sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Antonio Negri: o poder constituinte como ausência de pressupostos e plenitude de potência



   Danilo José Viana da Silva

            O constitucionalismo e a ciência jurídica afirmam um paradoxo insustentável, como bem lembra Antonio Negri, tal paradoxo extremo consiste no “jogo de afirmar e negar, de tornar algo como absoluto e depois estabelecer-lhe limites – que é tão próprio do seu trabalho lógico – como o fez a propósito do poder constituinte.” 1
            Eis o problema: o poder constituinte é visto como um poder absoluto e ilimitado e, ao mesmo tempo, limitado. O poder constituinte é, assim,  ilimitado e limitado. Mas que limites são estes impostos pelo constitucionalismo e pela ciência jurídica?
            Negri cita dois grandes limites, os quais visam reduzir a onipotência e a expansividade do poder constituinte; tratam-se de dois limites que desnaturam o poder constituinte e que visam negar a crise por que passa a sua definição jurídica: são os limites temporais e espaciais.
            O primeiro limite tem por finalidade, por meio da judicialização da revolução e do poder constituinte, “transformar o poder constituinte em poder extraordinário, comprimi-lo no evento e encerrá-lo numa factualidade somente revelada pelo direito.” 2  O poder constituinte é reduzido à revelação jurídica da revolução ( evento passado) e, em vistas disso, a grande preocupação do pensamento jurídico será   terminar a revolução. A onipotência do poder constituinte é reduzida (tentam reduzir) à judicialização da revolução e do poder constituinte. Assim, a revolução deveria ser um rápido evento que visaria apenas instaurar e organizar o aparato burocrático, a hierarquia dos poderes: a revolução, como evento já passado, deverá ser encerrada. (era como se a sua função tivesse chegado ao fim)
            O próprio tempo do poder constituinte é “fechado, detido e confinado em categorias jurídicas, submetido à rotina administrativa.” 3 Trata-se de uma verdadeira canalização do tempo do poder constituinte, este é reduzido à uma cronologia sem vida.
            Os limites seguintes (os espaciais) existem em razão de o poder constituinte não ser apenas onipotente, ele “é também expansivo, seu caráter ilimitado não é apenas temporal, é também espacial.” 4  Os limites espaciais - estabelecidos pelo constitucionalismo ou pela ciência jurídica - visam reduzir e regular a expressão espacial do poder constituinte. Nestes termos, tal desnaturação afirma que o poder constituinte “deve ser reduzido a norma de produção do direito, interiorizado no poder constituído.” 5
            Uma monstruosa parafernália jurídica recobre o poder constituinte e o reduz a mero sujeito produtor de normas jurídica, do ordenamento jurídico. O poder constituinte acaba sendo desnaturado por limites e procedimentos rígidos e bem definidos; ele não pode mais ser visto a não ser como mera atividade de revisão constitucional, norma de interpretação; enfim, o poder constituinte é confinado na rotina burocrático-parlamentarista.
            O constitucionalismo também estabelece limites subjetivos ao poder constituinte, estes limites, após a desnaturação realizada pelos precedentes, têm por finalidade dissecar o poder constituinte. O limite subjetivo dissolve a originalidade e o caráter inalienável do poder constituinte, logo após, há a supressão do “nexo que historicamente liga o poder constituinte ao direito de resistência.” 6   O que escapar dessa detestável empreitada, será submetido e absorvido por conceitos que sufocam o poder constituinte, conceitos como os de Povo, Nação, por exemplo.
            Em outra obra, Negri e Hardt lembram o quanto tais conceitos impossibilitam pensar, por exemplo, que a multiplicidade social seja capaz de agir em comum e se manter internamente diferente. Tratam-se de conceitos que - por serem concepções unitárias, por reduzirem as diferenças a uma única identidade - são saberes de encomenda e mecanismos de limitação-canalização do poder constituinte:
O povo tem sido tradicionalmente uma concepção unitária. A população, como se sabe, é caracterizada pelas mais amplas diferenças, mas o povo reduz esta diversidade a uma unidade, transformando a população numa identidade única: o “povo” é uno. A multidão, em contrapartida, é múltipla. A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, etnias, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares. 7    
           
            Negri e Hardt nos convidam a pensar a multidão, a qual jamais pode ser reduzida a uma identidade (Povo) ou uniformidade ( Massa) a Massa impede também a formação de diferentes sujeitos sociais. “A essência das massas é a indiferença: todas as diferenças são submersas e afogadas nas massas.” 8   E é no conceito de Nação, assim como no de Povo, que o poder constituinte é sufocado. Todo evento antagonístico desaparece.
            Neste caso, o constitucionalismo e a ciência jurídica negam não apenas a crise por que passa a sua definição de poder constituinte, mas também a potência da multidão; esta potência é negada por meio dos conceitos unitários que sufocam o poder constituinte.
            E, finalmente, a ciência jurídica e o constitucionalismo celebram uma grande festa  em comemoração a uma das mais perversas limitações por eles realizada: trata-se da absorvição do poder constituinte pelo mundo da representação, ou melhor, pela máquina da representação.
O caráter ilimitado da expressão constituinte é limitado na sua gênese, porquanto submetido às regras e à extensão relativa do sufrágio; no seu funcionamento, porquanto submetido às regras parlamentares; no seu período de vigência, que se mantém funcionalmente delimitado, mais próximo à forma da ditadura clássica do que à teoria e às praticas da democracia: em suma, a idéia de poder constituinte é juridicamente pré-formada quando se pretendia que ela formasse o direito, é absorvida pela idéia de representação política quando se almejava que ela legitimasse tal conceito. 9   

            Assim, o poder constituinte não pode exprimir-se a não ser através da representação, o poder constituinte reduzido à atividade de produção de normas jurídicas é, então, “inserido no grande quadro da divisão social do trabalho.” 10  Mas quando se realiza tal limitação, a negação da realidade do poder constituinte se anima. Trata-se da canalização do trabalho vivo e imposição do trabalho morto.
Vale lembrar que a perspectiva de Negri e Hardt não corresponde a um tipo de reformismo; como eles lembram, o “nosso problema não é mais demonstrar que o reformismo é impossível: não é somente impossível, mas também entediante, perverso, repetitivo e cruel. O Estado não é mais defensável, nem com ironia.” 11 Negri pensa alternativas para se afirmar o poder constituinte da multidão contra o poder constituído do Estado e da soberania. Essas alternativas colocam o problema necessário da “produção alternativa de subjetividade e a constituição alternativa do poder.” 12  As forças emergentes são vistas não mais como algum tipo de pressão reformista da ordem existente, “mas como elemento de  um novo poder constituinte.” 13   
Poder produtivo, - não reduzido ao mundo da representação – criativo e afirmativo; afirma uma infinitude de expressões singulares de potência produtiva, multiplicidades de redes de cooperação, afirmação do trabalho vivo. O poder constituinte, segundo Antonio Negri, é a afirmação da democracia como procedimento absoluto, (e não limitado como quer a ciência jurídica e o constitucionalismo) é uma democracia sem limites, sem teleologia, sem fundamento. O poder constituinte é a afirmação do monopólio da força que “pertence à série de sujeitos,” 14  e não ao Estado; neste caso, nada pode preceder o processo. Não há bloqueios das “possibilidades de construir sempre novas hipóteses de coabitação e montagens de cooperação.” 15    
Poder constituinte é imanência absoluta sobre as superfícies do possível; eis o processo sem  precedentes, sem pressupostos.  Ausência de pressupostos e plenitude de potência. Trata-se do trabalho vivo: “fundamento e motor de toda a produção, de todo desenvolvimento, de toda inovação,” 16 cujo tempo atinge concentrações que são frequentemente espasmos. O poder constituinte como ausência de pressupostos e plenitude de potência é afirmação da vida, também dos poderes dionisíacos dos mais subterrâneos mundos... O poder constituinte, segundo Negri, é onipotente, expansivo, ilimitado e inconcluso.                                                                                                      
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1.       NEGRI, Antonio. O Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Trad. Adriano Pilatti- Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 9
2.       NEGRI, Antonio. Ibid
3.       NEGRI, Antonio. Ibid
4.       NEGRI, Antonio. Op. cit. p. 10
5.       NEGRI, Antonio. Ibid
6.       NEGRI, Antonio. Ibid
7.       NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Multidão: Guerra e democracia na era do Império, Trad. Clóvis Marques, Rev. Téc. Giuseppe Cocco, Ed. Record, Rio de Janeiro, São Paulo, 2005, p.13
8.        NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Ibid
9.       NEGRI, Antonio. Op. cit. p. 11
10.    NEGRI, Antonio. Ibid
11.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso: Para a crítica ao Estado pós-moderno. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF- PAZULIN, 2004. p. 194
12.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso. p. 192
13.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso. p. 193
14.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso. p. 199
15.    NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Ibid
16.    NEGRI, Antonio. Op. cit. p. 53