quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Gaston Bachelard: Algumas divagações sobre o Primado Teórico do Erro.




Por Danilo José Viana da Silva

“(...) Não há verdades primeiras, só erros primeiros. A primeira e mais rica função do sujeito é a de se enganar. Quanto mais completo for seu erro, mais rica será sua experiência. A experiência é a lembrança dos erros retificados”,
(Georges Canguilhem)


            Diferentemente de todo um legado da filosofia racionalista, Bachelard não pensa o erro como uma catástrofe, para ele o erro pode ser definido como um elemento constitutivo do conhecimento científico.
            Esse trecho escrito por Georges Canguilhem, (um conhecido discípulo de Bachelard) que usamos como epígrafe, denota que a epistemologia bachelardiana constrói uma nova maneira de pensar e de lidar com os erros. Bachelard se define como um racionalista, mas trata-se de um precursor de um novo tipo de racionalismo: trata-se (já que estamos tratando neste texto superficial do primado teórico o do erro) de um racionalismo que afirma não verdades primeiras, mas que no desenvolvimento, ou melhor, na história do desenvolvimento de qualquer noção científica podemos encontrar um constante processo de retificação, uma verdadeira história de erros e devaneios que perpassaram e que perpassam o conhecimento científico. Tal como ele mesmo lembra: “Pensamos que existe sempre um erro a corrigir a propósito de qualquer noção científica.” 1 
            E para exemplificar e dar consistência à esta tese, para mostrar o quanto o erro faz parte do conhecimento científico, Bachelard irá contar a história epistemológica do eletrismo 2 , da noção de massa, de eletricidade, da noção de átomo...
            É preciso lembrar que a noção de primado teórico do erro é altamente relacional (o fato de estarmos tratando do primado teórico do erro não deve ser interpretado como se tal primado fosse uma entidade irrelacional, ao revés, ele é altamente relacional) na epistemologia de Bachelard. Tal primado se relaciona de maneira muito destacada com a noção de Razão polêmica, a qual é tão importante para se compreender que a crítica é a própria essência do conhecimento científico, segundo Bachelard.
            Assim, o primado teórico do erro afirma que a verdade científica jamais adquire o seu pleno sentido sem ao termo de uma polêmica. “Não poderia haver uma verdade primeira. Apenas erros primeiros.” 3   Os erros (plural) constituem o fundo da própria verdade científica. Neste caso, a crítica, a polêmica no interior da cidade científica á algo crucial: Trata-se da razão polêmica. E sobre ela, na epistemologia de Bachelard, Canguilhem lembra que:

A malevolência crítica não é uma penosa necessidade da qual o cientista pudesse desejar ver-se dispensado porque ela não é uma consequência da ciência, mas sua essência. A ruptura com o passado dos conceitos, a polêmica, a dialética, é tudo o que encontramos no termo da análise dos meios do saber. 4     

            E para mostrar, ou melhor, multiplicar os exemplos de como a razão polêmica é um elemento essencial do conhecimento científico, Bachelard irá lançar mão, por exemplo, da história do átomo: “O esquema do átomo proposto por Bohr, um quarto de séculos atrás, agiu nesse sentido como uma imagem correta, mas não resta mais nada.” 5   Ou seja, era tido como verdade, hoje é visto como um devaneio. No caso da história epistemológica do eletrismo, Bachelard mostra o quanto o conhecimento dos fenômenos elétricos estava altamente pautado no espírito pré-científico:
                       
Durante o desenvolvimento científico ver-se-á, sem dúvida, uma utilização comercial de algumas descobertas. Mas essa utilização agora é insignificante. Os demonstradores dos raios-X que há trinta anos se apresentaram aos diretores da escola para oferecer um pouco de novidade no ensino já não faziam fortunas imperiais. Parece terem desaparecido inteiramente hoje. Pelo menos nas ciências físicas, um abismo separa o charlatão do cientista. 6     

            Os erros primeiros, altamente baseados no emprego do realismo ingênuo que chega até mesmo (como lembra Bachelard mostrado um exemplo da preguiça intelectual impulsionada pelo emprego do realismo e do empirismo) a “chamar um fato de fato (...)” 7  Sem necessidade de construção. Tais erros primeiros também são exemplificados quando Bachelard descreve a história da noção de massa, por exemplo: os progressos impulsionados por Newton (progressos estes que foram, em alguns aspectos importantes, retificados   pela teoria da relatividade de Einstein, para quem a massa não pode mais ser considerada como absoluta, mas como uma noção relativa a velocidade de um objeto) hoje são vistos – estamos nos referindo as descobertas de Newton -  como devaneios, mas que tiveram seu período de reinado e de glória no trono da veracidade científica, ou seja, eram consideradas apodíticas. 
            O racionalismo newtoniano dominou a Física matemática do século XIX. Porém, com o desenvolvimento da teoria da relatividade por Einstein, se

descobre que a massa, outrora definida como independente da velocidade, como absoluta no tempo e no espaço, como base de um sistema de unidades absolutas, é uma função complicada da velocidade. A massa de um objeto é pois relativa ao deslocamento desse objeto. 8 

            Mas isso não quer dizer que “chegamos” no supra-sumo da verdade científica... Enfim, há uma multiplicidade de exemplos que dão consistência ao primado teórico do erro e a razão polêmica  como elementos constitutivos do conhecimento científico. E tais exemplos são magistralmente dados por Bachelard. Afirmar que a razão polêmica é altamente relacionada com o primado  teórico do erro é dizer que o conhecimento científico progride por retificações, pela integração das críticas que destroem as imagens existentes e algumas vezes reinantes no momento em que a ciência ainda engatinha, é também lembrar que o trabalho da crítica é indispensável para não se cair nas armadilhas da razão arquitetônica, a qual estabelece conciliações falsas entre sínteses tradicionais possibilitando a construção (algo bastante equivocado) da história do conhecimento científico como “a” história de aglomeração. Algo bastante parecido com o primado escolástico da conciliação dos contrários.                                  
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1.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não: o novo espírito científico. Trad. Joaquim José Moura Ramos. – São Paulo: Abril Cultural, 1978. P. 14
2.      Tal história pode ser encontrada em: BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 37
3.      BACHELARD, Gaston.  Idéalisme discursif, in.: Richerches philosophiques. 1934-1935. P. 22
4.      CANGUILHEM, Georges. Sur une épistémologie concordataire. In.:   BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 104.
5.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não. P. 139
6.      BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. P. 39
7.      BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. P. 37
8.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não. P. 18