quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Gaston Bachelard: Algumas divagações sobre a Razão polêmica


Por Danilo José Viana da Silva


“Para que uma vigilância de si tenha toda a garantia, é necessário que, de algum modo ela mesmo esteja sob vigilância” (BACHELARD. Gaston. O Racionalismo Aplicado)  

Tratamos no texto anterior do Primado Teórico do Erro da epistemologia bachelardiana, bem como da relação desse primado com a noção de Razão Polêmica. Mas, como a nossa pretensão foi tratar mais sobre o aludido primado, assim como de tentar denotar o quanto ele é relacional e importante na epistemologia bachelardiana, deixamos de lado alguns pontos inerentes a Razão Polêmica.  
Nosso objetivo, por hora, é tratar, mesmo que de maneira superficial, de um ponto inerente a Razão Polêmica: trata-se de um ponto que é de crucial importância para diferenciar a polêmica científica da polêmica vulgar. E tal ponto é justamente a vigilância e o questionamento epistemológico sobre si mesmo: ou seja, falar de Razão Polêmica na epistemologia bachelardiana não é tratar apenas e tão somente do necessário questionamento realizado por e na cidade científica, ou seja, por toda a sociedade de cientistas, mas também se trata de uma vigilância, de um questionamento constante exercido sobre si mesmo, sobre o próprio pensamento, não apenas sobre os dos outros.
A necessidade do questionamento exercido pela cidade científica, como Bachelard lembra no trecho seguinte, corresponde a uma forte ferramenta contra a ilusão do individualismo do saber, onde o auto-questionamento de um indivíduo atomizado bastaria:

Se, por outro lado, se tomar o conhecimento científico no seu aspecto moderno levando à perfeição toda a sua actualidade, não pode deixar de valorizar-se o seu carácter social bem definido. Conjuntamente, os sábios unem-se numa célula da cidade científica, não apenas para compreender, mas ainda para se diversificarem, para activarem todas as dialécticas que vão dos problemas precisos às soluções originais. A própria diversificação, como deve fazer a prova socialmente do seu valor, não é totalmente individualista. Esta socialização intensa, claramente coerente, segura das suas bases, ardentes nas suas  diferenças, é ainda um facto, um facto de uma singular actualidade. Não respeitá-lo seria cair numa utopia gnosiológica, a utopia do individualismo do saber. 1          


            A cidade científica (a qual corresponde ao caráter social do questionamento científico, na medida em que afirma esforços para retificar, diferenciar o conhecimento)  não pode ser vista como uma bolha, ao revés, ela é altamente relacional, relaciona-se com a cultura de seu tempo e é por ela também produzida. Assim, como ele mesmo lembra, “Ser um químico é colocar-se numa situação cultural, ocupando um lugar, incluindo-se numa categoria, numa cidade científica nitidamente determinada pela modernidade da investigação. Todo o individualismo seria um anacronismo.” 2  
            Ou seja, pensar em um agente que ocupa a posição de cientista na cidade científica é pensar em alguém que é produzido por determinada cultura, e pensar em cidade científica não é pensar em uma clausura fechada e absolutamente autônoma, mas em uma comunidade que também sofre os efeitos de pressões externas (pressões econômicas, políticas, etc). A produção do cientista como a de um agente que é constantemente moldado pela cultura e pelas descobertas da época, por exemplo, corresponde a um importante instrumento contra a imagem de um indivíduo atomizado e irrelacional no interior da cidade científica, a qual, como já dissemos3, não corresponde a uma bolha ou a uma clausura absolutamente autônoma frente as pressões de seu tempo. E também não é cair na ilusão do interacionismo livre, pois, afinal, há posições, lugares que são ocupados na cidade científica por agentes, e tais posições tendem a contribuir para impulsionar determinado cientista a agir de maneira X ao invés da maneira Y.
            E justamente com o questionamento realizado na cidade científica, deve atuar a vigilância que o cientista deve exercer sobre si mesmo, sobre suas práticas, sobre suas produções, sobre os instrumentos que utiliza... Bachelard estabelece três graus de vigilância epistemológica em O Racionalismo Aplicado. Neste caso, falaremos desses três graus de maneira bastante superficial (pois isso demandaria outro texto) para adentrarmos no tema referente a necessidade do auto-questionamento que o cientista deve realizar.  
            O primeiro grau denota a atitude do espírito influenciado pelo empirismo científico, (um fato é um fato e nada mais) onde o cientista embebeda-se com a expectativa do inesperado ou do esperado sem método. É a expectativa do fato definido e bem designado, aqui, “o fato é um fato e pronto!” Já a vigilância de segundo grau  pressupõe a construção e a explicitação de um método, bem como a vigilância em sua própria aplicação. Todavia, é só com a vigilância de terceiro grau que o questionamento propriamente epistemológico aparece: trata-se, como Bachelard lembra, “de uma vigilância de vigilância de vigilância – dito por outras palavras (vigilância)3 .” 4  Aqui há a ruptura com a ilusão pré-científica do método absoluto e utilizado “como o sistema CGS, que servem para medir tudo.”5  Trata-se (a vigilância)3 de uma das mais importantes ferramentas contra os falsos absolutos que ainda podem existir na vigilância de segundo grau, ou seja, pensar em vigilância de terceiro grau é pensar em um constante e necessário questionamento e superação dos métodos e teorias vistos como absolutos e inquestionáveis; é preciso que o método prove a sua finalidade racional.
            E é justamente a vigilância de terceiro grau que jamais deve ser deixada de lado nem pelo próprio cientista, nem pela e na cidade científica na medida em que realizam o questionamento epistemológico: é necessário que o cientista mantenha a sua própria técnica, as suas condições de utilização, sob vigilância, é preciso que ele os mantenha no plano da vigilância de seus pensamentos, é necessário que ele questione o método que utiliza, é necessário um rigoroso auto-questionamento, afinal, é isso que também diferencia a crítica científica da vulgar.
            A Razão Polêmica e a vigilância de terceiro grau correspondem a ferramentas indispensáveis para o questionamento e para a psicanalização  epistemológica do conhecimento científico, assim como também a indispensáveis instrumentos contra as ilusões e o ego do espírito pré-científico e sua inconsciência triunfante.                   
                                                   
            ____________________
1.      BACHELARD, Gaston. O materialismo racional. Trad. João Gama. – Lisboa: Edições 70. P. 10
2.      BACHELARD, Gaston. Op. Cit. P. 11
4.      BACHELARD. Gaston. O Racionalismo Aplicado
5.      BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não: o novo espírito científico. Trad. Joaquim José Moura Ramos. – São Paulo: Abril Cultural, 1978. P. 17