre tal imagem, pois ela, o senso comum, identifica-se enquanto a gênese do próprio ato de pensar. Para Deleuze, o pensamento é uma questão fundamental. E, neste caso, ele irá se preocupar justamente com o problema dos pressupostos em Filosofia: não apenas dos pressupostos explícitos ou objetivos, mas também (eis os mais perigosos) com os pressupostos implícitos ou subjetivos.

            José Gil lembra que



O projeto crítico de Deleuze pretende ser mais radical do que todos os que o precederam, pretende subtrair todos os pressupostos, explícitos ou objetivos e implícitos ou subjetivos, no intuito de alcançar um verdadeiro começo. 2  



            Se Descartes tenta começar do zero, ou seja, se ele tenta começar a pensar sem pressupostos ou se, como nas palavras de Lyotard, “projeta a urbanização radical do pensamento: como no caso da grande cidade, devem-se derrubar os restos “mal traçados” legados pelo destino da história ao pensamento, para construir seu plano de uma vez, “desde o começo.”3  Isso mostra que Descartes se preocupou bastante com a questão do começo, pois, como lembra Deleuze, “começar significa eliminar todos os pressupostos.” 4

            Mas o problema que Deleuze constata nesta proposta de Descartes (começar do zero, começar sem pressupostos) é que ela não é assim tão radical quanto se pode imaginar. Livrar-se dos pressupostos objetivos será uma grande meta para ele. Descartes, nas palavras de Deleuze, irá “conjurar todos os pressupostos objetivos que sobrecarregam os procedimentos que operam por gênero e diferença.” 5 Não é por acaso que ele irá se recusar a definir o homem como um “Animal” “Racional”, pois se pressupõe que já se saiba o que tais conceitos querem dizer. Assim, tratam-se de pressupostos explícitos ou objetivos.

            Entretanto, Descartes não conseguirá se livrar dos pressupostos subjetivos ou implícitos. Deleuze lembra que no conceito de Cogito criado por Descartes há três pressupostos (os quais irão ser identificados por Deleuze e Guattari em O que é a filosofia? como componentes do conceito de Cogito cartesiano) que permanecem sem conceito:



(...) ele não escapa de pressupostos de outra espécie, subjetivos ou implícitos, isto é, envolvidos num sentimento, em vez de o serem num conceito: supõe-se que cada um saiba, sem conceito, o que significa eu, pensar, ser. 6  



            Eu, Pensar e Ser correspondem aos pressupostos implícitos do conceito de Cogito cartesiano: são tomados como se todo mundo já soubesse o que significa cada um deles. É justamente este tipo de pressuposto uma das maiores preocupações de Deleuze, pois eles atestam um tipo de consenso universal do pensamento ao nível de um “todo mundo sabe, ninguém pode negar, é a forma da representação e o discurso do representante.” 7  

            Simplesmente, tudo se desenrola como se todo mundo já soubesse o que significa pensar, por exemplo. Este senso comum é a forma por excelência da representação; não podemos também nos esquecer, neste aspecto, da crítica que Michel Foucault também realiza sobre a representação e seus efeitos mais capilares. O “ninguém pode negar que... todo mundo sabe que...” ou seja, o senso comum é indispensável para a lógica da representação e de seu discurso.

            Simplesmente, diz-se: Ele é o especialista em direitos humanos e, como tal, ninguém pode negar que ele pode falar sobre os mais variados efeitos de poder que os pobres e miseráveis sentem; ele, o especialista, é a pessoa mais competente para falar dos presos, dos drogados, dos doentes; ele, o médico, é o competente e pode falar do louco; ele, o médico, representa o louco por completo na lógica da representação; ele, o filósofo, é o que fala a verdade e tem afinidade com o verdadeiro... 

            Foucault vai se interessar mais pelos efeitos de poder que o discurso da representação engendra no corpo, por exemplo. Ele jamais desdenhou dos pressupostos implícitos, do senso comum e de sua relevância para a representação. Foucault também soube combater os seus efeitos, não é por acaso que ele soube como ninguém “a nos ensinar (como disse Deleuze ao próprio Foucault em Maio de 1972) algo fundamental: a indignidade de falar pelos outros.”

            E ele, Foucault, irá combater a representação, na medida em que em suas pesquisas, por exemplo, jamais um criminalista irá representar os detentos, jamais um médico irá falar pelos loucos, antes são os próprios loucos, os mendigos, os presos que irão falar e contar as suas experiências, eles não são mais representados ou levados a reboque por um especialista. O combate e a crítica à representação são problemas dos mais relevantes tanto em Deleuze quanto em Foucault. A noção de “saberes sujeitados” que encontramos em Foucault, por exemplo, corresponde a uma estratégia importante no combate à representação e seus efeitos:



Por “saberes sujeitados”, eu entendo igualmente toda uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos. E foi pelo reaparecimento desses saberes de baixo, desses saberes não qualificados mesmo, foi pelo reaparecimento desses saberes: o do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do médico, mas paralelo e marginal em comparação com o saber médico, o saber do delinqüente, etc. – esse saber que denominarei, se quiserem, “o saber das pessoas” (e que não é de modo algum um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, um saber local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à contundência que opõe a todos aqueles que o rodeiam) - , foi pelo reaparecimento desses saberes locais das pessoas, desses saberes desqualificados, que foi feita a crítica. 8



            Neste caso, podemos observar que a doxa pode engendrar os mais variados efeitos, os mais perversos efeitos, tal como, por exemplo, a denegação dos saberes diferenciais.  Tanto no pensamento quanto, por exemplo, solapando as vozes de todos aqueles que foram e são pisoteados e apagados mediante a representação. Eis algo que Foucault tanto combateu.

            No caso da filosofia de Deleuze, um dos grandes problemas por ele constatado é justamente a imagem de pensamento universal que perpassa toda a Filosofia moderna: “ele tem a forma de “todo mundo sabe... Todo mundo sabe, antes do conceito e de um modo pré-filosófico...” 9 Como se, por exemplo, ser e pensar fossem sentimentos, noções que todos nós sabemos e que já se incorporou em nós, constituindo, assim, um consenso universal. Trata-se, o senso comum, de uma “visão moral do mundo(...)” 10 E a consequência mais perversa desta imagem moral do mundo é o “aniquilamento” da diferença de pensar com o pensamento.

Não é por acaso que Deleuze define, em Diferença e Repetição, que um de seus principais objetivos é o de destruir esta imagem universal que, por exemplo, no caso do Cogito cartesiano (Eu penso, logo sou) “pode supor que esteja implicitamente compreendido o universal de suas premissas, o que ser e pensar querem dizer... e ninguém pode negar que duvidar seja pensar e, pensar, ser...” 11 Mas, vale lembrar, Descartes não é o único, pois o senso comum filosófico perpassa, para Deleuze, toda a filosofia enquanto o pensamento da representação.

Este tipo de pressuposto implícito perpassa toda a Filosofia: sobre a forma de um “é evidente que...” “todo mundo sabe que...”  “ninguém negará que...” etc. O que os pressupostos implícitos em Filosofia pressupõem é uma boa vontade do pensador, ele pressupõem uma boa vontade que ignora o fato de que eles (os pressupostos implícitos)  se insinuam “sub-repticiamente no discurso que é suposto criticá-lo.” 12  O pressuposto implícito corresponde a uma imagem de pensamento pré-filosófica, trata-se do senso comum em Filosofia. E, como lembra Deleuze,

Quando a Filosofia assegura seu começo com pressupostos implícitos ou subjetivos, ela pode, portanto, bancar a inocente, pois nada guardou, salvo, é verdade, o essencial, isto é, a forma deste discurso. 13     



            A filosofia que parte por pressupostos implícitos pressupõe uma comunhão de pensamento, mas o problema se dá quando aparece alguém que não se submete ao discurso da representação;

alguém que não se deixa representar e que também não quer representar coisa alguma. Não um particular dotado de boa vontade e de pensamento natural, mas um singular cheio de má vontade, que não chega a pensar nem na natureza e nem no conceito. 14 



            A natureza reta e a boa vontade legitimam os discursos absolutos da filosofia e da representação, é a cogitatio natura universalis. Mas o singular dotado de má vontade não se deixa representar e se recusa a aceitar o que todos aceitam e concordam como evidente. Ele (o singular dotado de má vontade) nega o que ninguém pode negar! Ele levanta questões concernentes “ao mais radical começo (...)”.15  Afirma a Diferença!  

                               

                                          
    
____________________

1.      DELEUZE, Gilles. Rachar as coisas, Rachar as palavras. In. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. – Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. P. 114

2.      GIL, José. O Imperceptível Devir da Imanência: Sobre a Filosofia de Deleuze. Relógio D`água Editores, Maio de 2008. P. 25

3.      LYOTARD. Jean-François. Periferia In.: Moralidades pós-modernas. Trad.: Marina Appenzeller; revisão tec.: Roberto Leal Ferreira – Campinas, SP: Papirus, 1996. – (Coleção Travessia do Século) p. 25

4.       DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 189

5.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid

6.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid

7.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. P. 190

8.      FOUCAULT. Michel. Aula de 7 de janeiro de 1976. in. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão – São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 12

9.      DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid

10.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. P. 370

11.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. P. 190

12.  GIL, José. Ibid

13.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid

14.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. P. 191

15.  DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Ibid