quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Gaston Bachelard: sobre a psicanálise do fogo e outras divagações




Por Danilo José Viana da Silva

            É contrariamente a leitura propagada pelo ritual de embalsamento escolástico que tende mais a classificar e dividir as supostas “fases” (em se tratando de Bachelard, essa divisão se realizou com o intuito de dividir o seu pensamento entre a suposta “fase Diurna”, constituída pela sua filosofia da ciência, e a suposta “fase Noturna”, constituída por um suposto Bachelard poético, por um Bachelard “mais poético”) de um pensamento do que a levar em conta o quanto as suas noções básicas foram produzidas para a prática científica, que a psicanálise do fogo como uma psicanálise do conhecimento científico pode ser tomada (assim como o faz sociólogos como Bourdieu, por exemplo) como um instrumento que permite se ter um mínimo de consciência sobre o próprio processo de produção da verdade científica.

            O devaneio, assim como o fogo, jamais pode ser totalmente eliminado, ele está potencialmente vivo em várias dimensões. É com ciência de que o devaneio não cessa de afirmar sua força com um vigor comparável ao de uma labareda de fogo, que a pesquisa científica pode maximizar a vigilância epistemológica, “essa vigilância malévola”1, contra as causas mais imperceptíveis do próprio devaneio.

            A verdade científica, para Bachelard, corresponde a uma incessante “reforma de uma ilusão”1 , ou seja, a verdade cientifica pode ser pensada como uma ilusão bem fundamentada. A psicanálise do fogo além de corresponder a um importante instrumento que permite se compreender a potência criativa e incontrolável do devaneio (mais especificamente nas pesquisas sobre o fogo)  também permite   se produzir instrumentos de controle contra tal potência, sejam tais instrumentos os que o cientista emprega sobre si, sejam os que os componentes da cidadela científica empregam uns contra os outros, possibilitando assim o exercício do controle cruzando reforçado pela necessidade de prova pela experiência científica.   

É assim, com ciência da impossibilidade de se eliminar completamente o devaneio, que a descoberta da verdade científica se realiza como uma incessante polêmica contra o erro, como um constante e incessante processo de retificação. O suposto “Bachelard Noturno” não corresponde a um filósofo e historiador da ciência que “decidiu” fazer poesia, mas um filósofo preocupado com a própria potência do devaneio, da obscuridade, “do narcisismo que a experiência primeira proporciona”3 ... e o quanto o conhecimento desses vitais elementos pode ser importante e fundamental para a compreensão da composição e da complexidade do próprio conhecimento científico.

Como lembra um de seus mais ilustres discípulos,

“ainda ninguém tinha dito com a insistente certeza de Bachelard que, antes de tudo, a mente é em si mesma pura potência de erro, que o erro tem uma função positiva na gênese do saber e que a ignorância não é uma espécie de lacuna ou ausência, mas tem a estrutura e a vitalidade do instinto.”4    

            O devaneio enquanto potência ativa pode ser pensado como as várias implicações tão profundas do pensamento que elas próprias não se reconhecem. Tratam-se de experiências íntimas e, “quando fazemos experiências ítimas, contradizemos fatalmente a experiência objetiva.”5  É assim que um grande número de pensadores pode pensar com pretensões científicas sobre, por exemplo, uma realidade aparentemente tão evidente como o Estado mediante os próprios esquemas estatais e oficiais de construção cognitiva do mundo profundamente arraigados em seus espíritos: o que equivale a produção de uma  “ciência” preditiva de seu objeto.

            Em outras palavras, tal “ciência” acaba sendo incontrolavelmente  possuída por seu próprio objeto na medida em que as disposições mais inconscientes de seus realizadores são produtos do Estado, é assim que, como lembra Bourdieu, na medida em que pensamos o Estado mediante categorias de pensamento propriamente estatais, acabamos sendo “pensados por um Estado que acreditamos pensar”6 .

            É assim que as condições de pesquisa que se pretendem “científicas” se tornam bastante propícias para a realização do “encontro do Estado consigo mesmo.”7  Sendo o Estado uma realidade aparentemente evidente  e imediata, as pesquisas que o tomam como objeto podem ser pensadas, em sua maioria, como consideráveis exemplos de como o devaneio não cessa de afirmar sua força incessante, assim como nas pesquisas sobre o fogo que Bachelard chegou a analisar:


“o devaneio não cessa de retomar os temas primitivos, não cessa de trabalhar como uma alma primitiva, a despeito do pensamento elaborado, contra a própria instrução das experiências científicas.”8   
  

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1.      BACHELARD, Gaston.  A psicanálise do fogo. Trad. Paulo Neves. 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes. 2008. P. 02
2.      BACHELARD, Gaston.  Epistemologia. Trad. Nathanael C. Caixeiro, 2ª ed. ZAHAR EDITORES: Rio de Janeiro. 1983. P. 15
3.      BACHELARD, Gaston.  A psicanálise do fogo. P. 06
4.      CANGUILHEM, Georges. Sur une épistémologie concordataire. In.: BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. P. 103-104
5.      BACHELARD, Gaston.  A psicanálise do fogo. P. 07
6.      BOURDIEU, Pierre. Espíritos de Estado: gênese e estrutura do campo burocrático. In.: Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa – Campinas, SP. Papirus. 1996. P. 91
7.      BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: cursos no Collège de France. Trad.: Rosa Freire d´Aguiar. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2014. P. 173
8.      BACHELARD, Gaston.  A psicanálise do fogo. P. 05-06


terça-feira, 21 de outubro de 2014

A importância do retrovisor: algumas reflexões pascalianas





Por Danilo José Viana da Silva




Nesses dias em que um candidato a presidência da república insiste várias vezes para que o outro candidato “tire os olhos do retrovisor”, a crítica pascalina da razão autofundadora pode ser tomada como uma importante ferramenta de análise. Principalmente pelo fato de o citado candidato, no prelúdio de sua campanha, ter se identificado várias vezes como um representante da “Onda da razão”.

Não é por acaso que ele insiste na necessidade de se “tirar os olhos do retrovisor”, pois isso contribui para que o próprio fundamento histórico e social da razão que ele defende como razão imaculada (e que não teria outro fundamento a não ser ela mesma) seja esquecido. A afirmação de uma razão completamente desprovida de qualquer fundamento histórico contribui, em grande parte, para o próprio processo de naturalização do social e de todas as instituições que são produtos de várias lutas sociossimbólicas.  E uma razão que se pretende absolutamente autônoma (tal como os Sumos sacerdotes da razão imaculada defendem no período eleitoral) pode ser facilmente tomada como uma ferramenta política para se afirmar um projeto muito mais voltado para se ignorar as lutas sociais e históricas a partir das quais algumas das mais preciosas conquistas de nossa civilização se tornaram possíveis, do que para se lutar em prol da concretização do acesso as propriedades indispensáveis para a democratização cultural.

A onda da razão mítica, historicamente, tem muito mais a ver com a mera afirmação formal da democracia do que com a sua concretização. E a mera afirmação formal possui todas as características de um cinismo na medida em que, ao afirmar que “todos possuem o direito a vida, a educação, a saúde...”, não contribui, nem minimamente, para a democratização efetiva mediante a concretização das possibilidades de realização desses direitos formalmente afirmados. Trata-se de um cinismo na medida em que a afirmação meramente formal dos direitos da humanidade excluem todos os dominados das condições de acesso a tais direitos, o que equivale a excluí-los das condições de acesso a própria humanidade.

Olhar para o retrovisor é uma prática necessária para compreendermos um pouco mais sobre a nossa história, além de ser algo detestável para todos aqueles que se autointitulam como representantes da razão imaculada e que se pretende independente da própria história. É nesses dias que é preciso lembrar uma frase de Pascal: “O que assenta na são razão é bem mal fundado; como a estima da sabedoria.” (PASCAL, Blaise. Pensamentos. Abril Cultural. P. 119) Pascal conhecia bem os perigos propiciados pela Onda da Razão Imaculada... Olhar para o retrovisor é algo indispensável.   
   
Um projeto político que pretende reduzir a idade penal como forma de “combate a criminalidade” declara o tipo de política criminal que irá por em prática, qual seja, a neoliberal que, como lembra Wacquant, caracteriza-se pelo seguinte paradoxo:

pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. (WACQUANT. Loïc. As prisões da miséria. 2001. P. 7)

As políticas penais neoliberais são incompatíveis com um projeto político que pretende levar em conta as necessidades sociais e as políticas sociais de combate à miséria e à pobreza ( as quais correspondem as causas principais da criminalidade).  As políticas de combate a criminalidade que levam mais em conta o enrijecimento da legislação penal, tal como a redução da idade penal,  visam a implementação de uma política de criminalização da miséria, além de mostrar a sua indiferença para com as políticas sociais no que diz respeito ao combate a criminalidade.

  
  

        

terça-feira, 27 de maio de 2014

Max Weber e Pierre Bourdieu: Uma analogia entre o campo religioso e o universitário




Por Danilo José Viana da Silva


           
            É preciso considerar a importância da sociologia da religião de Max Weber na medida em que ela permite se construir analogias entre estruturas hierárquicas equivalentes, tais como as estruturas do universo acadêmico e do religioso, principalmente no que concerne ao processo de racionalização do qual as crenças religiosas foram objeto no decorrer da modernidade.

              O processo de racionalização e de burocratização da vida religiosa foi um dos objetos da sociologia compreensiva de Weber. Atrelado ao estudo do processo de racionalização e de institucionalização, pela Igreja, da vida religiosa, está o processo de monopolização por um corpo especializado (o sacerdócio) no trabalho de gestão dos bens de salvação (em contraposição aos profetas e leigos: desprovidos da autoridade propriamente religiosa garantida pela Igreja) da pregação ou do culto legítimo realizado em um local especialmente constituído para tal, em contraposição as seitas proféticas ou aos rituais de magia.

            É preciso frisar também que foi a partir dela (da sociologia da religião de Weber) que Pierre Bourdieu pôde construir uma sociologia do campo religioso (noção que não encontramos em Weber) enquanto estrutura de relações de força onde agentes providos de determinada competência lutam em prol da monopolização do capital de autoridade propriamente religiosa e do poder de gerir os bens reconhecidos como sagrados.

            Em outras palavras, ela possibilitou a construção de uma sociologia que leva em conta uma das questões mais relevantes sobre o poder simbólico, qual seja, a função de transfiguração das relações de força  (e o quanto o trabalho de racionalização levado a cabo pelo corpo de sacerdotes foi indispensável para tal), de transfiguração de uma ordem arbitrária; ou seja, o processo de santificação das relações de força mediante uma economia do desinteresse econômico, ou seja, mediante a denegação dos interesses estritamente econômicos, dos interesses particulares dos indivíduos. 

            O aparecimento das Igrejas e de um corpo de profissionais mais especializados no trabalho do culto está atrelado ao processo de universalização de práticas religiosas que eram mais relativas aos problemas particulares e concretos dos indivíduos. Ou seja, as práticas religiosas estavam bem mais relacionadas, antes das grandes religiões e do processo de universalização e de sistematização das práticas religiosas, aos interesses mais particulares, mais econômicos dos indivíduos.

            Como adverte Weber


A ação ou o pensamento religioso ou “mágico” não pode ser apartado, portanto, do círculo das ações cotidianas ligadas a um fim, uma vez que também seus próprios fins são, em grande maioria, de natureza econômica.1


            Em outras palavras, a ação religiosa (antes do moderno processo de racionalização e do aparecimento de uma instituição permanente encarregada de gerir os bens de salvação e de formar um corpo de profissionais hierarquizados e dotados de uma determinada competência garantida pela Igreja) “em sua existência primordial, está orientada para este mundo. As ações religiosas ou magicamente exigidas devem ser realizadas “para que vás muito bem e vivas muito e muitos anos sobre a face da terra.”2

            É neste sentido que atrelado ao processo de racionalização e de burocratização da ética religiosa levado a cabo pela Igreja como uma consequência da formação por ela de um corpo altamente especializado em tal trabalho de racionalização, está o processo de universalização das crenças religiosas que estavam mais voltadas para a realização dos interesses particulares de cada um.

            À medida que as práticas religiosas estão condicionadas à realização dos interesses pessoais, não há possibilidades de realização da rotinização racional do culto, pois este  realizava-se de forma aleatória e em relação aos interesses particulares, o que inviabilizava a existência de uma congregação de fiéis. O condicionamento das práticas religiosas em um estágio pouco burocratizado e racionalizado pode ser atestado pelas ações hostis, consistindo até mesmo em agressões, direcionadas aos deuses cuja adoração não propiciou os frutos desejáveis para os que os veneraram.

            Atrelado ao processo de racionalização da vida religiosa está o processo de constituição de uma congregação de fiéis, algo que, pelo menos em sua tipologia ideal, não pode ser constituído no seio das práticas rituais e das profecias, as quais eram levadas a cabo por profetas ou mágicos não atrelados ou formados por uma instituição permanente (a Igreja) e, por isso mesmo, desprovidos da competência  garantida pela Igreja para o exercício do culto legítimo.

            Mas o que realmente interessa no presente texto é o estabelecimento de uma relação de equivalência de função entre a ordem religiosa e a ordem acadêmica no que concerne a justificação do poder (em um caso, religioso, no outro, acadêmico) segundo preceitos gerais garantidos por uma instituição permanente (a Igreja ou o Estado enquanto instituição que garante o capital de autoridade aos títulos emitidos pela instituição universitária) e com capacidade de garantir a posse “real” de uma cultura independentemente da contingência existencial. Em outras palavras, como lembra Bourdieu


(...) na definição tácita do diploma, ao assegurar formalmente uma competência específica (...),  está inscrito que ele garante realmente a posse de uma “cultura geral”, tanto mais ampla e extensa quanto mais prestigioso for esse documento; e, inversamente, que é impossível exigir qualquer garantia real sobre o que ele garante formal e realmente, ou, se preferirmos, sobre o grau que é a garantia do que ele garante. 3   


            Neste caso, a garantia formal da cultura de um agente enquanto a garantia de uma posse real pode existir como uma espécie de essência que precede a existência, a própria contingência existencial.   

            É preciso considerar uma distinção importante na sociologia da religião de Max Weber, qual seja, a distinção entre os sacerdotes e os profetas, pois é a partir dela que se irá estabelecer uma relação de equivalência  entre a ordem religiosa e a universitária.

            Antes de tudo é preciso frisar que os sacerdotes constituem um corpo de profissionais ligados a uma instituição dotada de caráter permanente (no caso, a Igreja ). Os sacerdotes são “funcionários de uma empresa permanente, regular e organizada.”4  Eles, enquanto corpo de funcionários, podem ser definidos como um grupo que passou por uma formação consideravelmente homogênea.

                 E, como profissionais encarregados do trabalho de racionalização das crenças religiosas mediante, por exemplo, o trabalho de doutrinação, são incumbidos de realizar o trabalho do culto regular “vinculado a determinadas normas, a determinados tempos e lugares.”5   É preciso deixar claro que os sacerdotes passaram por uma formação, o que permite o exercício de um trabalho, por eles, que se dá em uma espécie de conluio involuntário, ou seja, um trabalho que se dá em uma lógica consideravelmente orquestrada segundo determinadas normas.

            Os sacerdotes, como lembra Weber, são incumbidos, enquanto corpo profissional adestrado, da “ocupação contínua com o culto e os problemas da orientação prática das almas.”E essa formação pode ser vista como resultante, em grande parte, do trabalho de racionalização levado a cabo pelos próprios sacerdotes, ou seja, eles contribuem para construir a ordem da qual a autoridade de que eles desfrutam depende.

            Observa-se que, diferentemente do profeta, o sacerdote está vinculado a uma instituição permanente que lhe garante um capital de autoridade religiosa independentemente da contingência existencial, ou seja, independentemente de ele ter que demonstrar constantemente, dar provas de sua competência propriamente religiosa.  A autoridade do sacerdote não está, diferentemente do profeta, baseada no carisma estritamente pessoal, mas em uma ordem hierárquica e em preceitos gerais, quer dizer, está baseada na “impessoalidade.”

            Já por “profeta”, como lembra Weber, “queremos entender aqui o portador de um carisma puramente pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino.”7 Em outros termos, diferentemente do sacerdote, cujo capital de autoridade está vinculado a uma instituição que garante  o seu reconhecimento, o capital de reconhecimento do profeta está vinculado ao seu carisma pessoal: neste sentido, ele deve dar constantemente provas de sua profecia, ele está, neste caso, sujeito a contingência existencial similar a de um autodidata que, por estar desprovido dos mais reconhecidos e consagrados títulos acadêmicos, deve dar provas de sua cultura.

            Os sacerdotes, como lembra Bourdieu, “ficam dispensados de confirmar a todo momento sua autoridade, e protegidos das consequências do fracasso de sua ação religiosa.”8   Trata-se de uma das características diferenciais mais relevantes entre os profetas e os sacerdotes. “Primeiro e sobretudo porque o segundo reclama autoridade por estar a serviço de uma tradição sagrada, e o primeiro, ao contrário, em virtude de sua relação pessoal ou de seu carisma.”9 Por isso mesmo o profeta está muito mais sujeito as contingências relativas a relação de oferta e demanda dos serviços e bens de salvação por parte dos leigos.
            Já o capital de autoridade e de reconhecimento (espécies de capitais simbólicos) estão assegurados, em grande parte, por uma instituição: pelo fato da garantia, pela instituição eclesiástica, do capital de autoridade religiosa dos sacerdotes, ou seja, pelo fato de tal autoridade não está baseada no carisma pessoal, eles podem estar sujeitos às mesmas regras de substituição e intercambiabilidade que podem ser encontradas nas instituições jurídico-burocráticas.  

            Ou seja, um sacerdote pode ser substituído por outro com a mesma titulação sem que isso acarrete uma defasagem no capital de autoridade, algo que não acontece no caso dos profetas. Diferentemente destes, os sacerdotes são profissionais intercambiáveis, tais como os promotores de justiça, por exemplo.

                Neste aspecto, os que seguem a doutrina ensinada pelo sacerdote, não obedecem propriamente e essencialmente ao sacerdote, mas ao sistema doutrinário característico da Igreja como instituição monopolizadora de legitimidade das práticas religiosas e que propicia a formação não de seguidores e discípulos, mas a constituição de uma congregação de leigos.

              O profeta, diferentemente do sacerdote, não é um administrador do culto. A sua situação, como lembra Weber,


não corresponde, em geral, aos interesses daqueles que administram o culto, os quais por isso procuram, quando e onde possível, passar para a formação de uma congregação, isto é, de uma relação associativa duradoura entre os adeptos, com direitos e deveres fixos.10     


            O profeta, por não passar pela formação doutrinária de uma instituição, é definido levando-se em conta o processo de monopolização da gestão religiosa pela Igreja, como um leigo ou profano, verdadeiro desprovido do capital de autoridade propriamente religioso: “o profeta ético e exemplar, em regra, é ele mesmo leigo e, em todo o caso, apoia sua posição de poder sobre o grupo de adeptos leigos”11 que não constituem, necessariamente, uma congregação organizada de fiéis, justamente por faltar, por exemplo, a “cotidianização, quando o próprio profeta ou seus discípulos asseguram a continuidade da revelação e da administração da graça.”12      Quando se trata da profecia ou de práticas religiosas não reconhecidas como tais pela Igreja, a regra geral é a livre relação ocasional.

             O objetivo deste texto é justamente denotar uma relação de equivalência entre o Estado (enquanto instituição burocrática encarregada de garantir a autoridade dos títulos universitários) e a Igreja (enquanto instituição hierárquica e burocrática encarregada de garantir o capital de autoridade religiosa dos títulos eclesiásticos).

            Neste caso, é possível observar uma relação de homologia entre os sacerdotes e os acadêmicos providos dos títulos mais nobres reconhecidos pela ordem universitária: no que concerne aos efeitos engendrados pela posse de títulos universitários, a relação de homologia pode ser construída no que diz respeito aos efeitos essencialistas. Em outras palavras, como lembra Bourdieu, os detentores dos títulos de nobreza cultural, ou seja, dos diplomas escolares e universitários,


Diferentemente dos detentores de um capital cultural desprovido da certificação escolar que, a todo o momento, podem ser intimados a apresentar seus comprovantes, por serem identificados apenas pelo que fazem, simples filhos de suas obras culturais, os detentores de títulos de nobreza cultural – neste aspecto, semelhantes aos detentores de títulos nobiliárquicos, cujo ser, definido pela fidelidade a um sangue, solo, raça, passado, pátria e tradição, é irredutível a um fazer, competência ou função – basta-lhes ser o que são porque todas as suas práticas valem o que vale seu autor, sendo a afirmação e a perpetuação da essência em virtude da qual elas são realizadas. Definidos pelos títulos que os predispõem e os legitimam a ser o que são, que transformam o que fazem na manifestação de uma essência anterior e superior a suas manifestações (...) 13    
 

            Diferentemente dos autoditadas desprovidos dos títulos escolares e acadêmicos, os detentores dos raros títulos universitários não devem provar a todo o momento a posse real de um determinado capital cultural, pois o título garantido pela instituição universitária tende a engendrar os efeitos essencialistas de constituir o possuidor enquanto o detentor real de determinado capital cultural irredutível a necessidade da constante submissão a prova. Tais títulos, assim como os títulos eclesiásticos, possibilitam fazer existir o que eles enunciam em conformidade com o enunciado, tratando-se de um efeito performativo da palavra autorizada e materializada no título escolar e/ou universitário.

            É preciso frisar que os profetas ocupam uma posição, no interior das lutas no campo religioso, que se contrapõe tacitamente a ordem eclesiástica. E a relação monopolística engendrada pela dominação propiciada pelas grandes religiões tende a excluir como religião todas as práticas que não estejam conforme as regras por tal ordem produzidas e impostas. A própria existência de uma profecia já constitui, em certa medida, uma “resistência” a ordem eclesiástica dominante, ela desafia a própria hierarquia.

            No caso dos universos escolar e acadêmico, é possível observar uma relação de homologia na medida em que a instituição acadêmica tende a definir a sua cultura e a forma, por ela vinculada, de se relacionar com a cultura como “as” maneiras legítimas, contribuindo, assim, para a desvalorização de todas as culturas e formas de com elas se relacionar que não estejam de acordo com os esquemas inculcados pela instituição universitária e escolar.


O curso ex cathedra  transmite algo distinto e a mais do que reza seu conteúdo literal: ele propõe um exemplo de proeza intelectual, e acaba por definir de modo inescapável a cultura legítima e a relação legítima com esta cultura. A seriedade e o brilho, a elegância e a naturalidade, eis algumas das qualidades que definem maneiras próprias ao ato de transmissão que marcam a cultura transmitida e impõe-se, junto com tal cultura, àqueles que a recebem mediante tais modalidades. Poder-se-ia mostrar igualmente de que modo todas as práticas pedagógicas propõem implicitamente o modelo da modalidade adequada da atividade intelectual.14  
               
    
            É neste sentido que pode-se pensar uma relação de homologia na medida em que as instituições escolar e universitária contribuem para ratificar, por meio dos títulos reconhecidos pelo Estado,  uma determinada cultura (a cultura da classe dominante econômica e intelectual) como a cultura legítima. Tratando-se, no caso, de instâncias que monopolizam o trabalho de definir determinada cultura particular como universal.

Trata-se de um trabalho, aquém de um plano explicitamente e conscientemente deliberado para tal, de definição,  tanto da cultura quanto da forma de com ela se relacionar, como legítimas. No caso do campo religioso, observa-se a homologia no que concerne ao processo de monopolização, atrelado ao trabalho de racionalização pelos sacerdotes, da definição da relação legítima com o sagrado.

Neste caso, assim como a religião se coloca como a mediadora na relação com o sagrado, as instituições escolar e universitária seriam a mediadoras na relação com a cultura. Assim como a ordem religiosa contribuiu para se estabelecer a distinção entre os competentes oficiais (os sacerdotes) e os leigos (ou seja, os que estão desprovidos dos títulos reconhecidos, incluindo aí os próprios profetas), as instituições escolar e universitária contribuem para se fortalecer a distinção entre os cultos e os leigos (verdadeiros profanos e não reconhecidos pela ordem acadêmica). 

            E enquanto instâncias que contribuem para a ratificação e a oficialização de uma determinada cultura ( a cultura da classe dominante) e da forma de com ela se relacionar ( a forma legítima) elas podem cumprir suas funções sociais mais nobres de produção, como faz a religião ( a propósito dos dominantes), de uma verdadeira “teodiceia de sua boa sorte.”15 Ou seja, uma verdadeira teodiceia da sorte dos dominantes.       
           

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1.     WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. I. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. 4ª Ed. 3ª reimpressão – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012. P. 279
2.       WEBER, Max. Ibid
3.       BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 28-29
4.       WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 294
5.       WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 295
6.       WEBER, Max. Ibid
7.       WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 303
8.       BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: Economia das trocas simbólicas.  Trad. Sergio Miceli. – São Paulo: Perspectiva, 2009.  P. 59
9.       WEBER, Max. Ibid
10.    WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 310
11.    WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 313
12.    WEBER, Max. Economia e sociedade. P. 311
13.    BOURDIEU, Pierre. A Distinção. P. 27-28
14.    BOURDIEU, Pierre. Sistemas de ensino e sistemas de pensamento. In.: Economia das trocas simbólicas. P. 219
15.    WEBER, Max. Sociologia das religiões. Trad. Cláudio J. A. Rodrigues. – 1.ed. – São Paulo: Ícone, 2010. P. 14







Foto de Max Weber

domingo, 4 de maio de 2014

Sobre "A conduta na Pesquisa" de Abraham Kaplan





Por Danilo José Viana da Silva



Livro interessante, mas que parece ser pouco conhecido por essas bandas. Um dos pontos que merece destaque é justamente a crítica à imagem idealizada da pesquisa, a qual é caracterizada pela crença na capacidade de reconstrução lógica e completa de todos os complexos atos de pesquisa. Ou seja, Kaplan afirma que boa parte daquilo que constitui uma pesquisa propriamente científica se dá em uma “lógica-em-uso” ou, como ele algumas vezes chama, “i-lógica-em-uso” que é inapreensível por completo pela reconstrução retrospectiva e lógica dos atos da investigação.  Como ele mesmo chega a lembrar: “os incidentes mais importantes do drama da ciência são montados em algum lugar por detrás das  cortinas. A  ampliação  do  conhecimento é,  sem  dúvida, básica  para  a   empresa científica mesmo de um ponto de vista lógico. A reconstrução convencional oferece o resultado, mas permanecemos ignorantes do enredo. Em segundo lugar, uma lógica reconstruída não é descrição, mas idealização da prática científica. Nem mesmo o maior dos cientistas possui um estilo cognitivo que seja inteira e perfeitamente lógico e a pesquisa mais brilhante continua a trair divagações que são demasiado humanas.”( KAPLAN, Abraham. A Conduta na Pesquisa: Metodologia para as Ciências do Comportamento. Trad. Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. – São Paulo: E.P.U. Ed. da Universidade de São Paulo. 2ª Reimpressão, 1975. P. 12-13)  A crença na capacidade da completa reconstrução lógica dos atos de pesquisa além de reproduzir uma imagem mutilada da própria pesquisa, acaba contribuindo para se reproduzir tanto a ilusão do completo esgotamento de tudo o que foi feito (mas também de tudo o que deve ser feito, tal como acontece com a ilusão do metodologismo, o qual tem como um de seus efeitos a dogmatização da realização científica)  na pesquisa pelo próprio pesquisador quanto para alimentar a ilusão de que tudo o que acontece na prática científica se dá de forma bem ordenada e não contraditória.  Kaplan mostra a importância de se levar em conta o modus operandi científico que acaba sendo reduzido, em virtude de um apego excessivo a lógica reconstruída e a metodologia, a um opus operatum. Contra o que ele chama de “mito da metodologia” (que consiste em acreditar que a metodologia é condição suficiente para a realização científica) e a imagem idealizada da pesquisa (imagem que, mediante a crença na autossuficiência da lógica reconstruída, acaba ignorando a complexidade da investigação), aqui está um livro relevante. Em suma, Kaplan argumenta que a pretensão da completa reconstrução lógica de todo o enredo de uma pesquisa corresponde a uma reprodução da visão idealizada da lógica da ciência que, por não conseguir captar aquilo que ela acha que conseguiu, acaba reproduzindo o que seria a pesquisa em seu refino e pureza, deixando de lado o modus operandi da e na prática cientifica.  Livro interessante, já está esgotado, mas ainda há alguns na estante virtual.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Pierre Bourdieu: sobre a reprodução das desigualdades sociais.





“Ah, o que vai ser de mim, qual será a minha sina! É duro viver nessa incerteza, sem ter um futuro”  (DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Gente pobre. Editora 34, 2009. P. 18)

 

 

 

Por Danilo José Viana da Silva

 

 

 

            A instituição escolar, na medida em que impõe as categorias de percepção e apreciação do mundo enquanto universais, quer dizer, enquanto entidades trans-históricas, contribuindo, assim, para a universalização de uma cultura de classe (a cultura da classe dominante) que não se afirma enquanto tal, tende a se constituir como uma das mais eficientes instâncias de reprodução da ordem sociossimbólica e do sistema de distribuição desigual de capital cultural.

            Uma das contribuições da sociologia de Pierre Bourdieu consiste em identificar o quanto o sistema escolar tende a contribuir para a reprodução da dominação sociossimbólica na medida em que, com a emissão de diplomas, por exemplo, contribui para ratificar a cultura dominante , ou seja,  contribui para institucionalizar, mediante a oficialização por diploma, a cultura adquirida, em grande parte, ainda em uma idade bem precoce no seio da família, onde as disposições associadas a postura e as predisposições legítimas são adquiridas via socialização familiar.

            Os conhecimentos associados aos ambientes mais escolásticos e que requerem uma disposição “desinteressada” (tal como a disposição para apreciar os bens de consumo artísticos reconhecidos como legítimos e distintos) podem ser tomados como exemplo dos efeitos da educação propiciada pela família:

 

Conhecendo a relação que, pelo fato da lógica da transmissão do capital cultural e do funcionamento o sistema escolar, estabelece-se entre o capital cultural herdado da família e o capital escolar, seria impossível imputar unicamente à ação do sistema escolar (nem, por mais força de razão, à educação propriamente artística – quase inexistente, como pode ser constatado com toda a evidência – que, porventura, tivesse sido proporcionada por esse sistema) a forte correlação observada entre a competência em matéria de música ou pintura (e a prática que ela pressupõe e torna possível) e o capital escolar: de fato, este capital é o produto garantido dos efeitos acumulados da transmissão cultural assegurada pela família e da transmissão cultural assegurada pela escola (cuja eficácia depende da importância do capital cultural diretamente herdado da família). Pelas ações de inculcação e imposição de valor exercidas pela instituição escolar, esta contribui também (por uma parte mais ou menos importante, segundo a disposição inicial, ou seja, segundo a classe de origem) para constituir a disposição geral e transponível em relação à cultura legitima que, adquirida a propósito dos saberes e das práticas escolarmente reconhecidos, tende a aplicar-se para além dos limites do “escolar”, assumindo a forma de uma propensão “desinteressada” para acumular experiências e conhecimentos que nem sempre são rentáveis diretamente no mercado escolar. 1

 

 

            A disposição inicial para a apreciação dos bens da cultura legítima não corresponde a uma disposição inata, mas a um produto de uma longa trajetória (que se dá desde a socialização familiar) onde as categorias legítimas de apreciação e de percepção do mundo social foram inculcadas, depositadas no mais profundo âmago dos agentes.

            Neste caso, o habitus enquanto um conjunto incorporado de esquemas produtores de percepção e de práticas corresponde a um produto da interiorização de determinada estrutura social e de determinada condição de classe. Ou seja, o habitus corresponde a uma “forma incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela impõe.”2

            O que quer dizer que não se pode pensar a noção de habitus independentemente da noção de Campo como uma determinada estrutura de relações de força, enquanto determinado espaço onde determinada espécie de capital é distribuída desigualmente (lembrando que a distribuição desigual é justamente um dos efeitos das lutas no interior do campo). É neste sentido que, para Bourdieu, a oposição entre agente e estrutura social, a oposição entre indivíduo e sociedade, não passa de uma falsa oposição que, ao invés de contribuir para as ciências sociais, corresponde a um verdadeiro obstáculo que foi também questionado por Norbert Elias em A sociedade dos indivíduos.  

            Alguns dos efeitos mais perniciosos dessa falsa oposição podem ser exemplificados na oposição entre a noção de individuo racional e livre das determinações sociais, de um lado, e, de outro, o estabelecimento de uma estrutura que toma as ações dos agentes enquanto seus meros reflexos.

            Neste caso, segundo o espaço social constituído por uma distribuição desigual de propriedades pertinentes, não se pode ignorar as ações dos agentes (reduzidos a meros epifenômenos das estruturas pela tradição estruturalista) nas lutas para modificar ou conservar tal sistema de distribuição, e o quanto estas ações são engendradas pelo habitus como um produto das próprias condições de existência explicáveis, em grande parte, pelos efeitos das distribuições desiguais de determinadas espécies de capitais.

            Assim, não se pode ignorar o próprio sistema de distribuição desigual de propriedades associadas a cultura reconhecida como legítima, e o quanto essa desigual distribuição também está estruturada geograficamente em um espaço social hierarquizado:

 

Ou dito em outras palavras, a distância social real de um grupo a determinados bens deve integrar a distância geográfica que, por sua vez, depende da distribuição do grupo no espaço e, mais precisamente, de sua distribuição em relação aos “núcleos dos valores” econômicos e culturais (...) 3     

 

            A distância dos dominados aos bens da cultura dominante e reconhecidos ( pelos que estão munidos dos esquemas adequados para tal, pois foram produzidos pelo próprio universo no qual eles atuam) como  bens dotados de um alto grau de raridade se define tanto pelo fato deles (os dominados) não terem passado ( e de não terem ao menos a oportunidade para tal) por uma educação caracterizada pela sua raridade, quanto pelo sistema de distribuição das propriedades de acesso aos bens legítimos expresso por um espaço geograficamente hierarquizado segundo a própria relação de proximidade com os bens reconhecidos como raros e distintos.     

           

 

É assim que, por exemplo, a distância dos agricultores aos bens de cultura legítima não seria tão imensa se, à distância propriamente cultural que é correlata de seu baixo capital cultural, não viesse juntar-se o afastamento geográfico resultante da dispersão no espaço que caracteriza esta classe. 4      

 

 

            Estando distantes culturalmente e geograficamente da cultura reconhecida como legítima, e merecedora dos mais nobres trunfos pelo sistema escolar e universitário, os filhos de boias frias no interior de Pernambuco, por exemplo, podem se encontrar duplamente excluídos do acesso a cultura reconhecida como legítima e universal por aqueles que incorporaram os princípios de visão relativos a tal cultura, e que, por isso, são produtos e depositários dessa cultura.
 
 
 
 
 
 

            E tais efeitos de exclusão são fortalecidos pelo próprio sistema escolar, mediante, por exemplo, os mais diversos vereditos professorais que se expressam nas formas de conselhos, por exemplo, “isso não é para você”. Estando distantes tanto culturalmente quanto geograficamente do acesso às grandes bibliotecas, aos cinemas, aos teatros, aos centros culturais, etc. os dominados estão duplamente excluídos do acesso a cultura reconhecida pelo sistema escolar e pelas instâncias universitárias.

            Sendo o habitus um produto das condições de classe que se expressa por determinadas disposições (a disposição para ir ao teatro, para ir a biblioteca, para ir ao cinema cult, etc.) pode-se compreender que a indisposição para a apreciação dos bens raros da cultura dominante que se apresentam como universais (o que explica, em grande parte, os mais variados fetichismos relativos a posse de uma cultura reconhecida como elevada) não corresponde a uma característica inata, mas a efeitos de dominação decorrentes, em grande parte, da distribuição desigual de capital econômico e cultural que é um produto das relações de força que constituem as bases da sociedade. 

           

 

Quando os poderes estão desigualmente distribuídos, em vez de se mostrar como universo de possíveis igualmente acessíveis a todo sujeito possível – postos a ocupar, estudos a fazer, mercados a conquistar, bens a consumir, propriedades a trocar etc. - , o mundo econômico e social se apresenta como um universo banalizado, semeado por injunções e proibições, por signos de apropriação e exclusão, por sentidos obrigatórios ou barreiras instransponíveis, numa palavra, profundamente diferenciado, sobretudo conforme o grau em que propõe oportunidades estáveis e de modo a favorecer e a preencher expectativas estáveis. 5   

 

 

 

            Essa distribuição desigual de propriedades pertinentes que constitui o espaço social enquanto um espaço hierarquizado (o que pode ser observado, por exemplo, em virtude dos preços dos imóveis localizados próximos dos ambientes mais distintos) corresponde a um dos princípios de explicação dos efeitos da violência simbólica, dessa violência silenciosa que os dominados sofrem quando, por exemplo, entram em contato com os universos reconhecidos pela cultura dominante, ou, até mesmo, quando são obrigados a entrar em contato com os escalões burocráticos e jurídicos juntamente com a linguagem protocolar característica desses escalões.

            Tal desigualdade de distribuição também pode ser tomada como um princípio de explicação das tomadas de posição referente ao investimento no futuro, a disposição para se investir no futuro (efeito da disposição para se investir em determinado jogo), ou das disposições para não se investir em nada que possa modificar uma vida de exclusão e de proibições (tal como acontece, por exemplo, com alguns filhos de boias frias – vítimas das políticas neoliberais da imposição do trabalho da miséria e da flexibilização dos direitos trabalhistas –  herdam a profissão do pai, tratando-se de um caso onde o herdeiro é possuído pela herança que ele herda).

           

 

Sob suas diferentes espécies, o capital é um conjunto de direitos de preempção sobre o futuro, garante a alguns o monopólio de certos possíveis que, no entanto, encontram-se oficialmente garantidos a todos (como o direito a educação). Os direitos exclusivos consagrados pelo direito constituem apenas a forma visível e explicitamente garantida desse conjunto de oportunidades apropriadas e de possíveis antecipados, logo convertidos, para os demais, em proibições de direito ou em impossibilidades efeitos, pelos quais as relações de força atuais se projetam sobre o futuro, orientando, por sua vez, as disposições presentes. 6      

 

 

            O investimento no futuro está relacionado a disposição para tal, que, por sua vez, é um produto da incorporação de determinada estrutura de oportunidades que tende a constituir as grandes expectativas. E aqueles que estão objetivamente excluídos das condições de acesso a cultura sofrem os mais perversos efeitos da dominação econômica e simbólica (juntamente com os efeitos do racismo da inteligência que tal dominação engendra); tal como a perpetuação das desigualdades sociais. Os dominados, por não possuírem um considerável poder sobre as oportunidades, por não possuírem uma considerável margem de manobra sobre  futuro, sobre as oportunidades que comandam as suas expectativas, as aspirações, o futuro, tendem a constituir expectativas de acordo com os limites e  condições de existência caracterizadas pela exclusão tanto subjetiva quanto objetiva das condições de acesso aos espaços mais reconhecidos da cultura e que tendem a se expressar pelos efeitos das proibições silenciosas “isso não é para você”, “isso não é para mim”.

            O habitus, por ser a interiorização inconsciente de uma determinada condição de existência, tende a se adequar as próprias condições das quais ele é um produto. É neste sentido que os dominados tendem a reproduzir inconscientemente a sua própria dominação. E a instituição escolar, longe de ser uma instância “neutra”, contribui para a imposição da cultura dominante e para a resignação dos dominados (“não tenho capacidade, paciência”), contribuindo para reproduzir, assim, a própria dominação; assim como a religião tende a produzir, como afirma Max Weber, “às pessoas felizes, a teodiceia de sua sorte”7 , a instituição escolar tende a produzir a teodiceia da sorte dos dominantes.

            É neste caso que a sociologia de Bourdieu (na medida em que possibilita se compreender as relações mais intricadas de dominação que encontram o seu reforço no trabalho de inculcação das categorias de percepção, de apreciação, de ação e de construção do mundo social) corresponde a uma potente arma contra a dominação que também se da dentro do mais profundo âmago dos agentes sociais.

            É assim que tal sociologia permite se pensar, como lembra Wacquant a respeito, que “los sistemas sociales son productos sociales que contribuyen a hacer el mundo, que no sólo reflejan las relaciones sociales sino que ayudan a constituirlas, entonces, dentro de ciertos límites, es posible transformar al mundo transformando su representación.” 8     

            É assim que cabe apelar a uma Realpolitik que  afirma ( mediante uma investigação científica da distribuição desigual das propriedades pertinentes no espaço social e seus efeitos)

 

 

como seu objetivo trabalhar para favorecer em todo lugar e por todos os meios o acesso de todos os instrumentos de produção e de consumo dos acervos históricos instituídos como universais pela lógica das lutas internas dos campos escolásticos (evitando constituí-los em fetiches e buscando desentranhá-los, por uma crítica impiedosa, de tudo o que devem à exclusiva função social de legitimação). 9      

 

 

            Contra a vulgata neoliberal de precarização  das escolas públicas em favor do fortalecimento das grandes e reconhecidas escolas privadas (monopólio dos que possuem as condições para nelas ingressar) a sociologia de Bourdieu possibilita diversos instrumentos de combate, onde a transformação social não deve apenas se dá nas estruturas objetivas, mas nas estruturas mentais incorporadas e depositadas no mais profundo âmago dos agentes sociais. A sociologia de Bourdieu corresponde a uma das armas mais potentes contra a naturalização da desigualdade social.         

                

                              

______________                      

1.      BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. 2ª ed. Rev. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. P. 27

2.      BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. P. 97

3.      BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. P. 114

4.      BOURDIEU, Pierre. Ibid

5.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Trad. Sergio Miceli. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2007. P. 275

6.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 276

7.      WEBER, Max. Sociologia das religiões. Trad. Cláudio J. A. Rodrigues. – 1.ed. – São Paulo: Ícone, 2010. P. 14

8.      WACQUANT. Loïc. Hacia uma praxeología social: La estrutura y la lógica de la sociologia de Bourdieu. In.: BOURDIEU, Pierre e WACQUANT. Loïc. Una invitación a la sociologia reflexiva. – 2ª ed. 1ª reimp. – Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. P 39

9.      BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. P. 98