sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Gilles Deleuze: Por uma história da filosofia concreta

  

Danilo José Viana da Silva
Já sabemos que a filosofia, para Deleuze, “é a disciplina que consiste em criar conceitos,”1 e que não há conceitos, ou melhor, não há criação de conceitos sem os problemas em função dos quais ele foi fabricado. Simples: não há criação de conceitos sem problemas; há até encruzilhadas destes onde um conceito se alia a outros coexistentes.
A filosofia, assim, é criativa, ela é “tão inventiva quanto qualquer outra disciplina;”2 não há criação, em filosofia, sem que haja uma necessidade, pois “os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos.”3  Neste caso, a filosofia não pode ser encarada como abstração, a história da filosofia, assim, é coisa nada abstrata, justamente pelo fato de Deleuze sempre revelar os problemas para os quais determinados conceitos foram criados. Trata-se de revelar o problema, pois, como ele mesmo lembra no seu Abecedário,  
O filósofo já expôs os conceitos que está criando. Ele não pode, além disso, expor os problemas que os seus conceitos... ou, pelo menos, só se podem encontrar estes problemas através dos conceitos que criou. E se não encontrou o problema ao qual responde um conceito, tudo é abstrato. Se encontrou o problema, tudo vira concreto. 4
            Deleuze nunca escreve sobre os conceitos, sem  revelar os problemas, sem se remontar aos problemas posto pelo filósofo. É justamente por isso que ele deixa bem claro que  uma atenta leitura da filosofia de Platão, por exemplo, corresponde a uma leitura  bem concreta: “Se nos entregamos à leitura de Platão é por aí que tudo se torna tão concreto!”5
            Mas, como assim?
Deleuze quando pinta, por exemplo, um retrato de Platão, não deixa de lado os problemas para os quais o conceito de Ideia foi fabricado:
O pretendente não é conforme ao objeto senão na medida em que se modela   (interiormente e espiritualmente) sobre a Ideia. Ele não merece a qualidade (por exemplo, a qualidade de justo) senão na medida em que se funda sobre a essência (a justiça). Em suma, é a identidade superior da Ideia que funda a boa pretensão das cópias e funda-a sobre uma semelhança interna ou derivada. 6 
            Trata-se, então, de um verdadeiro critério de seleção dos pretendentes. Haviam muitos pretendentes ao político, sendo este o pastor dos homens, “toda espécie de rivais surge, o médico, o comerciante, o trabalhador, para dizer: “O pastor dos homens sou eu.”7  Eis o problema para o qual o conceito de Ideia foi criado por Platão – trata-se do conceito platônico de Ideia. Tudo isso é bem concreto, há uma necessidade, algo que faz com que Platão crie tal conceito: Selecionar os legítimos pretendentes e excluir os falsos, os simulacros.
            Assim, “um criador só faz aquilo que tem absoluta necessidade.”8 Deleuze, quando faz história da filosofia, escreve a necessidade sentida pelo filósofo; tal história nunca será, por isso mesmo, abstrata. Trata-se de uma história da filosofia concreta.
            Para ele, os que contam história da filosofia sem revelar os problemas a partir do qual determinado filósofo fabricou conceitos, acabam contando uma história da filosofia abstrata em dobro, justamente por eles acharem a filosofia  abstrata:
Quando acham que a Filosofia é abstrata, a história da Filosofia passa a ser abstrata em dobro, já que ela nem consiste mais em falar de idéias abstratas, mas em formar idéias abstratas a partir de idéias abstratas. Para mim, a história da Filosofia é uma coisa muito diferente. 9
            Trata-se de uma história abstrata em dobro, visto que já partem da abstração, e, a partir desta, formam mais abstrações. Parte-se de abstração, neste tipo de história, e, nestes termos, tudo é feito como se os conceitos viessem do nada. Não haveria nenhum problema, os conceitos, assim, estariam prontos no ar. Eis um grande equívoco que é denunciado por Deleuze: “Os conceitos não nascem prontos, não andam pelo céu, não são estrelas, não são contemplados.” 10           Deleuze se recusa a contar uma história da filosofia nestes termos, visto que tal história não afirma a filosofia como criação, ou seja, essa história da filosofia abstrata esconde, recusa-se a explicar o problema que levou o filósofo a inventar um conceito.
 Deleuze quanto pinta um retrato de Platão, Hume, Spinoza, Nietzsche e outros, sempre escreve os problemas e as criações que daí advém. Trata-se de uma história da filosofia nada abstrata, mas concreta; a história da filosofia, em termos deleuzianos, afirma a “mais elevada tarefa – a que consiste em determinar os problemas, em neles inscrever nosso poder decisório e criador.” 11  Tal história da filosofia concreta afirma a potência inerente a vida, ela afirma o movimento constante da criação.                   
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1.       DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Trad.: Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. – Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. P. 13
2.       DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Trad.: José Marcos Macedo. Palestra de 1978, Edição brasileira: Folha de São Paulo, 27/06/1999, P. 3
3.       DELEUZE, Gilles. Ibid
6.       DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. In: Lógica do Sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. – São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 262
7.       DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. P. 260
8.       DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Ibid
11.    DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad.: Luiz Orlandi, Roberto Machado, 2ª Ed. Rio de Janeiro:   Graal, 2006, p. 372