sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A propagação da nova administração da miséria



  Danilo José Viana da Silva

            A particularidade da nova política da administração da miséria pelo cárcere consiste na universalização de particularismos vinculados a um contexto histórico singular. Tal desparticularização é realizada por toda uma plêiade de intelectuais, de grandes setores da mídia e por múltiplos outros agentes, cuja principal tarefa é fazer com que tais ideias atravessem o Atlântico para aportarem em Londres e, a partir daí, estenderem “suas ramificações por todo o continente.” 1
            Essa nova vulgata planetária prega a necessidade do fortalecimento do Estado penal e policial, e a supressão e enfraquecimento do Estado econômico e social. Por meio da divulgação e universalização desse marketing ideológico, possível é a realização da dessocialização,  (com o enfraquecimento do Estado social e a maximização do Estado penal) a  desregulamentação e imposição do trabalho assalariado da miséria, concretizando, assim, uma verdadeira ditadura sobre os pobres.
            Trata-se do grande paradoxo das políticas de combate ao crime implementadas pela penalidade neoliberal, a qual apresenta e prega por todo o planeta  o seguinte paradoxo:
pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. 2   
            Essas redefinições das ações do Estado não surgiram do nada, trata-se do resultado dos esforços de uma gama de instituições e organismos internacionais, como por exemplo,
o Banco Mundial, a Comissão  Européia, a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos (OCDE), enfim, os "bancos de idéias" do pensamento conservador (o Manhattan Institute, em Nova York, o Adam Smith Institute,em Londres, a ex-Fondation Saint-Simon, em Paris, a Deutsche Bank Fundation, em Frankfurt), as fundações de filantropia, as escolas do poder (Science-Politique, na França, a London School of Economics, na Inglaterra, a Harvard Kennedy School of Government, nos Estados Unidos etc) 3   
            Além de toda uma rede de difusão dessa vulgata sem fronteiras, a qual, no contexto aqui analisado, refere-se ao senso comum penal criminalizador da miséria e normatizador do trabalho precário parido nos Estados Unidos e internacionalizado por múltiplos meios, os quais são ora reconhecíveis ora, até mesmo, irreconhecíveis.
            Nessa rede de divulgação dessa utopia neoliberal, o sucesso de um dos organismos ou agentes se deve não a ele próprio, mas “à posição que ocupa no seio da estrutura das relações de competição e de conluio, de subordinação e de dependência, que o ligam ao conjunto dos outros protagonistas e que está na raiz dos efeitos que é suscetível de exercer.” 4  
            A mídia também tem o seu papel nessa demoníaca rede propagadora das mais perversas políticas de combate ao crime, ela tem a função de desinformar a população sobre a criminalidade e o sistema carcerário; trata-se de um poderoso participante desse grande boom da administração da miséria pelo cárcere e das políticas penais ultra-repressivas.
            No nosso país a terrível e incontrolável máquina midiática é bastante indispensável à realização da ditadura sobre os pobres, trata-se de um parceiro crucial nessa “bela” empreitada. A máquina midiática contribui para a universalização da doxa penal, alimentando, assim, a indiferença dos políticos e do público frente as prisões de nosso país: verdadeiros “campos de concentração para pobres,” 5  grandes depósitos dos dejetos sociais que alimentam “as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo.” 6  
            Outro ponto relevante consiste na negação do acesso à assistência jurídica, o racismo segundo o qual, por exemplo,
em São Paulo, como nas outras grandes cidades, os indivíduos de cor “se beneficiam” de uma vigilância particular por parte da polícia, têm mais dificuldade de acesso a ajuda jurídica e, por um crime igual, são punidos com penas mais pesadas que seus comparsas brancos. 7    
            A administração da miséria pregada pelo neoliberalismo também é fortalecida pela falta de capacidade dos Tribunais para darem conta da monstruosa demanda penal, uma das mais notáveis consequências dessa aparente recusa de justiça organizada é a superlotação das prisões em nosso país, por exemplo.
A “sobrecarga dos Tribunais e a progressiva escassez de recursos que os paralisa, por outro, têm todas as aparências de uma recusa de justiça organizada;” 8   organizada para facilitar a concretização (e isso no nosso país tem efeitos drásticos) da política de Tolerância zero pregada pelo pensamento neoliberal, o qual vem encontrar o seu amparo intelectual em diversas universidades, grandes parceiras dessa empreitada neoliberal.
            A doutrina da Tolerância zero  veio encontrar as suas bases na teoria da Vidraça quebrada “formulada em 1982 por James Q. Wilson (papa da criminologia conservadora nos Estados Unidos) e George Kelling em artigo publicado pela revista Atlantic Monthly: adaptação  do ditado popular “quem rouba um ovo, rouba um  boi,” 9 segundo este ditado popular, que pretende ser teoria, é lutando fortemente contra os pequenos distúrbios do dia-dia que se faz recuar as grandes patologias criminais.
            Esse senso comum penal da criminalização da miséria encontra seu aval de ciência por meio de diversos papas da criminologia, da sociologia... Um dos mais fortes modelos planetários que dão a essa nova vulgata uma forma acadêmica é, como lembram Bourdieu e Wacquant,
o sociólogo britânico Anthony Giddens, professor  da Universidade de Cambridge, agora à testa da London School of Economics e pai da "teoria da estruturação", síntese escolástica de diversas tradições sociológicas e filosóficas.  10
            Essa é apenas uma dentre as incontáveis matrizes teóricas que visam atribuir à esse senso comum  um aval de cientificidade. Essa nova política de criminalização da miséria também é uma grande realizadora da exclusão etnorracial, onde os imigrantes pobres, mexicanos, asiáticos são sempre vistos como perigosos, desonestos e elementos supérfluos no plano econômico.
            O panoptismo também é indispensável e bem presente na política da imposição do trabalho miserável, na medida em que “sujeita os benefícios da assistência pública às práticas intrusivas do registro válido de informações e controle rígido, bem como estabelece um monitoramento rigoroso de suas condutas.” 11
            Para terminar, podemos concluir que a nova política da administração da miséria, internacionalizada por toda uma rede neoliberal, corresponde a um monstro devorador que se alimenta das próprias fezes, na medida em que a médio e a longo prazo, só pode agravar o desemprego e aumentar a criminalidade; essa nova política além de reduzir “artificialmente o índice de desemprego ao omitir das estatísticas uma importante reserva de pessoas em busca de emprego,” 12 mas ao mesmo tempo agravando o próprio desemprego por tornar mais difícil de se empregar, num mercado de trabalho miserável, os que estavam presos. Também tem o desgraçado privilegio de ser uma
Instituição total concebida para os pobres, meio criminógeno e desculturalizante moldado pelo imperativo (e o fantasma) da segurança, a prisão não pode senão empobrecer aqueles que lhes são confiados e seus próximos, despojando-os um pouco mais dos magros recursos de que dispõem quando nela ingressam, obliterando sob a etiqueta infamante de “penitenciário” todos os atributos suscetíveis de lhes conferir uma identidade social reconhecida (como filho, marido, pai, assalariado ou desempregado, doente, marselhês ou madrilenho etc.), e lançando-os na espiral irresistível da pauperização penal, face oculta da “política social” do Estado para com os mais pobres. 13                                                                           
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1.     WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Trad. André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 2001,  p. 20
2.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 8
3.     BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. A nova bíblia de Tio Sam. In: Le Monde diplomatique. 01 de maio de 2000  
4.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 19
5.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 11
6.     WACQUANT, Loïc. Ibid
7.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 9
8.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 39
9.     WACQUANT, Loïc. Op. cit. p. 25
10. BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. Ibid
11. WACQUANT, Loïc. O lugar da prisão na nova administração da pobreza. Trad.: Paula Miraglia e Hélio de Mello Filho, 2008.
12. WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. P. 143
13. WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. P. 143-144